março 24, 2015

"Nietzsche e as possibilidades da alma ", por Rafael Trindade

PICICA: "Há vários motivos para incluir Nietzsche em uma contra-história da psicologia. O próprio filósofo escreve pouco antes de seu colapso mental que “antes de mim não havia sequer psicologia” (EH). Para ele, todos aqueles que diziam estudar o homem se baseavam em considerações metafísicas de origem platônica e posteriormente cristã, mas sem nunca parar para pensar se estas próprias ideias tinham alguma consistência. Enfim, o primeiro trabalho do filósofo-psicólogo então é desconstruir as ilusões criadas na unidade do homem, que Nietzsche chama de atomismo anímico."

Nietzsche e as possibilidades da alma

 
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Há vários motivos para incluir Nietzsche em uma contra-história da psicologia. O próprio filósofo escreve pouco antes de seu colapso mental que “antes de mim não havia sequer psicologia” (EH). Para ele, todos aqueles que diziam estudar o homem se baseavam em considerações metafísicas de origem platônica e posteriormente cristã, mas sem nunca parar para pensar se estas próprias ideias tinham alguma consistência. Enfim, o primeiro trabalho do filósofo-psicólogo então é desconstruir as ilusões criadas na unidade do homem, que Nietzsche chama de atomismo anímico.
Demócrito (460 a.C.) já havia postulado o átomo como algo indivisível, indestrutível, imperecível. Esta sedução da linguagem nos leva por um caminho enganoso que foi seguido posteriormente por Platão, pelo cristianismo, Descartes, Kant e Schopenhauer. Contudo, “a unidade da palavra não garante a unidade da coisa” (HDH). Só porque temos uma palavra que indica algo, isso não se dá necessariamente.
O mundo é um mar de forças, por trás do átomo encontramos várias outras partículas relacionando-se umas com as outras; a crença na unidade não passa de uma busca por um porto seguro, um ponto de apoio onde se fixar. Mas a imobilidade mata a vida. Platão pensou encontrar este lugar no mundo das idéias, do qual nosso mundo seria apenas uma cópia imperfeita e perecível. O cristianismo, cópia vulgar do platonismo, persiste neste fóssil metafísico da unidade, não consegue ver que toda essência é ilusão. Precisamos voltar a Heráclito e dizer que o rio que entramos pela segunda vez não é o mesmo que o primeiro porque suas águas já são outras, mas principalmente, nós mesmos já somos outros também.
Todas estas idéias se repetem quando falamos do homem. Buscamos algo de essencial e eterno no ser humano, algo que resista às forças tanto internas quanto externas e que sobreviva ao movimento. Esta ilusão se dá na palavra “Eu”. Mas esta noção é completamente aleatória, uma mentira útil, servindo apenas na medida em que serve ao próprio homem.
A alma é um jogo de forças, um mar agitado num embate furioso onde uma onda se sobrepõe à outra. Minha consciência é apenas um subconjunto, a última e mais recente parte, que se manifesta nessa dança corporal de impulsos. Várias partes do meu processamento cerebral escapam à minha consciência, várias condições corporais me passam despercebido, a mente consciente é uma janela reduzida demais para chamar de “alma”. Se do átomo só encontramos seu movimento e sua força, Nietzsche nos propõe chamar o corpo de um grande conjunto de vontades, afetos, impulsos e sensações:
Está aberto o caminho para novas versões e refinamentos da hipótese da alma: e conceitos como ‘alma mortal’, ‘alma como pluralidade do sujeito’, ‘alma como estrutura social de impulsos e afetos’ querem ter, de agora em diante, direito de cidadania” – Nietzsche, Além do Bem e do Mal, § 12
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Se o mundo externo não possui unidade por si só, mas é uma criação do homem para suportar o infinito devir da existência, o mesmo deve ser aplicado ao homem; a multiplicidade de forças do mundo é a mesma pluralidade de forças internas que move o ser humano, os dois não constituem nada mais que uma unidade transitória, um rio no qual temos a ilusão de entrarmos duas vezes. O corpo é um ponto de incidência de vários impulsos. A multiplicidade de quereres não permite pensar em um indivíduo.
Deste modo, palavras como essência, alma, unidade, eu, passariam a ser apenas palavras, criações que nos utilizamos sabendo que são mentiras, porque por debaixo desse suposto “Eu” se escondem milhares de outros “Eus”, que também querem e desejam e se empurram na busca para crescer, se afirmar e saciar suas vontades.
Está desfeita a unidade de Descartes ao dizer “penso, logo existo”, porque o próprio “eu” se multiplica por detrás de si. Schopenhauer também afirmou a unidade do sujeito no “Eu quero”, mas ele não pode ignorar a pergunta “quem quer?”, Nietzsche nos ajuda a responder: queremos sempre no plural.
A ideia de ter várias almas é deslumbrante, poético demais para não ser filosofia. Se precisamos interpretar o mundo, por que não assim? A filosofia nasce do corpo, o pensamento nasce do corpo. Um corpo que filosofa, cria valores. De agora em diante, todo pensamento deve passar pelo crivo do corpo.
A vida é movimento, e determinadas ideias procuram dissimular o andamento do rio, secá-lo. Nosso corpo, e consequentemente nossa mente, é um rio que vive dos fluxos que o atravessam. O objetivo de Nietzsche ao postular várias almas é também trazer a opção de novas possibilidades, outras interpretações, que afirmem a vida por si própria sem recorrer a “céu”, “inferno” e outras existências para validar a nossa realidade.
Assim falava alguém de si para si, em uma caminhada ao sol da manhã: alguém em quem não somente o espírito, mas também o coração sempre se transforma de novo e que, ao contrário dos metafísicos, se sente feliz por albergar em si, não ‘uma alma imortal’, mas muitas almas mortais” – Nietzsche, Humano Demasiado Humano II, §17

Fonte: Razão Inadequada

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