março 20, 2015

"A crise colocada pra valer". Resenha de La crisi messa a valore, por David Gallo Lassere (UniNômade)

PICICA: "Em poucas palavras: “A crise colocada pra valer” representa um esforço importante para redesenhar um mapa teórico e político à altura das apostas do presente. Ou melhor: coloca à disposição uma bússola preciosa, indispensável não somente para combater a incapacidade de articular um juízo crítico e a desorientação de informações, mas também e sobretudo para experimentar resolver “o quebra-cabeça da composição de classe.”"

A crise colocada pra valer

Resenha de La crisi messa a valore [NT. A crise colocada pra valer], livro que recolhe artigos sobre o estado da crise global do capitalismo, em 2015, por David Gallo Lassere, em Commonware, em 19/3 | Trad. UniNômade

La crisi messa a lavoro


Fruto de dois dias intensos de discussão em 29 e 30 de novembro passados, em Milão, “A crise colocada pra valer” [La crisi messa a valore], organizado por Commonware, Effimera, UniPop, CW Press / Edizioni Sfumature, é um ágil material que discute os novos cenários geopolíticos perguntando-se sobre o quebra-cabeça da composição de classe. Nesse sentido, propõe-se a reinterpretar a relação entre a articulação capitalista da força-trabalho e os processos de subjetivação, levando a sério as hipóteses e os desenvolvimentos teóricos ocorridos na dita transição “pós-fordista”, e ao mesmo tempo considerando os pontos de bloqueio. Pretende-se, assim, a experimentar repensar as hipóteses e tópicos teóricos no interior das transformações dos processos históricos e da luta contra a austerity. (nota dos organizadores do livro).

Autores: Gabriele Battaglia, Bruno Cava, Centro sociale Cantiere, Giuseppe Cocco, Salvatore Cominu, Orsola Costantini, Anna Curcio, Andrea Fumagalli, Massimiliano Guareschi, Christian Marazzi, Cristina Morini, Francesco Maria Pezzulli, Raffaele Sciortino, Carlo Vercellone, Paolo Vignola.

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(todos em italiano)



Resenha, por David Gallo Lassere

A crise é um método de governo. Ela fez surgir um autoritarismo da urgência que, impiedosamente, esvaziou a forma e a substância das ditas democracias “capitalo-parlamentares”, para retomar a expressão de Badiou. O laboratório grego demonstrou isso amplamente: desautorização do governo e empobrecimento em massa. Como escrevia já em sua época Milton Friedman: — macaqueado inúmeras vezes pelos tecnocratas europeus — somente uma grande crise oferece a ocasião para difundir de modo quase automático as transformações radicais: é graças às crises que, felizmente, “o politicamente impossível se torna politicamente inevitável”. Trata-se da dimensão constituinte da crise, ou seja, a ruptura definitiva com os últimos resíduos sobreviventes da precedente época histórica, inaugurada no quinquênio de 1968-73, crise que se configura, simultaneamente, como um relançamento da valorização capitalista e do comando sobre a nova composição de classe. A partir desses apontamentos de reflexão teórica e política, em 29 e 30 de novembro passados, em Milão, no Spazio di Mutuo Soccorso, se deu um seminário conjunto dos grupos Commonware e Effimera, cujas contribuições agora estão livremente disponíveis em e-book.

Os dois nós temáticos principais sobre o que se concentraram os trabalhos — em meio a um emaranhado de entrecruzamentos recíprocos nas diversas intervenções — foram os cenários econômico-políticos da governance imperial e a pesquisa de uma recomposição política, difícil de construir.

Partamos do começo. Se Guareschi individualiza nos deslizamentos em curso um “tipo de motor de irreversibilidade, uma singularidade que abre um campo disputado em que se definem novos equilíbrios e emergem novos atores institucionais”; Fumagalli, sondando as quatro fases diferentes da crise desencadeada em 2008, põe em evidência o seu caráter poliédrico e heterogêneo, relativo às especificidades dos diversos capitalismos regionais e o posicionamento hierárquico deles no imperialismo global. Tal perspectiva complexa consente em emaranhar as diferentes trajetórias da crise, o recuo das várias dinâmicas de acumulação e o conflito que produzem, em que desaguam de tempos em tempos no plano nacional e internacional. Os processos de financeirização estão ocorrendo a partir do ponto de vista dos patrões, com seu séquito de alianças inéditas no cenário geopolítico mundial (a recente criação de um banco de investimentos pelos BRICs, independente dos cofres ocidentais) e a expropriação violenta dos frutos produzidos pelo trabalho vivo, bem como a riqueza social já existente (o comum do capital).

Neste quadro conjuntural, recorda Sciortino, os EUA seguem imperturbáveis em seu saque contínuo das “das cadeias de valor global”. Apesar das dificuldades crescentes de seu regime de acumulação, os Estados Unidos constituem, de fato, o “pivô do sistema de reciclagem da liquidez internacional e dos excedentes comerciais”: uma posição de renda fundante sobre um aparato financeiro e cognitivo que se mantém, ainda, malgrado tudo, substancialmente desigualitário. É no horizonte deste caos sistêmico atravessado por gigantescos “abalos geopolíticos” que salta aos olhos a “guerra difusa”, analisada finamente por Marazzi, a “Europa dos Hunger Games” [NT: Jogos de fome], a que se refere Constantini ou, ainda, o “reverse engineering” [engenharia reversa] da China aflita na “armadilha da renda média” (Battaglia), assim como o “impasse do devir-sul da política” que apertam o Brasil a seguir das mobilizações imponentes de 2013 (cocco), as quais de fato marcaram a morte do precedente ciclo progressista: “a misteriosa curva da reta lulista”, para dizê-lo com Cava.

Para funcionar como articulação entre essa vasta panorâmica de diagnósticos e as interrogações posteriores, têm-se as intervenções de Vercellone e Cominu: o primeiro,  louvável pela clareza, voltado a esclarecer o arsenal conceitual forjado para compreender a passagem ao “capitalismo cognitivo”; o segundo, empenhado em apreciar com extrema lucidez e senso crítico essa mesma parafernália, delongando-se em particular sobre as categorias de “capital extrativo” e “trabalho cognitivo”. A partir desse mesmo quadro analítico, que rediscute as conquistas teóricas dos anos passados à luz dos acontecimentos recentes, as contribuições sucessivas tentam explorar a problematicidade inerente aos processos de subjetivação autônoma, num contexto de expectativas decrescentes de vida, precariedade forçada e baixa renda.

Se Morini insiste, com a escolta do feminismo materialista, sobre o  quão crucial é a reprodução e do valor de uso, para minar os dispositivos de organização e disciplina do capital; as intervenções do CS Cantiere, de Sisto (audível na Rádio Comum) e Vignola colocam em destaque o cotidiano de viver na crise, o imediato das necessidades concretas e a importância da criação de formas discursivas reconhecíveis, a fim de construir percursos de auto-organização capazes de melhorar rapidamente as condições de vida e materializar desejos, instâncias e paixões que abram novos horizontes de luta e agregação. Os dois últimos azulejos desse rico mosaico são, enfim, fornecidos por dois artigos de sabor distinto: o de Pezzuli, sobre a “não luta” nos call centers, e de Curcio, sobre a pluralidade das linhas de fratura operadas pelas lutas da logística, que evidenciam a centralidade do antirracismo radical.

Em poucas palavras: “A crise colocada pra valer” representa um esforço importante para redesenhar um mapa teórico e político à altura das apostas do presente. Ou melhor: coloca à disposição uma bússola preciosa, indispensável não somente para combater a incapacidade de articular um juízo crítico e a desorientação de informações, mas também e sobretudo para experimentar resolver “o quebra-cabeça da composição de classe.”

Fonte: UniNômade

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