março 22, 2015

"Onde eles estão?!" Por Fabricio Undr

PICICA: "“Onde estão os pretos das manifestações do dia 15 de março?” era a pergunta mais recorrente nas minhas redes (onde predominam falas de esquerda) para acusar as manifestações da direita de serem predominantemente da “elite branca” (e eu, pessoalmente, creio mesmo que foi assim). Mas a pergunta me provoca outras reflexões além do óbvio. Afinal, por que os pretos – e eu noto aí um recorte de classe a partir do viés racial, que se justifica por aspectos históricos e sociais bastante evidentes que chega à beira do truísmo, para o bem e para o mal – não foram às manifestações do dia 15 de março, contra o governo Dilma e contra o PT?"

Onde eles estão?!

Por Fabricio Undr, cineasta de Salvador

cabula

“Onde estão os pretos das manifestações do dia 15 de março?” era a pergunta mais recorrente nas minhas redes (onde predominam falas de esquerda) para acusar as manifestações da direita de serem predominantemente da “elite branca” (e eu, pessoalmente, creio mesmo que foi assim). Mas a pergunta me provoca outras reflexões além do óbvio. Afinal, por que os pretos – e eu noto aí um recorte de classe a partir do viés racial, que se justifica por aspectos históricos e sociais bastante evidentes que chega à beira do truísmo, para o bem e para o mal – não foram às manifestações do dia 15 de março, contra o governo Dilma e contra o PT?

Um professor de Salvador disse que a nossa capital baiana é uma cidade que “não é afeita às passeatas porque é uma cidade conflagrada”. Eu expando essa percepção, no que se refere ao estado de conflagração: o Brasil é um país metropolitanamente conflagrado, mais precisamente, é um país perifericamente conflagrado. A ausência dos “pretos e pobres” reclamada por essas falas de esquerda como sinal imediato de deslegitimação dos protestos por serem manifestações “da elite branca”, na verdade, tem um sutil intuito de escamotear o permanente estado de pequenas insurgência das periferias, geralmente em reação contra a violência policial ou por demandas sociais básicas (como iminências de remoções, caos de saneamento, dificuldades de atendimento médico etc). Pequenas insurgências porque são numericamente pequenas e geograficamente localizadas nos bairros (e não na Barra, onde ocorreu a manifestação da direita em Salvador). Quase todos os dias em Salvador se incendeia um ônibus ou se fecha uma avenida próxima a uma comunidade ou bairro que protesta por razões locais. Para esses manifestantes é perigoso e ineficaz tentar ocupar espaços urbanos centrais da cidade para se manifestar, por motivos que considero evidentes.

Por exemplo, o protesto do dia 15 aqui em Salvador, como disse, foi na Barra, bairro nobre e turístico. Ali mesmo, na Barra, existe uma comunidade chamada Roça da Sabino, cuja entrada é um beco na Avenida Centenário. Na véspera do dia 15, pessoas dessa comunidade fecharam a Avenida (coisa que acontece com frequência por diferentes motivos e, note-se, a entrada da comunidade fica em frente à entrada principal do shopping Barra, um dos mais elitizados da cidade), como protesto porque, segundo alguns moradores com os quais conversei, um garoto tinha sido preso e levado pela polícia arbitrariamente. Eu vi quando a PM chegou para acabar com a manifestação: sem falar nada com ninguém, soltou cinco bombas de efeito moral em sete segundos, mais ou menos. Homens, garotos, mães e suas crianças, todos correram para dentro da comunidade. Policiais começaram a retirar lixo e entulhos das conchas de lixo que os moradores tinham arrastado para o meio da rua para fechar a avenida. Os moradores, recuados, aglomerados e acuados no beco, discutiam com os policias, à distância, em tom de revolta. Um policial começou a filmar um dos moradores que permanecia no canteiro que fica no meio da avenida Centenário, porque o rapaz reclamava da ação da PM, julguei eu. Mas o policial filmava de forma agressiva, quase violenta, meio que esfregando o celular na cara do rapaz, que era negro. Não bastou: o policial deu um empurrão tão violento no cara que ele caiu e rolou pelo chão.

Só para ficarmos nos últimos meses, eu poderia citar – em defesa da tese do professor da cidade conflagrada de Salvador – a lista de conflagrações relacionada pelo mesmo professor no seu Facebook, por esses dias: “em agosto os ônibus foram impedidos de circular no Beiru, em dezembro ônibus foram incendiados no Pernambués, na semana passada o tráfego foi interrompido na Centenário e só voltou ao normal depois de muita bomba da polícia, e já faz quase uma semana que os ônibus não entram no Vale das Pedrinhas, que vive em clima de guerra desde que uma jovem de 24 anos foi sequestrada por homens encapuzados e, depois, foi encontrada assassinada na Estrada CIA/Aeoroporto. Um ônibus incendiado e um clima de terror que se espalha por todo o conjunto Nordeste de Amaralina.”

Procurando os “pretos e pobres” que faltaram na manifestação da Barra? Ou na Paulista? Ou em Copacabana? Ou nas outras cidades do país?

Na Maré e no Alemão, nos Cabulas todos, não vestem necessariamente verde e amarelo para protestar nem protestam necessariamente contra ou a favor da Petrobras S/A, nem tampouco seus protestos são insuflados e favorecidos pela mídia hegemônica, porque, imagino, estão envolvidos em situações urgentes que fazem a corrupção no caso da Petrobras e em geral, a reforma política e os valores da democracia representativa parecerem tópicos relativamente abstratos, por mais presentes que esses temas se façam na TV. Não vou me aprofundar em questões como o nível de politização nas favelas porque é um tema amplo e complexo que não cabe aqui, mas sobre eleições, é lícito lembrar às esquerdas mais governamentais que nas últimas eleições presidenciais, Dilma teve pouco mais de 54 milhões e meio de votos no segundo turno, ao passo que o país registrava mais de 141 milhões de eleitores. O que significa que, entre votantes de Aécio, nulos, brancos, abstenções, mortes etc, cerca de 86,5 milhões de eleitores não votaram em Dilma.

A promoção da gestão policial da vida nas favelas, seja através de UPPs ou de ocupações militares do exército, portanto, assim como as chacinas nas periferias, se referem àquelas cidades conflagradas, àqueles lugares cujo apelo social é apropriado por discursos polarizados – negros e pobres contra elite branca – seja por narrativas governistas, seja por discursos (e ações) fascistas e criminosos.

Aí vem esquerdistas perguntando aonde estavam os negros e pobres no protesto da direita “elite branca” nas zonas turísticas das grandes cidades? Isso vai soar esnobe e elitista de minha parte, mas nesse campo, fatos são fatos: sejamos mais politizados quando formos falar de protestos. É pensando nisso, inclusive, que esse texto acaba assim, aberto, sem fechamentos, apenas observando criticamente e propondo reflexões.


NOTAS

1) O professor mencionado que disse que Salvador “não é afeita às passeatas porque é uma cidade conflagrada” chama-se Clímaco Dias.

2) Esta nota não se refere a nada pontual no texto, mas quero compartilhar uma reação a uma versão bem mais enxuta e informal desse texto que eu publiquei em meu facebook e do qual este presente texto é consequência. Um professor (que eu admiro) também de Salvador, ligado a literatura e enraizado no hip-hop, perguntou, num comentário lá no facebook, se eu era “preto e pobre”. Eu perguntei “por quê”? Mas até fechar esse texto, não obtive resposta. Claro que infiro as razões da pergunta e sinto que ele tem motivos absolutamente justos para me perguntar isso nesse contexto, mas quero registrar esse fato aqui porque acho que ele pode suscitar outras importantes questões ligadas ao tema do nosso texto.

Fonte: UniNômade

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