março 11, 2015

"A ética pisando em ovos". Por Sylvia Debossan Moretzsohn

PICICA: "Um jornalista tem nas mãos, com exclusividade, uma informação explosiva. Tem certeza de que os dados são verdadeiros. Por que não publica tudo imediatamente?

O repórter Fernando Rodrigues, único no Brasil a ter acesso integral à lista do escândalo conhecido como SwissLeaks – o vazamento das contas secretas do banco HSBC na Suíça –, já havia exposto em seu blog, em 12/2, os motivos pelos quais não revelava a relação completa dos brasileiros envolvidos no caso. A julgar pelos comentários recebidos, não convenceu muito. A entrevista concedida a João Paulo Charleaux, publicada no site Vice na quinta-feira (5/3), fornece mais elementos para uma discussão sobre a ética em torno desses procedimentos. Mas não só: permite pensar também sobre certa concepção mais geral a respeito do jornalismo e da sociedade." 

CASO HSBC

A ética pisando em ovos

Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 10/03/2015 na edição 841



Um jornalista tem nas mãos, com exclusividade, uma informação explosiva. Tem certeza de que os dados são verdadeiros. Por que não publica tudo imediatamente?

O repórter Fernando Rodrigues, único no Brasil a ter acesso integral à lista do escândalo conhecido como SwissLeaks – o vazamento das contas secretas do banco HSBC na Suíça –, já havia exposto em seu blog, em 12/2, os motivos pelos quais não revelava a relação completa dos brasileiros envolvidos no caso. A julgar pelos comentários recebidos, não convenceu muito. A entrevista concedida a João Paulo Charleaux, publicada no site Vice na quinta-feira (5/3), fornece mais elementos para uma discussão sobre a ética em torno desses procedimentos. Mas não só: permite pensar também sobre certa concepção mais geral a respeito do jornalismo e da sociedade.

Rodrigues obteve a lista por integrar o ICIJ (International Consortium of Investigative Journalism), que vem trabalhando sobre o caso HSBC desde fins do ano passado. Diz que não divulga a relação integral, de 8.667 nomes, porque não quer expor pessoas que podem ter cumprido todos os trâmites legais dessa transação financeira.

“Aparte jornalística da apuração tem limites fixados pela lei. Os jornalistas podem ir até onde o ofício permite. A partir daí, a outra parte sempre terá de ser apurada pelos órgãos de controle do governo. Quais dessas contas foram declaradas à Receita Federal do Brasil? Ninguém tem resposta a essa pergunta, com exceção do governo. O governo é quem tem os meios para pesquisar”.

Sua resposta poderia ser tida como um modelo de procedimento ético, por mais que salte aos olhos que a nossa imprensa, de modo geral, está longe de seguir esse padrão. Este foi, aliás, um dos motivos pelos quais se multiplicaram as críticas a respeito do silêncio da nossa mídia em relação a esse escândalo, amplamente divulgado em grandes jornais mundo afora. De fato, se tais cuidados fossem tomados, teríamos poupado muitas pessoas da irreparável execração pública, em sucessivos episódios reveladores de mau jornalismo, ontem e hoje.

Excesso de zelo

O problema é saber se há inocentes nessa história. Em tese, qualquer pessoa pode ter contas no exterior, desde que as declare e pague os devidos impostos. Mas é evidente que a maioria não tem dinheiro suficiente para habilitar-se a abrir uma conta dessas. Além do mais, por que o faria? E qual o sentido de se declarar uma conta secreta?

Essas perguntas não são feitas, mas acabam sendo respondidas por outras vias. Rodrigues começa por argumentar com um hipotético – e totalmente inverossímil – “José da Silva”, um suposto pequeno investidor, perfeito cumpridor da lei, que seria arrastado indevidamente no rol dos fraudadores, caso a lista fosse publicada imediatamente. Por fim, descreve o que deveria ser óbvio:

“Conversei com o ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel. Pedi que ele especulasse o seguinte: o senhor acha que existe uma razão para alguém do Brasil ter uma conta numerada, sem que apareça o nome, na Suíça, para depois declarar essa conta no Imposto de Renda? ‘Seria um situação muito inusitada. Ter uma conta numerada na Suíça é um indício muito grande, justifica a abertura de uma investigação’, ele respondeu. Eu não posso afirmar de maneira peremptória, mas posso suspeitar que a maioria abriu uma conta na Suíça para não declarar ao fisco brasileiro. Essas pessoas podem ter cometido um crime”.

Não será demais dizer que estamos aqui diante de um exemplo típico de excesso de zelo, que leva a indagar se o silêncio sobre a lista resulta apenas de um cuidado ético ou também, e talvez principalmente, de uma preocupação com os interesses a serem confrontados nesse escândalo.

Inclusive porque Rodrigues, que antes criticara certos “professores de jornalismo” por quererem a divulgação “indiscriminada e irresponsável” do tal José da Silva, considera correta a divulgação dos depoimentos decorrentes de delação premiada na cobertura da Operação Lava Jato, argumentando que tais depoimentos “tem valor de notícia, tem interesse público”.

“É mentira? Verdade? Não sei, mas a mídia não vai divulgar? Alguns professores de jornalismo questionam, ‘vai divulgar uma delação premiada?’. Eu digo, ‘ora, vai esconder uma delação premiada?’.”

Não apenas professores de jornalismo, mas notáveis jornalistas, como Janio de Freitas, questionaram várias vezes o próprio instituto da delação premiada. Aqui mesmo, neste Observatório, alguns desses professores insistiram reiteradamente sobre o risco de distorção resultante dos vazamentos seletivos dos depoimentos. O caso mais escandaloso foi o da capa da Veja, às vésperas do segundo turno da eleição para presidente. Se é mentira ou se é verdade, esta não deveria ser uma preocupação ética elementar para qualquer jornalista, em qualquer situação?

Generalizações indevidas?

Indagado sobre o comportamento distinto da mídia em casos similares, o repórter utilizou um argumento cada vez mais comum no meio profissional: criticou o que seriam generalizações indevidas, de tal modo que não poderíamos falar na “mídia”, pois seria preciso verificar as diferenças de conduta entre os vários jornalistas.

De fato, Rodrigues só pode responder por si, e sua trajetória, ademais de premiada, atesta um comportamento rigorosamente ético. Porém, é impossível desconsiderar a existência disso que chamamos “mídia” como estrutura: do contrário, seriam impensáveis a sociologia e os estudos que, no caso do jornalismo, demonstram os constrangimentos impostos pelas rotinas profissionais e os interesses que prevalecem nos critérios editoriais das empresas.

Mas, com certeza, certas generalizações são mesmo indevidas. Diante da pergunta sobre se o que está em questão, neste caso do SwissLeaks, é a qualidade ética do jornalismo brasileiro, o repórter discorda, dizendo que o Brasil “é um país infantilizado no qual a maioria das discussões são quase sempre rasteiras, epidérmicas e inúteis”. Ao fim da entrevista, reitera: “O Brasil é um país muito caipira, subdesenvolvido e atrasado”.

Interesse público

Inicialmente, Rodrigues divulgou apenas uma relação com 11 nomes, todos ligados à Operação Lava Jato, argumentando com um critério jornalístico: “É o assunto que as pessoas estão vendo mais”.
É redundante dizer que os assuntos mais em evidência atraem mais a atenção, o que acaba criando um círculo vicioso que põe na sombra outros assuntos, talvez inconvenientes. E, pior que isso, pode levar a descartar pistas de investigação que no futuro se revelarão relevantes.

“Se eu puder provar que José da Silva não pagou Imposto de Renda, aí tem interesse público”, diz o jornalista. Mas por que desconfiaria dele? “É empreiteiro? Tem obra pública? Tem expressão nacional? Se não, por que eu vou ligar para o José da Silva?” 

Não custaria lembrar que Watergate, no início, era só uma invasão a um escritório do Partido Democrata.

Ao divulgar a entrevista em seu mural no Facebook, João Paulo Charleaux publicou um trecho extra que ajuda a entender “um dos nós da investigação”, no qual Rodrigues detalha algo que já havia informado em seu blog (ver aqui):

“Quando saiu o primeiro relatório do ICIJ, um relatório ainda pequeno, com erros e imprecisões, eu peguei um pequeno extrato disso, equivalente a menos de 3% do total de nomes vinculados ao Brasil e, de maneira muito reservada, num acordo jornalístico de interesse público, mostrei ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), que havia uma suspeita ali de possível evasão de divisas, possível sonegação fiscal. O Coaf não fez nada. O presidente do Coaf, Antônio Gustavo Rodrigues, não fez nada. Por quê? Não sei. Acho que foi um grave erro dele”.

E prossegue:

“A minha proposta ao Coaf era: ‘veja esses dados e verifique se há algum alerta em relação a essas pessoas, se elas declararam nos seus impostos de renda essas contas no exterior no período em questão. Feito isso, comunique ao jornalista, sem precisar quebrar o sigilo, sem dizer especificamente quem, mas comunique pelo menos se a maioria não declarou esses investimentos no imposto de renda’. Se eu soubesse que uns 90% daqueles nomes não declararam as contas no Imposto de Renda, eu teria segurança absoluta para começar a trabalhar uma eventual divulgação de nomes (...). Fiz isso de boa fé, fazendo bom jornalismo e fazendo propostas absolutamente legítimas para estes agentes que foram protagonistas de desídia, preguiça e talvez má-fé. Essa minha tentativa foi um fracasso. Eu fracassei. Quem perdeu mais foi o Estado por ter maus funcionários, mal preparados e talvez desleais e criminosos”.

À parte a gravidade das acusações, que mereceriam ser formalizadas, restaria saber como o jornalista trabalharia caso tivesse obtido as informações desejadas, já que, aparentemente, não teria elementos para confirmar quem estaria efetivamente implicado em fraude: em princípio, sempre seria possível divulgar indevidamente algum “José da Silva” constante dos eventuais 10% que teriam supostamente agido de maneira plenamente legal.

A mídia na lista? 

No seu blog, Rodrigues afirmou que “aimensa maioria dos nomes contidos na listagem brasileira do HSBC da Suíça é desconhecida do grande público. Há uma minoria de pessoas conhecidas. Empresários, banqueiros, artistas, esportistas, intelectuais”. “Há empresários dos meios de comunicação?”, quis saber Charleaux. “Eu não posso te falar”, respondeu o repórter, “senão, você vai começar a me perguntar por nomes. Então, prefiro não dizer. Agora, numa lista de quase nove mil clientes, você pode imaginar que uma parte considerável da elite brasileira esteja nela.” “E é difícil imaginar que entre uma parte considerável da elite brasileira não haja empresários de meios de comunicação”, concluiu Charleaux.

[A entrevista foi divulgada no dia seguinte ao da publicação de um artigo no qual a diretora adjunta do ICIJ, Marina Walker Guevara, anunciou que a entidade passaria a trabalhar também com o jornal O Globo nessa investigação, o que provocou comentários irônicos como o do jornalista Rodrigo Vianna (ver aqui), tendo em vista as conhecidas denúncias de sonegação contra as Organizações Globo.]

Em sua coluna de 1/3, a ombusdman da Folha de S.Paulo ironizou a “teoria conspiratória” que acusa o silêncio da imprensa brasileira sobre o caso como forma de proteger interesses “de políticos ou poderosos”, sem mencionar as empresas de comunicação. Segundo ela, “a realidade é mais prosaica: os jornais levaram um furo na testa”. De fato: mas, mesmo diante da dificuldade de acesso aos dados, até o momento nas mãos de apenas um jornalista, não seria óbvio que a simples existência de um escândalo dessas proporções deveria ser uma notícia a ser escancarada?

“Obsessões oligárquicas”

Já o economista Luiz Gonzaga Belluzzo faz outro tipo de ironia em artigo na CartaCapital, publicado em 23/2 e modificado pela última vez em 2/3:

“Não creio, sinceramente, que os senhores da mídia nativa tenham sucumbido às mesmas tentações que levaram o grupo do jornal argentino Clarín, a enfiar a mão na cumbuca, engrossando o ervanário do HSBC. Prefiro entender o silêncio midiático como uma manifestação das muitas obsessões oligárquicas que assolam os senhores de Pindorama: nas sinapses dos patrícios da Pátria, sobrevive a hierarquia ‘natural’ que organiza a sociedade brasileira desde os tempos da escravidão. Nem mesmo os corruptos e a corrupção conseguem escapar da fúria classificatória e classista”.

É o que nos permite entender a pergunta do presidente do Coaf, em reportagem na mesma revista (3/3): “Você gostaria de ver seu nome no jornal se um funcionário do seu banco conseguisse os dados de correntistas e você fosse um deles?”. Pois essa pergunta – “e se fosse com você?” – não é feita quando suspeitos pés de chinelo são fotografados em delegacias.

(Na mesma reportagem, o presidente do Coaf insiste em que “é comum imaginar que ‘ter conta fora é coisa de bandido‘, mas que isso não é necessariamente verdade”. Pois é: não necessariamente.)
Belluzzo conclui seu artigo lembrando do “fiasco do Fisco” no caso Banestado – o banco que facilitou a evasão de divisas do Brasil para paraísos fiscais entre 1996 e 2002, e virou objeto de CPI no ano seguinte –, e que sintetiza como as instituições se articulam para proteger os interesses privilegiados:

“A investigação iniciada pelo procurador federal Celso Três naufragou no ‘Acordão’ costurado na CPI do Banestado e vazou para os subterrâneos, filtrada entre as decisões e acórdãos do ‘novo’ Judiciário brasileiro. Os nomes dos transgressores estavam gravados no então famoso ‘disco rígido’, cujo acesso foi bloqueado pelo Supremo Tribunal Federal”.

Os crimes do capital

E aqui entram as questões mais gerais a respeito das concepções sobre o funcionamento da sociedade, a partir do qual o jornalismo estabelecerá sua pauta. No Facebook, ao comentar a entrevista com Fernando Rodrigues, João Paulo Charleaux afirmou que o repórter estava certo: precisava “separar o joio do trigo”, uma vez que “ter dinheiro fora não é crime. Ser rico, também não é”.

Certamente, ser rico não é crime, sobretudo quando internalizamos as regras do jogo capitalista, que nos leva a ver como natural algo que é aberrante. Pois, se indagarmos a origem histórica dessa riqueza, talvez nos deparemos com uma monstruosidade. Exemplo disso é a própria constituição do HSBC, que remete à Guerra do Ópio deflagrada pela Inglaterra contra a China em meados do século 19. O professor Vladimir Safatle trata do tema em artigo na CartaCapital (15/2). Classifica a história do HSBC como “o exemplo mais bem acabado de como o desenvolvimento do capitalismo financeiro e a cumplicidade com a alta criminalidade andam de mãos dadas”. E aponta a relação entre a vida cotidiana e o sistema, num exercício para “qualquer interessado em juntar os pontos”:

“Você poderia colocar seus filhos em boas escolas públicas e ter um bom sistema de saúde público, o que o levaria a economizar parte de seus rendimentos, se especuladores e rentistas não tivessem a segurança de que bancos como o HSBC irão auxiliá-los, com toda a sua expertise, na evasão de divisas e na fraude fiscal. Traficantes de armas e drogas não teriam tanto poder se não existissem bancos que, placidamente, oferecem seus serviços de lavagem de dinheiro com discrição e eficiência. Se assim for, por que chamar de ‘bancos’ o que se parece mais com instituições criminosas institucionalizadas de longa data?”

Por isso será sempre atual a pergunta de Brecht, em sua famosa Ópera dos Três Vinténs: “O que é roubar um banco, comparado a fundar um?”.

A alma do negócio

Ainda em fevereiro, também na CartaCapital (12/2, ver aqui), o editor de economia Carlos Drummond mostrava que o caso HSBC não era uma exceção. Semanas depois, na Folha de S.Paulo(1/3), a repórter Deborah Berlinck (ver aqui) daria uma pista de como funciona o esquema de assédio aos milionários brasileiros “interessados em tirar parte da fortuna do Brasil” – o que, por tabela, descartaria a existência de algum “José da Silva”. No mesmo dia, O Estado de S.Paulo recordava as denúncias do livro A Suíça lava mais branco, publicado há 25 anos, em entrevista com seu autor, Jean Ziegler. Finalmente, no domingo seguinte (8/3), deu na primeira página a chamada para uma entrevista com Hervé Falciani, o ex-funcionário do HSBC responsável pelos vazamentos, que apontava o Brasil como alvo principal do esquema e perguntava:

“Por que o Brasil abre investigações só sobre os clientes, no momento em que está claro há muitos anos que são os bancos que precisam ser investigados? Quanto tempo será necessário para que a decisão de investigar os bancos seja tomada? Quanto tempo será necessário para ir além dos sintomas, os clientes, e chegar às causas da doença, que são os bancos?”

Faz sentido: se não houvesse a estrutura, os clientes – esses que, no Brasil, ainda são uma incógnita – não poderiam se beneficiar dela. Desvendar esse segredo é destruir a alma do negócio.

Será possível?

Leia também

O silêncio da mídia – Randolfe Rodrigues

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

Fonte: OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA

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