março 13, 2015

"A psicanálise e os semblantes", por Eneida Medeiros Santos

PICICA: "O semblante, tal como elabora Lacan em seu ensino, não é ‘querer se passar por’ ou ‘fazer-se de’ como, por exemplo, quando dizemos ‘me fazer de louco’ ou ainda ‘me fazer de analista’. Essa construção pode nos conduzir a estabelecer uma falsa oposição entre a verdade e o semblante, qual seja, de que o semblante é o contrário da verdade, invalidando totalmente a relação que existe entre verdade e semblante. A verdade, nos diz ele, é aquilo que sustenta o semblante, e é, portanto, indissociável dele. Entretanto, aquilo que o semblante encobre, não é a verdade, é o real. Os discursos são forma de enganar e evitar o real, que para a psicanálise não é sinônimo de realidade. É por isso que se diz que não há discurso que não seja semblante.

Então, o semblante é este instrumento que permite manter estreita a relação com o real que ele encobre; ‘fazer semblante de’ só é possível se o real está aí para sustentá-lo, a menos que se faça semblante por uma conveniência social ou pessoal.

Um sujeito goza na vida por essa aparência, por esse semblante, operação fundamental para um analista, pois ele sabe que o ser é só aparência de ser. Saber disso faz com que a psicanálise – citada por Freud como uma das profissões impossíveis – seja efetiva, eventualmente, acrescenta Lacan, ou seja, que um psicanalista só se sustenta se não tiver que prestar contas a seu ser."

A psicanálise e os semblantes


“As teses desenvolvidas por Lacan em O Seminário – livro 18, serão temas da 4ª Jornada da EPC-SC, que será realizada dias 11 e 12 deste mês, na UFSC.

Desde cedo, muitas vezes sendo irônico com certa tradição filosófica, Jacques Lacan se ocupou de pensar a questão do ser. Quando elabora sua teoria do estádio do espelho, em 1936, nos dirá que é o estádio do espelho que confrere á criança uma estrutura ontológica no mundo, ou seja, é ele que determina a criança como ser e as coisas do mundo como seres. Isso, nos informa eles, está longe de ser um processo apaziguador, para a criança, pois ela não sabe quem é senão através da imagem do outro. A partir daí, ao longa da vida de todo sujeito essa problemática continua presente e esse sujeito jamais se encontrará com algo que lhe diga quem é.

O sujeito dividido, conceito tão caro aos psicanalistas, aponta para uma verdadeira subversão que a psicanálise promove no cogito de Descartes. Ali onde sou, não penso, e onde penso, não sou. Uma preciosidade teórica que alcança uma verdade, vale dizer, que o sujeito jamais se acercará de algo que lhe dê os fundamentos de seu ser.

Ao longo de seu ensino, Lacan vai fazendo várias pontuações a respeito da questão do ser, sempre nesse clima de crítica irônica, lembrando-nos que sempre que falamos sobre o ser, estamos diante do furor narcísico, da exigência de infinitude, do absoluto, daquilo que por si mesmo pretende totalizar-se.

Então ele constrói um conceito que se mostra exemplar para nos fazer crer que nosso ser possui consistência, o de objeto a. O objeto a é um desses objetos que nos dão a consistência de ser, e não é sem razão que ele se encontre, nos tempos contemporâneos, elevado ao ‘zênite social’ , pois, sendo ele um objeto pelo qual nosso desejo se agita, é perfeito para se vestir de uma aparência, uma aparência de ser.

Lacan introduz o conceito de semblante a partir de um momento preciso de seu ensino, ou seja, por volta de 1968-1969, época em que ele recorre à lógica do discurso visando a obter alguma idéia do que é o real para a psicanálise, pois a lógica esvazia a palavra de seu sentido, reduzindo-o a letras que, por si só, nada dizem. É por esta razão que ele dirá que o discurso é sem palavras porque o real que pode apresentar a lógica matemática é um real que é aparelhado pela escrita, sendo a escrita um modo de linguagem que não fala.

O objeto a proveniente dessa operação lógica que,  por ser lógica não exclui o fato de que teve de ser extraído de um corpo vivo, ganha o status de mais-de-gozar, nome cuidadosamente emprestado de Karl Marx por sua precisão teórica do conceito de mais-valia. Podemos dizer que o advento do ser na cultura produz uma perda, perde-se o objeto que cai do corpo, e esse objeto adquire o mais-de-valor, equivalentes aos objetos que desejamos. É por meio da estrutura de cada discurso que esse objeto ganha uma localização e uma função distintas. Por exemplo, vemos aparecer o fato inédito no discurso analítico, que é o de isolar a função do objeto mais-de-gozar e colocá-lo a funcionar como causa do desejo. Ao contrário, o discurso capitalista, que historicamente substitui o discurso do mestre, promove uma relação fetichista do sujeito com o objeto mais-de-gozar não passando pela dialética dos vínculos sociais.

A configuração dos discursos de Lacan aponta para formas específicas de fazer laço social. O discurso psiscanalítico é aquele que situa o objeto no lugar preciso do semblante, ou seja, dá ao objeto o seu verdadeiro estatuto. Ao mesmo tempo, ele bem situa o lugar da verdade porque sabe a verdade é dita éla metade, que ela é mentirosa ou da estrutura da ficção.

Portanto, não existe a palavra verdeira, mas qualquer discurso que estabelece laços entre os sujeitos precisa se acercar da verdade que ele oculta e que o sustenta, ou seja, qual é sua forma de tratar o gozo. Por exemplo, no discurso do mestre antigo, a verdade oculta é a do sujeito dividido, da falta do sujeito, e não o poder de sua vontade caprichosa, como ele quer fazer parecer.

Então, o que é que se diz quando os analistas repetem esta expressão lacaniana ‘fazer semblante de…’?

O semblante, tal como elabora Lacan em seu ensino, não é ‘querer se passar por’ ou ‘fazer-se de’ como, por exemplo, quando dizemos ‘me fazer de louco’ ou ainda ‘me fazer de analista’. Essa construção pode nos conduzir a estabelecer uma falsa oposição entre a verdade e o semblante, qual seja, de que o semblante é o contrário da verdade, invalidando totalmente a relação que existe entre verdade e semblante. A verdade, nos diz ele, é aquilo que sustenta o semblante, e é, portanto, indissociável dele. Entretanto, aquilo que o semblante encobre, não é a verdade, é o real. Os discursos são forma de enganar e evitar o real, que para a psicanálise não é sinônimo de realidade. É por isso que se diz que não há discurso que não seja semblante.

Então, o semblante é este instrumento que permite manter estreita a relação com o real que ele encobre; ‘fazer semblante de’ só é possível se o real está aí para sustentá-lo, a menos que se faça semblante por uma conveniência social ou pessoal.

Um sujeito goza na vida por essa aparência, por esse semblante, operação fundamental para um analista, pois ele sabe que o ser é só aparência de ser. Saber disso faz com que a psicanálise – citada por Freud como uma das profissões impossíveis – seja efetiva, eventualmente, acrescenta Lacan, ou seja, que um psicanalista só se sustenta se não tiver que prestar contas a seu ser.

Estas e outras questões serão discutidas na 4ª Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – SC intitulada sintomas e semblantes – Para que serve o sintoma? Acontecerá nos dias 11 e 12 de setembro de 2009, no auditório da Reitoria da UFSC. Além dos convidados dos campos da filosofia, da história da arte e da psicanálise de orientação lacaniana, contará com a presença de Angelina Harari, presidente da EBP e de Marie-Hélène Brousse, membro da École de la Cause Freudienne e Professora da Universidade Paris VIII.”

*texto escrito pela psicanalista Eneida Medeiros Santos para o Diário Catarinense.

O Seminário cujo o assunto será estudado na Jornada:

seminario18
 
 Fonte: Ponto Lacaniano

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