PICICA: "As crises,
como soube demonstrar de modo didático o velho Marx, têm a trágica
dádiva de separar o real do ilusório, trazendo à superfície o que estava
encoberto sob a aparência de normalidade. Se já não esteve
suficientemente evidente ao longo de sua trajetória política, em
especial nos últimos 13 anos, o momento difícil pelo qual passa o país
atualmente, desnuda com especial clareza o papel de um importante ator
na cena política brasileira: Lula."
Lula, o cerberus da política brasileira
Por Edemilson Paraná.
As crises,
como soube demonstrar de modo didático o velho Marx, têm a trágica
dádiva de separar o real do ilusório, trazendo à superfície o que estava
encoberto sob a aparência de normalidade. Se já não esteve
suficientemente evidente ao longo de sua trajetória política, em
especial nos últimos 13 anos, o momento difícil pelo qual passa o país
atualmente, desnuda com especial clareza o papel de um importante ator
na cena política brasileira: Lula.
Poucas
dúvidas restam quanto à sua disposição para voltar ao centro da disputa
eleitoral em 2018. E não se trata apenas de vontade pessoal. Seu partido
não tem outra opção. Emparedado pela conjuntura, tendo de gestar à
duras penas um pacto político-social que desmorona; apenas assentado no
incomparável carisma, influência e habilidade política de seu líder
histórico, o Partido dos Trabalhadores tem alguma chance de concorrer de
modo competitivo à Presidência. Pudera. Em volta do ex-presidente nada,
nenhuma alternativa real, pode de fato surgir e florescer no interior
do PT. É a própria monumentalidade de Lula – como gestor habilidoso de
interesses hegemônicos – que também impede a produção do novo em seu
interior.
Eis a
maldição do bonapartismo lulista: se é verdade que o PT não pode ser
concebido atualmente sem ele, é igualmente verdadeiro que tudo em que o
ex-presidente toca acaba por morrer cedo ou tarde. Em seu nome – que ao
longo dos anos deixou de ser meio para se tornar o próprio fim da
política petista, como metonímia da busca pela manutenção do poder à
qualquer custo, tombaram quadros históricos, e é sobretudo em seu
entorno que se articula a blindagem que ora assistimos no âmbito da
Operação Lava Jato. Aponta-se, dessa forma, uma amarga contradição: como
sinônimo de sua salvação, Lula é o maior agente da atual desgraça
petista.
Nos últimos
meses, sua condição de cerberus da política brasileira desnudou-se com
eloquência. De modo veloz, quase ansioso, nas mil rotações por minuto
que exigem a gestão de qualquer crise, Lula se fez tricéfalo. Como
generoso agente da banca, enquanto silenciava sobre a criminosa evasão
de divisas de ricaços brasileiros no HSBC suíço – muitos deles
financiadores de campanhas eleitorais, “enquadrou” seu partido para que
aceitasse, sem grita, as medidas de ajuste e austeridade levadas à cabo
pelo “Chicago boy” e ex-FMI Joaquim Levy. Não é demais lembrar que, nas
últimas eleições, entre os agitadores do “volta Lula” nos bastidores
estiveram proeminentes representantes de grandes instituições
financeiras. Igualmente, como interlocutor junto ao mais atrelado ao
Estado dos setores da indústria produtiva no Brasil, achegou-se das
empreiteiras, em especial da Odebrecht, nos jatinhos de quem, sabemos, o
ex-presidente é presença cativa. Por fim, posou em abraço com Guilherme
Boulos do MTST na entrega de casas do programa Minha Casa Minha Vida,
subiu em palanques com sindicalistas em “defesa” da Petrobras e convocou
o MST – o “exército de João Pedro Stédile” – para a “guerra”.
Em nome de
quem combate o cerberus Lula? De que lado está? Dos bancos, do capital
produtivo e das empreiteiras, ou dos movimentos sociais? Talvez
acredite, como antes, ser possível agradar a todos. Há, no entanto,
evidentes contradições de interesses entre tais setores, especialmente
agora. Em tempos de aperto, de recrudescimento dos antagonismos
econômicos, políticos e sociais, em quais saídas apostará realmente?
Qual de suas cabeças diz a verdade, por meio de qual delas mente e
confunde?
Por mais
curioso que pareça, a resposta não pode ser outra: em todas e em nenhuma
delas. É justamente essa aparente “ambiguidade” que faz de Lula e do
PT o que são: o encantamento fatal, como um pêndulo, do mito em torno da
eterna e irremediável “contradição”, da figura, do partido e do governo
para sempre “em disputa”, ainda que mantendo, ao fim e ao cabo, e de
modo indefinido, intocada a grave estrutura econômica e social do país.
É, pois, falando, ao mesmo tempo, para todos esses setores e para nenhum
deles que Lula habilmente mantém-se como o coringa da política
brasileira, a carta na manga a ser utilizada no momento necessário.
O plano,
como metonímia da própria trajetória dos governos petistas anteriores,
está traçado: dois anos de duro ajuste econômico e concessões à banca,
dois anos de acenos ao setor produtivo e movimentos sociais. Aumento de
popularidade. Manutenção no poder. Tudo muda para permanecer exatamente
como antes. Mas os tempos são outros. Nenhuma fórmula é eterna e o mar
não está para peixe. Pouca coisa indica que tal aposta será bem-sucedida
novamente. Em tempos extremos, alguém terá de ceder. É também por isso
que a cabeça (ou as cabeças) de Lula é o prêmio mais desejado pela
oposição à direita, tão bem vocalizada nos microfones na mídia
oligopolista. Por mais previsível que a aposta pareça a se julgar pelo
passado recente, ninguém quer aceitar mais o risco de pagar para ver. A
verdade é que, ainda que isso as tenha favorecido de modo notável, as
elites brasileiras, em especial a financeira, cansaram-se de conversar
com um bicho de três cabeças, querem uma cabeça só: a sua própria
cabeça.
Diante desse
emparedamento, algo parece claro: desejando-as genuinamente ou não,
Lula e o PT já mostraram que estão dispostos a sacrificar pouco ou quase
nada pelas ditas “reformas estruturais”, tão necessárias para o superar
o círculo vicioso de dependência, vulnerabilidade e subdesenvolvimento
em que historicamente estamos aprisionados. A “Frente de lutas pelas
reformas estruturais”, salutar iniciativa que ora se desenha com a
participação de partidos de esquerda, sindicados e movimentos sociais
corre, portanto, sério risco de ser capturada, simbólica ou faticamente,
como trincheira de defesa de um governo desgastado ou como mais um
palanque para promessas eleitorais vazias, novamente traídas. É o que
quer o lulismo.
Quanto aos
rumos da esquerda de fato diante dessa eterna espera por Godot, o outro
lado do Atlântico tem fornecido algumas boas dicas: “que se vayan
todos”. Já cruzamos o limite do absurdo. A direita neoliberal, e as
velhas “esquerdas” que, no governo, aplicam de modo análogo seu pacote
de maldades devem ser tratadas igualmente e não como diferentes faces de
um “mal menor” nas bordas do atual arranjo de poder. Precisamos, com
diálogo verdadeiro e sem sectarismos, mostrar à sociedade brasileira que
há saídas reais, concretas e sólidas à esquerda da ordem para o
atoleiro em que estamos metidos, alternativas que coloquem as pessoas e
as necessidades sociais em seu centro, que façam os que tem muito
retornar o que obtiverem da sociedade em prol dos quem tem menos e que,
ao contrário daqueles, sempre pagam a conta dos “momentos difíceis” do
país desde o seu início. Por mais que um suposto senso de
“responsabilidade histórica” tenha eventualmente nos colocado no mesmo
palanque de cerberus quaisquer, neste momento a política e a população
brasileira pedem distinções claras. Já passou da hora de sermos apenas
uma voz, forte e uníssona: a voz dissonante.
***
Edemilson Paraná é jornalista, mestre e doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília.
Fonte: Blog da Boitempo
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