PICICA: "“O discurso antigolpe e
anti-impeachment, junto com a defesa governista da Petrobras, serve para
criar uma mobilização que acaba por escamotear as dimensões sórdidas do
ajuste econômico em curso e da própria crise da empresa de petróleo”, pontua o sociólogo."
As manifestações dos dias 13 e 15 de março. Polarizações desérticas. Entrevista especial com Marcelo Castañeda
“O discurso antigolpe e
anti-impeachment, junto com a defesa governista da Petrobras, serve para
criar uma mobilização que acaba por escamotear as dimensões sórdidas do
ajuste econômico em curso e da própria crise da empresa de petróleo”, pontua o sociólogo.
“Não acredito que os principais
partidos, que são responsáveis em grande parte por essas crises,
consigam vencer seus interesses para compor um projeto
que faça frente às diversas crises em pauta. Do jeito que se configura,
esse acordo continuará sendo feito por cima e, para mim, isso é mais do
mesmo”, diz Marcelo Castañeda em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Na avaliação do sociólogo, a atual situação econômica e política,
incluindo ajustes econômicos, cortes orçamentários e ameaças aos
direitos trabalhistas, já era prevista durante a campanha eleitoral do
ano passado, mas a escolha pelo candidato “menos pior” “fez com que
muitas pessoas se assustassem com a natureza do ajuste agora em curso na
medida em que esperavam uma continuidade”, pontua. E adverte: mas ela
foi “rompida, em especial pela presença de Levy no Ministério da Fazenda, dando uma guinada em relação ao desenvolvimentismo”.
Fonte: http://www.mmnvencedor.com/ |
Na interpretação dele, essa polarização
permanece nas discussões sobre a possibilidade de impeachment ou golpe e
sustenta um discurso sobre o “menos pior”.
“Não acredito em golpe no contexto atual. Há uma histeria governista
cada vez que as coisas saem do controle deles. O discurso sobre golpe
interessa ao governo, pois reforça a polarização vitoriosa nas eleições
presidenciais. Parece que o governismo precisa manter o inimigo comum
aceso e derrotado para que ele se mantenha como ‘menos pior’”. E
pergunta: “Como golpear um governo que cedeu a todos os caprichos do
mercado, no qual os bancos continuam lucrando como nunca, em que o PMDB é
cada vez mais forte? (...) Mas vamos esperar as manifestações dos dias
13 (PT/governismo) e 15 (pelo impeachment) para ter uma dimensão mais
concreta do tipo de mobilização que a polarização desértica nos
oferece”.
Marcelo Castañeda
é doutor em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - CPDA/UFRRJ
e graduado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - UERJ.
Confira a entrevista.
Fonte: http://ufrrj.academia.edu/ |
Marcelo Castañeda - Durante a campanha eleitoral estava claro que haveria ajustes econômicos,
ganhasse quem ganhasse, tais como os robustos cortes orçamentários,
ameaça a direitos trabalhistas, abertura de capital da Caixa Econômica
Federal, entre outros que não vou detalhar aqui. Parece que o fato de a
campanha feita pela presidente ter se colocado como "menos pior" ou
diferente dos que com ela concorriam (no primeiro turno, Marina foi o alvo preferencial;
no segundo, Aécio) fez com que muitas pessoas se assustassem com a
natureza do ajuste agora em curso na medida em que esperavam uma
continuidade que me parece ter sido rompida, em especial pela presença de Levy no Ministério da Fazenda, dando uma guinada em relação ao desenvolvimentismo.
Enfim, os ajustes estão sendo feitos e torço para que não entremos em um período de recessão com inflação
que paira no horizonte e, caso se concretize, certamente vai atingir os
mais pobres com força. Vale destacar que existe uma espécie de efeito
cascata que atinge as diferentes escalas de governo que também estão
efetuando diferentes tipos de ajustes baseados em cortes orçamentários e
ameaça a direitos de trabalhadores. O mais grave é que
os que mais sofrem são os mais pobres. Então, a conjuntura, vista a
partir dos ajustes, não me parece favorável. A situação é delicada após
dois meses de anúncios nada positivos e não há nada que sinalize que
possa haver uma reversão deste processo, podendo acontecer, ao
contrário, um aprofundamento.
IHU On-Line - Diante da atual conjuntura, você propõe como alternativa para sair do “deserto em que estamos” a
criação de novas instituições e movimentos. Quais possibilidades
vislumbra acerca disso, ainda mais quando tais manifestações não
sinalizam uma nova liderança política?
Marcelo Castañeda - Você se refere ao que chamei de deserto da polarização da representação política entre PT e PSDB
sempre mediados pelo oportunismo do PMDB e partidos fisiológicos
menores que circundam o poder constituído. Isso já dura mais de 20 anos
no âmbito do governo federal, complementando dinâmicas estaduais e
municipais onde o peemedebismo reina de forma
hegemônica no sentido de se fazer como padrão de governo para poucos.
Tanto a criação de novas instituições e movimentos quanto novas
lideranças políticas não surgem do nada, mas de processos e práticas de
lutas concretas que atuam em um terreno de oportunidades que surgem e
são criadas.
Temos um longo caminho pela frente para
constituir democracia e uma história de lutas, organizações e movimentos
que compõem um campo de lutas que não há como desprezar. Precisamos
cada vez mais trabalhar com a possibilidade de ir além do campo de luta,
dos ativistas, e contaminar a sociedade de forma que o cotidiano seja
um terreno politizado e aberto a quem quiser participar politicamente
fazendo erodir aos poucos a cultura política autoritária que se mostra
ainda forte no Brasil. Essas “novidades” não surgem do vazio ou
espontaneamente de uma hora para outra, só que essa contaminação política democrática da sociedade
não vem sendo operada pelas instituições e movimentos atuais. Ou seja,
estas instituições e estes movimentos podem ser renovados também, ao
mesmo tempo que outros podem ser criados. Daí que cabe pensar em novas
possibilidades.
"Não acredito em golpeno contexto atual" |
IHU On-Line - Como avançar politicamente sem uma liderança política?
Marcelo Castañeda - Na
minha perspectiva, através da cooperação de singularidades que se
reconhecem como parte da luta por um objetivo comum que as unem. E aqui
falo de diferentes escalas, desde o engajamento individual até a
representação, passando pelos coletivos e movimentos, entre outros. Não
vejo que a questão da liderança política seja
necessariamente um problema atual. A meu ver, o aprofundamento das
trocas e diálogos de forma democrática é a questão que mais me chama
atenção atualmente, pois é através da articulação de diferenças que se
propõem agir e se organizar que podemos avançar politicamente de uma
forma diferente, construindo algo que vá além do que já temos, e não
através de um líder redentor que guie as massas.
Isso não quer dizer que não surjam
lideranças, algumas delas de movimentos sociais que inclusive já
dialogam com governos ou mesmo parlamentares de esquerda que por vezes
fazem o contraponto ao governismo hegemônico. As
lideranças não morreram e algumas delas se modificaram enquanto outras
ainda permanecem no antigo padrão, basta ver movimentos como MST e MTST ou mesmo parlamentares como Marcelo Freixo
do PSOL-RJ, por exemplo, para ver que ainda existem lideranças
políticas no campo definido como “esquerda”. No entanto, não creio que
seja com esse modelo de liderança que estaremos avançando politicamente,
ainda que possa haver composições em determinados momentos.
IHU On-Line - Uma das críticas
às manifestações é de que as demandas da multidão acabam se contaminando
e virando bandeiras partidárias. O senhor concorda? Como fugir dessa
armadilha?
Marcelo Castañeda -
Acho que isso não procede. Parece um tipo de purismo e não corresponde
ao que acontece. Quem dera que os partidos e governos fossem
contaminados por todas as pautas de lutas que acontecem no Brasil.
Quem dera que eles se comprometessem, mas o que eles fazem é querer
cessar as demandas. O que parece muito claro é que, por mais que possa
haver lutas que reagem a desmandos de governos e empresas, as lutas
estão à frente dos governos e empresas. São as lutas que ditam as ações
de governos e empresas. Temos que inverter essa perspectiva de que as
lutas são uma reação ao poder constituído. É o inverso, por isso alguns
falam em captura das lutas. Essa captura acontece, mas é
sempre incompleta, deixa resíduos e esses seguem dando sinais de que a
multidão pode se recompor mais à frente. Aliás, a multidão não existe a
priori, ela se faz, assim como a classe, em determinados momentos e
situações concretas de lutas. Não existe uma multidão imanente. Acho que
para sair da armadilha precisamos fortalecer os resíduos do que é
capturado. Esse momento é bem propício para essa articulação dos
resíduos depois da restauração proporcionada pela repressão, pela Copa das Copas e pelas eleições.
"Os sinais de decadência do Brasil Maior projetado por Lula e que Dilma tentou levar em frente são muitos" |
IHU On-Line - Como interpreta os
discursos acerca de um possível golpe na atual conjuntura? Há risco de
golpe ou de algo como foi o udenismo na ditadura?
Marcelo Castañeda - Não acredito em golpe
no contexto atual. Há uma histeria governista cada vez que as coisas
saem do controle deles. O discurso sobre golpe interessa ao governo,
pois reforça a polarização vitoriosa nas eleições presidenciais. Parece
que o governismo precisa manter o inimigo comum aceso e derrotado para
que ele se mantenha como “menos pior”. Como golpear um governo que cedeu
a todos os caprichos do mercado, nos qual os bancos continuam lucrando
como nunca, em que o PMDB é cada vez mais forte? O discurso antigolpe e anti-impeachment, junto com a defesa governista da Petrobras,
serve para criar uma mobilização que acaba por escamotear as dimensões
sórdidas do ajuste econômico em curso e na própria crise da empresa de
petróleo. Mas vamos esperar as manifestações dos dias 13 (PT/governismo) e 15 (pelo impeachment) para ter uma dimensão mais concreta do tipo de mobilização que a polarização desértica nos oferece.
IHU On-Line - O senhor aponta
para a ruína do neodesenvolvimentismo. Quais são as evidências e as
causas dessa ruína? Por que esse projeto não deu certo e desde quando
ele vem dando sinais de falência?
Marcelo Castañeda - Essa ruína é lenta e tendo a pensar numa composição e neodesenvolvimentismo e neoliberalismo a partir da chegada de Levy no Ministério da Fazenda. Mas os sinais de decadência do Brasil Maior projetado por Lula e que Dilma tentou levar em frente são muitos:
(1) a falência de Eike Batista, que era um dos símbolos desse Brasil Maior;
(2) o cancelamento de seis dos sete projetos de megabarragens na Amazônia (mostrando que o governo acerta quando falha);
(3) a intensificação da crise na Petrobras (aprofundando a herança tucana);
(4) as seguidas mortes e tiroteios na política de pacificação apoiada pelo governo federal no Rio de Janeiro, cidade que seria o modelo de gestão deste Brasil Maior, em que ganham as máfias e perde o povo, perdendo inclusive a vida.
Enfim, esse projeto não deu certo pela
sua forma de operar, de cima para baixo, representando os interesses
corporativos e econômicos, mas contraditoriamente é por onde ainda opera
o poder.
IHU On-Line - Alguns
intelectuais estão defendendo uma união dos principais partidos no
sentido de pensarem um projeto de país para sair da atual crise. Como vê
essa possibilidade a partir de um grande pacto entre
desenvolvimentistas, trabalhadores, a burguesia industrial e a
burocracia pública?
Marcelo Castañeda - Não
acredito que os principais partidos, que são responsáveis em grande
parte por essas crises, consigam vencer seus interesses para compor um
projeto que faça frente às diversas crises em pauta. Do
jeito que se configura, esse acordo continuará sendo feito por cima e,
para mim, isso é mais do mesmo. Enquanto a sociedade não for mobilizada
para decidir o que deve ser feito, e não apenas ser chamada a participar
ou ser representada em mesas de negociação, vamos aprofundar as crises.
IHU On-Line - Quais são as agendas que poderão fazer emergir novas manifestações neste ano? Vislumbra um cenário como o de 2013?
Marcelo Castañeda - Não
tem como ficar vislumbrando junho de 2013 como um eterno retorno, pois
pode ser que nunca mais volte. O importante é mostrar que, com junho de
2013, o medo mudou de lado, mesmo que por pouco tempo, bem como mostrou
ser possível mobilizar em prol de um objetivo comum, contra o aumento das passagens de ônibus em várias cidades. Por isso, junho de 2013
continua importante e a repressão vigente tem esse medo da
possibilidade de um retorno. Agora, claro que temos contexto para
emergência de novas manifestações e tendo a acreditar que elas têm
relação intrínseca com as crises e tensões que perpassam a sociedade
atual, sendo que acho importante destacar
(1) a crise econômica, que afeta o emprego e as condições de vida dos mais pobres;
(2) a crise de
representatividade, com a corrupção sistêmica que corrói a democracia e é
operada por todos os partidos em conluio com grandes empresas e bancos
privados em diferentes escalas e esferas (Executivo, Legislativo e
Judiciário);
(3) a crise hídrica,
causada pela falta de planejamento de governantes e pelos ataques às
florestas, ao cerrado e aos leitos dos rios, em consequência do neodesenvolvimentismo;
(4) a crise urbana,
com cidades cada vez mais congestionadas, serviços de transporte, saúde
e educação cada vez mais precários, e especulação imobiliária;
(5) a crise cívica, que
atinge em cheio a população pobre e favelada mantida sob permanente
intervenção armada do Estado, do tráfico ou das milícias, com a
juventude negra sendo vítima de um verdadeiro genocídio; e
(6) a crise que atinge os povos indígenas,
comunidades tradicionais e populações ribeirinhas, que são brutalmente
atacados e dizimados pelo projeto neodesenvolvimentista e pelo
agronegócio.
Todos esses são focos de luta que podem emergir em 2015, ainda que esteja certo de estar desconsiderando algum aqui.
"Não tem como ficar vislumbrando junho de 2013 como um eterno retorno, pois pode ser que nunca mais volte" |
IHU On-Line - O senhor defende a
cidadania como “ideia chave” para pensar uma saída para esse momento.
Em que consiste essa ideia? Como operacionalizar isso?
Marcelo Castañeda - Nós
temos uma Constituição que é tida como cidadã, que está sendo
desmantelada com parcos 27 anos de vida. Se você perguntar a qualquer
pessoa se já leu a Constituição, a resposta tende a ser negativa.
Trabalhar a ideia de cidadania e de luta por direitos
frente às diferentes crises que vivemos e transformar esses contextos de
crise em formas de aprendizado e de construção de novas instituições me
parece um desafio a partir de uma ideia pouco explorada atualmente por
partidos e movimentos sociais.
Uma iniciativa incipiente da qual faço parte no Rio de Janeiro são os Círculos de Cidadania,
onde estamos pensando ações concretas no amplo terreno da cidadania. É
uma experimentação ainda, estamos testando, criando metodologias de ação
nas práticas cotidianas. O fundamental é que os círculos reúnam pessoas
dispostas a agir, seja em um território, seja em uma temática, por
exemplo. A ideia é multiplicar círculos e ver como criar espaços de articulação,
troca e diálogo entre eles, expandindo as ações e partindo de baixo,
sem qualquer comando centralizado. É um desafio e tanto, mas o que vale
neste ponto é a tentativa e experiência. Como é muito recente, ainda
temos pouco a falar, espero que em breve a gente faça uma entrevista só
sobre essa prática.
IHU On-Line - Levando em conta
essa ideia de que “precisamos de novas experiências de organizações e
instituições” e que para isso não há fórmula pronta, sendo quase que
inevitável erros e acertos, como avalia as manifestações de junho de
2013 e a mobilização dos caminhoneiros neste ano?
Marcelo Castañeda - Primeiro, devemos destacar que são de tipo diferente. Avalio que junho de 2013 foi um caso bem-sucedido, em especial por conseguir a redução no aumento das passagens.
As pessoas parecem esquecer que foi isso que levou as pessoas para as
ruas. E isso foi conseguido no dia 19/06 em São Paulo e no Rio de
Janeiro, sem falar nas diversas cidades Brasil afora. A expectativa que a
mobilização gerou de que poderíamos mudar o Brasil a partir do dia 20,
junto com a brutal repressão, deixou um gosto de que lutamos à toa. Não
foi à toa!
Essa luta prossegue, ao menos no Rio de Janeiro,
em outubro de 2013, a multidão indignada voltou às ruas com os
professores, depois no carnaval de 2014 os garis derrotaram
autonomamente o sindicato e a prefeitura. O espírito de junho se faz
presente por mais que o poder constituído trabalhe para apagá-lo quando não consegue capturá-lo. Quanto à greve dos caminhoneiros,
trata-se de uma mobilização legítima e não podemos ter medo de dizer
isso por conta de eventuais apoios patronais que recebam. Não existe
protesto sem incomodar os poderosos. Independente da possível captura,
que sempre vem rápido, a manifestação é legítima.
(Por Patricia Fachin e João Vitor Santos)
Para ler mais:
Veja também:
Fonte: IHU
Nenhum comentário:
Postar um comentário