PICICA: "Em “Nostalgia da Luz”, cineasta revela lutas dos mineiros e
resistências à ditadura Pinochet num palco inusitado: a solidão do
deserto de Atacama e suas estrelas"
Patrício Guzmán e a batalha da memória
Em “Nostalgia da Luz”, cineasta revela lutas dos mineiros e resistências à ditadura Pinochet num palco inusitado: a solidão do deserto de Atacama e suas estrelas
Por Deni Rubbo
A
partir de 1973, o Chile vivenciou, durante dezessete anos, uma
traumática experiência social e promoveu uma das páginas mais sangrentas
da história da América Latina: a ditadura de Augusto Pinochet
(1973-1990). Nesse reino da mentira e da escuridão, da aparência e da
hipocrisia, foram postos em funcionamento “modernos” métodos da cultura
do terror em mulheres, idosos e crianças, todos contagiados pela peste
do medo e da humilhação.
Não
é novidade que existem várias dificuldades, atualmente, de encontrar
centenas dos desaparecidos desse período. Também não são nenhuma
novidade as inúmeras tentativas simbólicas e políticas para que a
população chilena engavete esse passado.
Não
é de se espantar: os vencedores provisórios da história apostam que os
vencidos não voltarão a juntar pedaços que os fizeram possíveis.
Apostam
errado, pois. Com sorte, restam ainda românticos e revolucionários
obstinados pela memória social chilena, que vagam pelo país e pelo mundo
como estrelas solitárias, que trazem sempre a centelha da esperança.
Patrício Guzmán
Na
rua Titon, em Paris, mora um dessas estrelas. Seu nome é Patrício
Guzman, 72, documentarista, conhecido mundialmente pela direção da
trilogia La Batalla de Chile, de 1973. Após o golpe militar de
1973, Guzmán foi, de início, internado no Estádio Nacional em Santiago
do Chile, de onde seguiu depois para o exílio na Espanha e na França —
com passagem por Cuba.
Em seu website (www.patricioguzman.com),
na primeira página, está grafada uma frase de sua própria autoria que
serve, inclusive, como síntese de sua carreira artística: “Um país sem
documentários é como uma família sem álbum de fotografias”.
Não por acaso, obras dirigidas por Guzmán, como La Memoria Obstinada (1999), El caso Pinochet (2002) e Salvador Allende (2005), são exemplos de sua carga obstinada pela razão histórica de não deixar de confrontar seu país com seu passado. Nostalgia de la Luz, último filme de Guzmán, agora em exibição no Brasil, não foge à regra de sua produção cinematográfica.
A odisseia de Nostalgia da Luz
Mesmo com amplo reconhecimento internacional, Guzmán teve o projeto cinematográfico de Nostalgia da Luz negado por mais de quinze canais da televisão europeia. Evidentemente não se trata de um caso isolado.
“Entristece-me
verificar que – com o tempo –, aumenta a falta de confiança da
indústria com relação aos autores, particularmente que inventam obras
públicas insólitas, atípicas, singulares”, desabafa o documentarista
chileno.
Do sonho de criança…
À
primeira vista pode parecer estranho um documentarista essencialmente
político versando sobre as estrelas do deserto do Atacama. É que,
durante toda vida, Patrício Guzmán foi um aficionado pela astronomia. O
encantamento pela beleza do céu foi estimulado, quando criança, pela
leitura insaciável dos romances de Julio Verne. Aliás, outra paixão do
diretor, que chegou a dirigir o documentário Mi Julio Verne (2005).
Durante
a infância, Guzmán descobriu o mundo através do céu, viajando o planeta
no balão com os personagens de Verne, que após conhecer países e
continentes descansavam nas nuvens. Foi o precursor da ficção
científica, portanto, que despertou a paixão pela aventura e ativou uma
emoção de liberdade nunca sentida antes pelo documentarista, nascido na
bela cidade de Valparaíso.
A
paixão pela imaginação levou aos mistérios das estrelas, do céu e da
lua. Guzmán teve sorte. Afinal, o deserto do Atacama chileno é um lugar
especial para contemplar o universo cósmico. Os maiores telescópios do
mundo foram construídos nessa região. Astrônomos de vários países
descolam-se para lá.
Para
uma criança, estar no deserto do Atacama era a possibilidade de tocar
nas estrelas… Na realidade, não somos nós que observamos seu brilho
noturno, são as estrelas que nos observam. A beleza das imagens do filme
confirma a proposição.
… ao pesadelo de adulto
O
deserto do Atacama é composto de sal. A terra está totalmente
castigada. Não há pássaros. Guzmán mostra que tal região não é apenas o
bastião internacional da ciência astronômica e geologia. Ela está
carregada de história, de memória.
Porque não existe céu sem inferno.
Camadas
de mineiros, indígenas e operários formam uma segunda pele no deserto
do Atacama. Como se sabe, durante o “pródigo” século XX foram instaladas
modernas minas de salitre na região, submetendo os trabalhadores às
condições mais degradantes.
Particularmente
a região de Chacabuco, patrimônio cultural nacional na época de
Salvador Allende, transformou-se em campo de concentração durante a era
Pinochet.
Um dos prisioneiros, Miguel Lawner, cartógrafo, detalha
milimetricamente a arquitetura da prisão. Tudo gravado por sua mente.
Muitos dos encarcerados tinham ilegalmente aulas de astronomia, já que
os militares haviam proibidos cursos dessa natureza. Para os
prisioneiros, olhar para céu ou localizar constelações era muito mais
que um mero passatempo: era uma maneira de se sentirem livres mesmo que
por um só instante.
O trabalho da memória
O
passado nunca está em paz. O caldo da memória vem sempre acompanhado
pela indignação e pela raiva. “A memória é sempre guerra”, disse bem
Walter Benjamin.
Basta
olhar para as mulheres que, até hoje, perambulam pelo deserto em busca
dos desaparecidos durante a ditadura militar. Enquanto os astrônomos
rastreiam incansavelmente a terra para reunir partículas – e com isso
descobrir a verdade sobre elas –, as mulheres de Atacama rastejam por um
pequeno osso de seu passado, de seus ancestrais, para remediar suas
dores e angustias. “É impossível esquecer nossos mortos”, disse uma
delas.
A obstinação dessas mulheres comove. Comove porque são reais. Comove pela fé.
Ao relacionar o tempo do universo com a história humana, cabeça nas estrelas e os pés na terra, o filme Nostalgia da Luz reflete
uma indispensável reflexão sobre o trabalho da memória. Gravitando
entre a razão e a emoção, Guzmán encontra-se na fileira dos artistas
raros – como afirmava José Carlos Mariátegui, em seu texto “A imaginação
e o progresso” (1924) – em que a força criadora da imaginação germina e
amadure nas entranhas obscuras da história.
Deni Rubbo
Deni Rubbo é doutorando em Sociologia pela USP e escreve sobre cinema para Outras Palavras.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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