PICICA: "A recente criação de perfis falsos em
aplicativos de encontros sexuais, em campanha de prevenção à aids
patrocinada pelo Ministério da Saúde, deve ser motivo de reflexão.
Não se sabe se foram muitos os usuários de smartphones “caçados” pelo perfil mentiroso que se identificava como alguém em busca de sexo sem proteção para, em seguida, revelar que o “caçador” era o Ministério da Saúde advertindo que “é difícil saber quem tem HIV” e convocando para a prevenção.
A suposta inovação, de promover o preservativo em plataforma de paquera
digital dedicada aos mais jovens, é na verdade uma iniciativa
antiquada, ao valer-se de tática sub-reptícia, de buscar, de maneira
desleal e obtida por embuste, a adesão do jovem à camisinha. Certamente,
mais irritou do que convenceu."
Prevenção em aids no Brasil: depois do terror, a trapaça
Mário Scheffer*
A recente criação de perfis falsos em
aplicativos de encontros sexuais, em campanha de prevenção à aids
patrocinada pelo Ministério da Saúde, deve ser motivo de reflexão.
Não se sabe se foram muitos os usuários de smartphones “caçados” pelo perfil mentiroso que se identificava como alguém em busca de sexo sem proteção para, em seguida, revelar que o “caçador” era o Ministério da Saúde advertindo que “é difícil saber quem tem HIV” e convocando para a prevenção.
A suposta inovação, de promover o preservativo em plataforma de paquera
digital dedicada aos mais jovens, é na verdade uma iniciativa
antiquada, ao valer-se de tática sub-reptícia, de buscar, de maneira
desleal e obtida por embuste, a adesão do jovem à camisinha. Certamente,
mais irritou do que convenceu.
A curta duração e a baixa cobertura das
campanhas de prevenção em aids do Ministério da Saúde reduzem os danos
potenciais (no mínimo, há desperdício de recursos públicos) que peças
equivocadas como essa podem provocar, mas não escondem a política
errática de comunicação em saúde da atual gestão do programa nacional de
aids.
Não foi uma boa ideia usar a trapaça na
prevenção. Soou como uma versão “moderninha” do terror levado a
campanhas de vinte anos atrás, sob o governo Collor, quando o Ministério
da Saúde igualou a aids à morte, o que afastou os sujeitos do cuidado e
levou à discriminação ainda maior das pessoas que viviam com HIV. A
emboscada dos perfis falsos nada mais é do que a volta, com outra
roupagem, do terror na prevenção.
A reemergência da epidemia da aids no
Brasil (Grangeiro, Castanheira, Nemes) e a vergonhosa omissão, anos a
fio, dos programas governamentais em relação à concentração da infecção
pelo HIV entre jovens gays e outras populações requerem medidas sérias,
abrangentes, sustentadas e baseadas nas mais atuais evidências
científicas.
Pesquisadores, gente da academia e da
sociedade civil, defendem a convocação pelo Ministério da Saúde de grupo
de especialistas para a elaboração de um Consenso Nacional de Prevenção
em HIV e Aids.
Um consenso com diretrizes que assumam a
prevenção adaptada a diferentes pessoas e a diferentes populações, que
assumam a prevenção combinada, conjugando o uso facilitado de
preservativo e gel lubrificante, com o tratamento universal, a
profilaxia pré e pós exposição ao HIV, a ampliação da oferta do teste
rápido para os mais vulneráveis, mas também campanhas e ações baseadas
em estudos comportamentais e em modelos já validados pela comunidade
científica.
Um consenso guiado pela franca noção de
que fracassou a prevenção baseada apenas no mantra “use camisinha” em
todas as relações sexuais durante a vida toda, assim como fracassará o
comando único “faça o teste, inicie o tratamento”.
O que se espera são diretrizes fundadas
na garantia da livre escolha sobre as opções disponíveis de prevenção,
que permita que as pessoas conheçam aquilo a que têm direito, tomem suas
próprias decisões e, depois, tenham acesso assegurado a todas as
oportunidades de proteção.
Um consenso de prevenção em aids seria
uma importante ferramenta de gestão do Ministério da Saúde e, se
descentralizado, poderia contribuir com a redução do número de infecções
e mortes hoje em patamares inaceitáveis.
A constatação de pesquisa divulgada em
2015 pelo Ministério da Saúde, que pelo menos 45% da população
sexualmente ativa do país não usou preservativo nas relações sexuais
casuais nos últimos 12 meses, deveria mobilizar esforços extraordinários
para atualização da política nacional que inclua de forma articulada
todas as tecnologias e novos conhecimentos sobre prevenção. Dar “puxão
de orelha”, por meio de perfis falsos em aplicativos, em pessoas que não
se importam em fazer sexo sem camisinha, é passar longe da realidade da
epidemia no país.
Até mesmo na propaganda comercial, o
truque conhecido como “publicidade de choque” gera controvérsias éticas.
Na saúde, as publicidades de choque e baseadas na desconfiança ou
ameaça, como a dos perfis falsos, são um desastre. Os mesmos terrorismo e
medo (e sua versão atual, a trapaça) das campanhas antigas de aids já
foram usados para condenar o consumo de drogas, o que também afastava o
usuário e o dependente químico das mensagens.
No Brasil, a comunicação em aids tem
histórico de diálogo difícil com a publicidade e o marketing. Agências
de publicidade mercadológica são licitadas para divulgar a agenda
positiva do Ministério da Saúde, promover o ministro de plantão,
turbinar programas e realizações, mas nada entendem de promoção da
saúde.
A situação piorou desde a centralização e
censura prévia das campanhas de aids no gabinete do Ministro da Saúde,
após acerto com setores conservadores, e foi agravada com o desmonte de
corpo técnico qualificado em comunicação e prevenção que atuava junto ao
programa de aids.
O debate pouco tem a ver com o falso
dilema do direito individual versus direito da coletividade, como fez
divulgar o programa nacional de aids, ao defender o uso dos perfis
falsos em aplicativos.
Trabalhos científicos já demonstraram
que ações prescritivas e pouco transparentes de comunicação em saúde,
por serem inócuas, devem dar lugar a programas que valorizam as
culturas, as escolhas pessoais, as relações sociais e a participação
ativa daqueles diretamente afetados pelos problemas de saúde.
Mensagens de prevenção tendem a ser mais
efetivas não quando enganam e constrangem em prol do coletivo, mas
quando chegam perto das pessoas e utilizam mensagens baseadas na
confiança mútua.
Na França, o Instituto Nacional de
Prevenção e Educação para a Saúde – INPES, elaborou diretrizes baseadas
no fato de que comunicar sobre saúde é comunicar sobre um forte valor no
plano social e, por isso, governos não podem ser intrusivos,
normativos, não podem ir contra as liberdades individuais, nem devem
impor visão de mundo ou modo de vida. Dentre os princípios éticos das
campanhas de prevenção, o INPES destaca que é preciso respeitar as
escolhas de cada um, não estigmatizar comportamentos individuais de
risco, não marginalizar, não culpabilizar, não impor uma norma social
caracterizando bom e mal comportamento.
Além disso, uma campanha de saúde não
deve informar ou alertar sobre riscos sem propor todas as soluções
possíveis. Deve, sim, incitar a reflexão do destinatário da mensagem,
que lhe seja própria e respeite sua autonomia, suas crenças e sua
responsabilidade. Deve levar em conta as desigualdades de acesso à
informação e a diversidade de códigos culturais. E precisa, por óbvio,
sustentar e acompanhar a possível decisão de mudança, dar meios de o
sujeito agir e de colocar os conselhos em prática.
Uma campanha de prevenção em aids
dificilmente se sustenta com um “estalo genial” de publicitário,
assessoria de imprensa e lançamento em escola de samba. É trabalho árduo
de promoção, planejamento e avaliação em saúde. Segundo o Centro para
Programas de Comunicação da Johns Hopkins um projeto de comunicação em
saúde deve seguir seis passos: 1) investigação e análise, 2) desenho
estratégico, 3) desenvolvimento, produção e revisão de instrumentos e
métodos de comunicação, 4) gestão, implementação e monitoramento, 5)
avaliação de impacto, 6) planejamento para a continuidade.
Nada disso é feito nas campanhas relâmpago e sazonais de aids do Ministério da Saúde.
A Unidade de Promoção da Saúde da
Universidade de Toronto, Canadá, demonstrou que as estratégias de
comunicação em saúde avaliadas como mais eficazes trazem uma combinação
simultânea de campanhas de mídia, comunicação interpessoal e
envolvimento das comunidades e lideranças.
Modelos de comunicação em saúde foram
experimentados com sucesso em países das América Latina. Por exemplo, o
modelo de “difusão de inovações”, que utiliza agentes sociais como
geradores de mudanças, foca na influência interpessoal nas decisões
individuais e na criação de redes de comunicação; ou o modelo de
“comunicação para a mudança social” , que prevê o diálogo e a
participação da comunidade em todos os processos da comunicação em
saúde. (Mosquera)
É relativo e limitado o sucesso de
campanhas e técnicas de comunicação focadas na persuasão para a mudança
de comportamentos (Petty et al). Algumas campanhas de saúde servem para
mudar conhecimentos, para sensibilizar, mas nem sempre são suficientes
para mudar comportamentos conducentes à prevenção em saúde.
Num estudo clássico de prevenção do tabagismo (Peterson et al), a probabilidade de fumar aos 17 anos não foi menor entre aqueles submetidos a 65 peças de sensibilização entre 8 e 17 anos, se comparados com aqueles que não passaram pelas mesmas mensagens.
Outro estudo (Albarracin et al) analisou
mais de 350 campanhas de prevenção em aids em oito anos. Concluiu que
as campanhas são eficazes para mudar o conhecimento mas não são
suficientes para mudar imediatamente o comportamento.
A comunicação em aids, enquanto instrumento de prevenção, precisa, portanto, beber em outras fontes.
Isso vem sendo dito há muito tempo por
autores como Vera Paiva, alertando que a memorização e a compreensão de
argumentos de uma campanha não determinam a intenção de se comportar, e
que é preciso incorporar na prevenção os conhecimentos dos campos da
análise cultural e da pesquisa psicossocial; e por José Ricardo Ayres,
apontando que os comportamentos associados à maior vulnerabilidade não
são decorrência imediata da vontade pessoal. A meta das ações de
comunicação em saúde, que é tocar indivíduos e comunidades, não pode
menosprezar o poder dos grupos sociais e as condições nas quais os
comportamentos acontecem. E dificilmente, lembra Ayres, alguém irá
assumir comportamentos protetores e solidários sem que se torne primeiro
sujeito de sua própria saúde.
Campanhas e ações de prevenção dirigidas
aos mais vulneráveis devem incluí-los em todo o processo de comunicação
e são especialmente sensíveis: jamais podem estigmatizar e discriminar.
Focalizar sem discriminar, eis um grande desafio da comunicação contra a
aids. É abdicar da equidade em saúde deixar de executar uma política de
prevenção adequada à nossa epidemia concentrada. É violação de direitos
deixar de envolver determinadas populações e grupos, informando
primeiro que eles são mais atingidos pela aids, e construindo, com eles,
alternativas e possibilidades.
Parece que o programa nacional de aids
voltou às trevas no entendimento de que a comunicação é apenas a ação de
transmitir informações e ideias de um polo emissor para um polo
receptor. Nessa perspectiva, bastaria se preocupar com a utilização da
linguagem (gírias da juventude, #partiuteste, por exemplo) e dos
veículos (aplicativos de encontros, redes sociais etc ), que o sucesso é
garantido.
Desconsideram-se as desigualdades, as
vulnerabilidades pessoais e sociais, as diferentes realidades, desejos e
interesses e, por isso, tendem a simplificar e transformar quaisquer
discordância, resistência ou dificuldade em falta de informação ou em
ruído de comunicação (Araújo e Cardoso).
A comunicação ocupa um lugar central nas
nossas vidas. Vivemos em plena “sociedade da comunicação” (Miège), na
“era da informação” (Castells ). Por isso, a comunicação é um dos
principais ingredientes da organização social.
Entendida em um sentido amplo como
“interação social através de mensagens”(Gerbner), a comunicação deve
compor a natureza democrática da nossa sociedade, em que os processos de
decisão possam ser baseados na troca comunicativa entre os
participantes.
Enfim, a comunicação não pode ser
moralista, covarde ou autoritária, mas sim deve permitir que as pessoas
participem democraticamente das decisões que afetam a saúde e as suas
vidas.
Mário Scheffer é professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP
Referências:
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Institut National de Prévention et d’Éducation pour la Santé. www.inpes.sante.fr
http://ccp.jhu.edu/
Johns Hopkins. Center for Communication Programs. http://ccp.jhu.edu/
GRANGEIRO, Alexandre; CASTANHEIRA, Elen
Rose; NEMES, Maria Inês Battistella. A re-emergência da epidemia de aids
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(Botucatu), Botucatu , v. 19, n. 52, Feb. 2015
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PETTY, Richard E.; BAKER, Sara M.; GLEICHER, Faith. Attitudes and drug abuse prevention: Implications of the elaboration likelihood model of persuasion. Persuasive communication and drug abuse prevention, p. 71-90, 1991.
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AYRES, J. R. C. M. Práticas educativas e prevenção de HIV/Aids: lições aprendidas e desafios atuais. Interface (Botucatu), v. 6, n. 11, p. 11-24, 2002.
DE ARAÚJO, Inesita Soares; CARDOSO, Janine Miranda. Comunicação e saúde. SciELO-Editora FIOCRUZ, 2007.
GERBNER, George. Os meios de comunicação de massa e a teoria da comunicação humana. São Paulo: Cultrix, 1967.
MIÈGE, Bernard. A sociedade tecida pela comunicação: técnicas da informação e da comunicação entre inovação e enraizamento social. Paulus, 2009.
CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Jorge Zahar Editor Ltda, 2013
Fonte: CEBES
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