PICICA: "“Um espectro ronda a Europa”. Esse era o título da manchete de dias atrás do jornal italiano Il manifesto,
comentando as visitas aos governos europeus de Alex Tsipras e Yanis
Varoufakis, primeiro-ministro e ministro da economia da Grécia, ambos
da Syriza. Os dois estão na contramão do ônibus europeu, na iminência de
um choque, como descrito no jornal Der Spiegel, causando um verdadeiro pesadelo aos ordoliberais alemães. Imaginem o que poderia suceder com a vitória do Podemos na
Espanha neste ano: que magnífico espectro à espreita, um monstro real
gerado pelas forças produtivas e exploradas da quarta economia europeia!
Nas próximas semanas, vários turnos eleitorais estarão acontecendo na
Espanha, enquanto o mantra dos atuais governos europeus continua o
mesmo, agora com força redobrada, numa clara tentativa de amedrontar os
cidadãos espanhóis. Vamos nos preparar. Com a certeza de que a
arrogância e o mau olhado dessa propaganda serão derrotados."
O eixo Syriza-Podemos por uma nova Europa democrática
Por Toni Negri e Raúl Sanchez Cedillo | no Lobo Suelto! 16/2/15 | Trad. UniNômade—
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“Um espectro ronda a Europa”. Esse era o título da manchete de dias atrás do jornal italiano Il manifesto, comentando as visitas aos governos europeus de Alex Tsipras e Yanis Varoufakis, primeiro-ministro e ministro da economia da Grécia, ambos da Syriza. Os dois estão na contramão do ônibus europeu, na iminência de um choque, como descrito no jornal Der Spiegel, causando um verdadeiro pesadelo aos ordoliberais alemães. Imaginem o que poderia suceder com a vitória do Podemos na Espanha neste ano: que magnífico espectro à espreita, um monstro real gerado pelas forças produtivas e exploradas da quarta economia europeia! Nas próximas semanas, vários turnos eleitorais estarão acontecendo na Espanha, enquanto o mantra dos atuais governos europeus continua o mesmo, agora com força redobrada, numa clara tentativa de amedrontar os cidadãos espanhóis. Vamos nos preparar. Com a certeza de que a arrogância e o mau olhado dessa propaganda serão derrotados.
O que o Podemos poderia dizer sobre a Europa? Consciente da aceleração do tempo político que a vitória da Syriza na Grécia impôs, o discurso do Podemos sobre a Europa é, de um lado, formado pela sincera solidariedade e alto apreço pela vitória da Syriza, de outro lado, por uma avaliação prudente — a linha adotada por Tsipras poderia fracassar, no curto intervalo entre as eleições na Grécia e na Espanha. Mas prudência não é a mesma coisa do que ambiguidade. De fato, é óbvio como nada poderia ser mais perigoso do que uma posição ambígua, a respeito não apenas das políticas adotadas pela Troika na Europa. Qualquer ambiguidade, aqui, deve ser eliminada, e assim tem sido na prática, se avaliarmos baseando-se nos últimos meses. Duas Europas existem e é necessário posicionar-se numa ou noutra. A população sensata tem consciência que vencer na Europa somente é possível com uma frente, já aberta pela Syriza, e que agora precisa expandir-se pela Europa. A política da dívida, o tema da soberania e a questão da aliança atlântica (com os EUA) somente podem ser tratados a partir de uma esfera europeu total.
Já se esperava que haveria grande atenção nas propostas táticas e na política da equipe econômica e financeira da Syriza. Independente da avaliação sobre a qualidade das propostas, elas sinalizam um plano de cooperação transnacional e o abandono da demagogia antieuropeia típica das “velhas” esquerdas, uma demagogia que, em qualquer caso, nunca foi forte no Podemos. Claro que a aposta da Syriza está formulada em termos de defesa da soberania nacional (“contra a Troika”, “contra Angela Merkel” etc), mas na prática isto implica uma aceitação razoavelmente evidente da necessidade de uma intervenção política dentro e contra a União Europeia (UE) da maneira como é dirigida hoje. Nesse sentido, a opção primária agora está na coalizão dos PIIGS (sigla para Portugal, Itália, Irlanda, Grécia, Espanha) e forças da nova esquerda, a fim de sobrepujar o status quo da UE. Ao mesmo tempo, esta parece ser a única opção possível para o Podemos ganhar a eleição.
Vamos tentar avaliar as coisas com maior profundidade. Até agora, o confronto na Europa tomou a forma entre uma Europa neoliberal, neobismarckiana e fundamentalmente conservadora, e uma Europa democrática, constituinte e fundamentalmente afinada com as necessidades dos trabalhadores, camadas médias empobrecidas e precarizadas, juventude desempregada, mulheres, imigrantes e refugiados — os excluídos, velhos ou novos. A “alternativa”, por assim dizer, porque afinal de contas partiu da crise de 2008, a alternativa bismarckiana se impôs à força, deixando à outra Europa apenas um espaço marginal, de protesto e, por vezes, até mesmo gritos de desespero. Entretanto, quando a situação pareceu ficar estritamente fechada em relação às demandas de justiça e às revoltas contra a miséria, a alternativa real se apresentou, a começar da Grécia. Agora, a tarefa é afirmá-la, organizá-la precisamente nas áreas onde a iniciativa reacionária se impôs — onde se tenta afogar Hércules para além de qualquer salvação popular.
A primeira questão, a primeira dificuldade, é enfrentar a dívida. A Europa da Troika quer forçar as multidões europeias a pagar a dívida, e a habilidade em pagar essa dívida se torna o metro da democracia e do grau de europeísmo. Mas todos esses que se movem no fronte democrático pensam, ao contrário, que esse metro é insultante, porque as dívidas cobradas das pessoas hoje foram contraídas por aqueles que governaram ao longo dos anos. As dívidas engordaram as classes dominantes, não apenas mediante a corrupção, sonegação ou favores fiscais, gatos militares insanos e políticas industriais que não favorecem o trabalho, mas além disso ao submetê-la à lógica do rentismo financeiro e impor precarização e incerteza sufocante sobre as formas de vida. Cada homem, cada mulher, cada trabalhador teve de declarar-se culpado da dívida, da imputação de que eles foram responsáveis.
O momento chegou para dizer em alto e bom tom que não foram os cidadãos, mas os senhores do poder, os homens do projeto neoliberal, os políticos do “centro”, das “grandes coalizões” — mais extremas e exclusivas a cada vez — foram eles que geraram a dívida a partir do que vêm se apropriando para si e ante o que agora eles exigem um reembolso indevido. Contra essa condição servil para as pessoas (não apenas do sul da Europa, mas também do centro e de todo leste europeu), a nova esquerda, através da Syriza, está exigindo um resgate — uma conferência europeia ao redor da dívida, isto é, uma sede constituinte por um novo sistema de solidariedade, pelo estabelecimento de um novo critério de medida e cooperação fiscal e para as políticas do trabalho. Podemos pode trazer um apoio imenso a este projeto.
Todos sabemos que atrás desses tópicos reside um projeto de transformação profunda das relações sociais. Uma vez mais, da Europa e na Europa, há um projeto de liberdade, igualdade, solidariedade — um projeto que possamos chamar antifascista, porque ele repete a paixão e a força das lutas da resistência. A aliança entre Podemos e Syriza, e o impulso de fusão nesta aliança, endereça a todas as novas esquerdas europeias, a possibilidade de construir um modelo — um modelo para uma UE democrática e baseada na solidariedade, para além do mercado e contra ele.
Partindo desta refundação, a única política fiscal que pode ser feita está em reduzir ou abolir a dívida, que tem sido consolidada sucessivamente até os dias de hoje e então estabelecer e padronizar, para o futuro, critérios fiscais progressivos em toda a Eurozona. Os temas centrais do estado de bem estar social — educação, assistência médica, sistemas de pensão e políticas de moradia, mas também do trabalho doméstico e no campo do cuidado [care] — podem ser desenvolvidos uniformemente no nível europeu, acompanhando a grande inovação da renda básica de cidadania decente, generalizada e uniforme. Tudo isso deflagra uma batalha constituinte nesses espaços em que novos direitos de solidariedade podem ser reconhecidos, onde o comum se torna um elemento central da organização socioeconômica.
Porém, para vencer nesses temas, é preciso indicar o terreno da luta: este somente pode ser o espaço europeu em sua totalidade. O que nos traz ao tópico central, ao redor do que muitos desentendimentos têm se acumulado: a cessão da soberania. Já aconteceram transferências de soberania, e essas têm sempre sido feitas em favor dos poderes neobismarckianos do capitalismo financeiro. Demagogicamente, ao atacar as as cessões de soberania, direitos nacionalistas têm nascido e se desenvolvido perigosamente na Europa. E apesar disso, é estranho como essas posições podem de vez em quando ser assumidas (ou então encaradas com postura favorável) entre membros da Syriza, Podemos e outras forças da “nova Europa” que está se formando.
Nós devemos ser claros neste ponto: cada um dos países que entrou na União, e ainda mais os que entraram na zona do euro, não têm mais soberania plena. E isso é bom, porque foi por trás da soberania nacional que cada uma e todas as tragédias da modernidade se desdobraram. Se queremos continuar falando de soberania num sentido moderno (e clássico), quer dizer, de um poder “em última instância”, nós devemos ser claros que a soberania está cada vez mais identificada com Frankfurt, com a torre do Banco Central Europeu.
A nossa situação está caracterizada por uma duplicidade perigosa. Precisamos reconhecer isto: nós precisamos de Frankfurt, de uma moeda europeia, se não quisermos cair como presas dos poderes das finanças globais, da política dos Estados Unidos ou outros gigantes continentais que estão se posicionando contra a Europa; mas nós devemos também recuperar Frankfurt para a democracia, para impor-lhe a razão dos povos — e Frankfurt deveria ser assaltada pela Europa: primeiro pelos movimentos e, então, gradualmente, pela maioria das democracias europeias e por um Parlamento Europeu transformado em assembleia constituinte. Com a globalização, a centralidade da governança monetária de zonas continentais foi imposta em todo lugar — e a Europa é uma dessas zonas continentais. É impossível imaginar uma batalha política mais essencial do que aquela levando ao controle democrático da moeda europeia. Esta é a tomada da bastilha hoje.
Além disso, está claro que meramente levantar o assunto do controle sobre o vértice político e monetário da Europa, e insistir na dissolução das velhas soberanias monocráticas, poderiam abrir, de um modo produtivo, o tópico do federalismo, que é outro passo essencial para a construção de uma nova Europa. Federalismo: não apenas alguém quer que as nações europeias recomponham-se num diálogo constituinte, mas também, e acima de tudo, uma articulação entre todas as nações, todas as populações e linguagens que querem se sentir culturalmente e politicamente autônomas, com um quadro unitário, isto é, federal. Não são apenas os PIIGS que querem isto; também há a Escócia, Catalunha e o País Basco e todas as demais regiões que exigem autonomia e habilidade efetiva de decidir sobre as suas constituições social e política. O federalismo será a chave para a construção da Europa. O tema da soberania pode apenas ser levantado e usado em termos de pluralidade, subscrevendo às dinâmicas que articulam um franco federalismo para os próximos anos.
Aqui nós vemos novamente que somente a esquerda — a nova esquerda que parte da radicalidade democrática dos movimentos emergentes de luta e se organiza ao longo de linhas emancipatórias (Syriza e Podemos) — pode impor à União Europeia não um instrumento de dominação, mas uma meta democrática. Radicalidade da Europa-de-esquerda-democrática, este dispositivo está se tornando cada vez mais importante para definir a defesa dos interesses da classe trabalhadora e para a emancipação da população em relação à pobreza. Existe uma longa e suja tradição de soberanistas de esquerda que deve ser encerrada, assim como nós devemos derrotar as experiências populistas que usam sentimentos nacionais e transformam-nos em impulsos fascistas (nacionalistas, identitários, isolacionistas). Somente uma esquerda europeísta, profundamente transformada pela radicalidade democrática dos movimentos emergentes contra a austeridade, podem construir uma Europa democrática.
Aqui, outro problema emerge, que nós podemos chamar de “questão atlântica” — é um problema geralmente contornado ou eliminado do debate, como se fosse óbvio que o processo da unificação europeia devesse necessariamente desenvolver-se sob a proteção vigilante dos Estados Unidos. A Europa foi promovida dentro da Resistência antifascista de maneira a superar a era das guerras que, até a metade do século, tinha destruído, empobrecido e humilhado as suas populações.
Contra essa condição, os primeiros elementos do discurso europeu foram construídos durante a era do pós-guerra na Europa e a transición na Espanha, com a consciência de que a paz significava a possibilidade de democracia, enquanto que a guerra sempre significou fascismo e militarismo. Depois da queda do muro de Berlim, a unidade europeia também perdeu as suas características como último fronte contra o mundo soviético e o expansionismo russo. Dessa maneira, a meta da União Europeia se recentrou e reorganizou ao redor do quadro da civilização, nossas estruturas jurídicas e autonomia no ambiente global.
Mas agora a Europa está cercada de guerras. Todo o Mediterrâneo está cruzado por uma única linha de guerra, por fascismos e ditaduras, que se alastram por toda a Europa em movimentos imigratórios, tensões críticas causadas pela política energética e trocas comerciais. É uma linha que se estende por todo o caminho até o Oriente Médio, fazendo da Europa um ator perigosamente exposto a movimentos armados com importância e liderança globais.
Além disso, na fronteira oriental da Europa, uma guerra sem sentido está se desenvolvendo entre populações falantes do russo, com responsabilidades que deveriam ser colocadas num âmbito global de controle, pois a guerra contradiz os interesses das populações europeias como um todo. Desta perspectiva, a soberania da Europa — não mais a soberania imaginada de cada país, mas a soberania real da União que está sendo construída — é projetada na OTAN e usurpada por ela. Isto é uma cessão verdadeira de soberania nascida das populações europeias!
Quando Tsipras coloca, de maneira simbólica, a necessidade de lidar com o problema, o premiê grego toca numa costura fundamental das estruturas europeias. Ao fazer isso, ele introduz um problema a que nós deveríamos responder sem nos iludirmos de que pudesse ser resolvido imediatamente, mas também sem negar a existência de seu impacto central. Referimo-nos ao relacionamento da UE com a paz ou a guerra, com a paz não apenas na Europa, mas também ao longo de suas fronteiras. Além disso, está imediatamente claro que a questão atlântica não é um problema que concerne apenas paz e guerra: é um assunto de paz e guerra traçado pelo sistema de controle e/ou comando sobre as estruturas produtivas e financeiras da própria Europa.
De maneira a não ser hipócrita, a fim de falar claramente em imprimir um ímpeto maior aos processos de construção de uma força política para a esquerda europeia, nós vamos novamente colocar algumas questões na mesa que não podem ser deixadas de lado.
O que o Podemos diz ou faz sobre a imigração, sobre os refugiados? Mas também — repetindo-nos e tornando a nossa questão mais precisa — que diz sobre a OTAN, sobre os conflitos regionais em curso na UE? Se tais tópicos forem considerados “chabus” no reino eleitoral, é necessário evitá-los e/ou respondê-los com exercícios retóricos, para sair do caminho? Não, não mesmo: é muito difícil adotar o slogan “primeiro nós tomamos o poder, depois discutimos o programa”, neste domínio. O tópico da paz e guerra não pode ser considerado secundário. Posicionar-se sobre eles significa clarificar sem ambiguidade a respeito da orientação fundamental do grupo liderando Podemos, não apenas a respeito de questões de paz e guerra, mas também em assuntos que se referem à reforma e um projeto constituinte que afete toda a Europa.
A coragem e seriedade com o que Tsipras desenvolveu todo o contexto de tópicos, que são agora importantes para a construção de uma Europa fora da Troica, são os mesmos que podem permitir-nos de continuar traçando um dispositivo “além da OTAN”. Os movimentos e governos de uma nova esquerda sabem que têm de tomar esses assuntos como centrais. Sem ambiguidades, consciente de que a mesma conjuntura global pode agora contribuir para a sua solução. De fato, o que cidadãos do mundo estão exigindo, neste ponto, é uma Europa democrática no conjunto de uma nova realidade global, porque a Europa é vista como uma realidade que pode renovar a tradição democrática em longo prazo, seguindo a trilha aberta por Syriza e Podemos, como esperança por reforma e em mover-se para além do capitalismo.
Os movimentos europeus querem ser incluídos na iniciativa política continental que o eixo Podemos-Syriza podem criar/estão criando no espaço europeu. Essa iniciativa constitui particularmente um ponto de atração para as novas esquerdas e a nova radicalidade democrática em formação no sul da UE. O ritmo tanto quanto o grau de articulação deste processo vai depender do curso presente do governo da Syriza e do sucesso eleitoral do Podemos. Nós todos podemos organizar uma ruptura constituinte no espaço europeu.
Fonte: UniNômade
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