PICICA: "Brasil vive febre de encarceramento, atiçada pela mídia e
conservadores. Número de presos cresceu quinze vezes mais que população,
em quinze anos. Estamos agora mais seguros?"
Retratos da insanidade carcerária
– 5 de março de 2015
Brasil vive febre de encarceramento, atiçada pela mídia e conservadores. Número de presos cresceu quinze vezes mais que população, em quinze anos. Estamos agora mais seguros?
Por André Barrocal, na Carta Capital
O mineiro A.M.P. foi preso em flagrante em 2013 ao tentar
furtar uma moto no Rio de Janeiro. Dois anos antes, entrara em vigor uma
lei que estimula os juízes a aplicar penas alternativas, entre elas o
uso de tornozeleira eletrônica ou o pagamento de fiança. A ordem de
prisão, supunha-se, deveria ficar reservada a situações mais graves.
Para A.M.P., não adiantou. Por ser réu primário e não ter antecedentes, a
promotoria sugeriu uma punição inicial branda, mas a juíza condenou-o a
12 meses de prisão preventiva, sob o argumento de evitar ameaças à
sociedade, até a decisão final sobre o caso. O rapaz foi solto em 2014 e
hoje mora em local incerto, o que impede sua intimação para um
julgamento no qual o Ministério Público propõe anular todo o processo.
A história de A.M.P.
é ilustrativa de uma epidemia que tomou conta do Brasil nos últimos
anos. O País ficou viciado em prender e faz pouco caso de outras
soluções, talvez mais produtivas e inteligentes, situação que já causa
desconforto em autoridades. Entre delegacias e presídios, os cárceres
brasileiros amontoavam 581 mil detentos em dezembro de 2013, último dado
oficial disponível. Segundo estimativas extraoficiais, no fim de 2014
esse total já havia ultrapassado os 600 mil, entre condenados e réus à
espera de julgamento. É a quarta maior população prisional do planeta,
atrás de Estados Unidos, China e Rússia. E cresce em ritmo alucinante.
De 1995 a 2010, subiu 136%, porcentual abaixo apenas daquele registrado
na Indonésia (145%). [No mesmo período, o número de habitantes Brasil
cresceu 8,4% — de 160 para 190 milhões. Os presos avançaram, portanto,
quinze vezes mais rápido que o a população – Nota de “Outras Palavras”] No ritmo atual, o Brasil chegará ao bicentenário de sua independência com 1 milhão de reclusos.
O que para alguns parece boa notícia não
justifica festejos. O fantasma da cadeia como punição não tem conseguido
conter os assassinatos, o crime mais danoso que se pode cometer. O País
é recordista mundial em homicídios, cerca de 60 mil por ano. O número
só aumenta, apesar do encarceramento massivo. Foram 37 mil mortes em
1995, 45 mil em 2000 e 56 mil em 2012, último dado conhecido. “Estamos
naturalizando o superencarceramento no Brasil e isso é preocupante.
Prendemos muito e errado. O sistema não consegue se concentrar nos
crimes contra a vida”, diz o diretor do Departamento Penitenciário
Nacional, Renato de Vitto.
Uma parcela ínfima, 12%, está presa por
assassinato. O índice de resolução desse tipo de crime é ridículo, entre
5% e 8% dos casos. O latrocínio, roubo com morte, representa 3%. O
grosso da massa carcerária é formado por criminosos menos agressivos.
Roubo e tráfico de drogas representam cada um 26%. Há ainda 14% por
furtos (roubo sem violência) e 20% de casos considerados leves.
O sistema é um sumidouro de verbas. Entre
presídios e unidades socioeducativas, em 2013 foram gastos 4,9 bilhões
de reais, segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A despesa média com cada preso, informa o Depen, situa-se entre 2,5 mil e 3 mil reais por mês (valor aproximado do investimento anual com alunos da rede pública).
Os gastos não dão conta, porém, da sanha
encarceradora. São necessárias 216 mil vagas novas para acomodar em
condições decentes a massa hoje presa. Sem isso, assistem-se à
superlotação das cadeias e a um ciclo vicioso. Do jeito que as cadeias
brasileiras estão – lotadas, sem controle do poder público e entregues
ao domínio do crime organizado –, não resta dúvida, dali ninguém sai
melhor, só pior. “Presídio é um ambiente criminógeno. Prender deveria
ser exceção, não regra”, defende o juiz Luís Geraldo Sant’ana Lanfredi,
coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema
Carcerário do Conselho Nacional de Justiça. “O sistema é medieval. Nele
não existe nenhuma possibilidade de ressocialização”, afirma Maria Laura
Canineu, diretora no Brasil da Human Rights Watch, entidade que há um
mês divulgou um relatório sobre a caótica situação no País.
O complexo penitenciário de Curado, no
Recife, é o exemplo mais recente do risco de o encarceramento lotar as
cadeias e estas se transformarem em escolas de crime. O governo de
Pernambuco enfrenta uma rebelião desde o início do ano, motivada pela
superlotação. O local tem capacidade para 2 mil detentos, mas abriga
quase 7 mil. Na fúria intramuros, não faltaram foices, facões e
barbárie. O preso Marco Antonio da Silva, de 52 anos, foi decapitado
pelos colegas.
É sintomático que a crise tenha eclodido
em Pernambuco. O estado apostou nas prisões em massa no combate ao
crime. Sob o comando do falecido Eduardo Campos, criou-se o programa
Pacto Pela Vida, para coibir assassinatos. De lá para cá, a população
carcerária triplicou. Soma hoje 31 mil. Suas cadeias aguentam, porém,
não mais que 11 mil detentos. A situação ficou tão crítica que o governo
tem repensado sua estratégia. “É importante adotarmos mais as penas
alternativas, para os jovens não serem capturados por quadrilhas nos
presídios”, especula Pedro Eurico, secretário estadual de Justiça.
A tornozeleira eletrônica, de
monitoramento por GPS, é uma opção. Segundo estimativas, 21 mil estão em
funcionamento e outras 30 mil, prontas para uso. É uma opção mais
econômica também. Custa 10% das despesas com encarcerados. Prisão
domiciliar é outro caminho, percorrido por 147 mil presos. Uma lei de
2011 tentou estimular a aplicação de medidas alternativas. Em vão, pelo
que indicam as estatísticas.
A explicação talvez
esteja na “cultura do encarceramento”, apontada recentemente pelo
presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, como um dos
“problemas mais sérios” do Judiciário. Nunca um chefe da mais alta
Corte do País havia se pronunciado assim sobre o tema, nem perante
colegas de toga. A manifestação pública deu-se no lançamento de um
programa-piloto que tentará “quebrar” essa “cultura”.
Desde a terça-feira 24, o Fórum
Criminal da Barra Funda, em São Paulo, o maior da América Latina, passou
a realizar as chamadas audiências de custódia. Presos em flagrantes têm
de ser levados pela Polícia Civil a um juiz em até 24 horas após a
detenção. Normalmente o suspeito espera em uma delegacia de 100 a 120
dias, antes do tête-à-tête em São Paulo. Nas audiências, uma
equipe de nove juízes faz uma primeira triagem. Com base nos
antecedentes do acusado, no relato da polícia e na versão do preso,
decide se há razões para uma prisão até o processo ser julgado ou se
podem ser aplicadas alternativas. O procedimento está previsto em
tratados internacionais e busca prevenir sobretudo a tortura. Um efeito
colateral positivo poderia ser o desestímulo ao encarceramento. Ao menos
na expectativa de Lewandowski, pois a decisão não será tomada só com
base em papéis.
Uma experiência pioneira no Maranhão
levada adiante após a crise em Pedrinhas, no verão passado, sugere que a
iniciativa pode dar algum resultado. Relatório concluído em janeiro
contém um balanço de 84 audiências realizadas entre outubro e dezembro.
Desse total, 48,8% terminaram sem ordem de prisão. Para o juiz autor do
relatório, Fernando Mendonça, o resultado foi positivo. Como as prisões
maranhenses estão dominadas pelo crime organizado, é benéfica a
seletividade no encarceramento e a separação entre quem é perigoso e
quem praticou um crime ocasional ou episódico. Se as audiências forem
adotadas como regra no País, escreveu Mendonça, “ficará para trás o
estigma das prisões abundantes, inúteis e de qualidade técnica
duvidosa”.
Nem tudo é
otimismo. Responsável por implantar o projeto em São Paulo, a juíza
Márcia Helena Bosch, da Corregedoria do Tribunal de Justiça, vê um
“equívoco” na ideia de que a audiência de custódia vai agir para
esvaziar cadeia, pois há “um problema muito grave de criminalidade”. “A
audiência de custódia tem sido vendida como uma panaceia para o
encarceramento e isso não é verdade”, concorda Paulo Malvezzi, assessor
jurídico da Pastoral Carcerária. Ele aponta, porém, outra razão: o
conservadorismo de toga. “Os mesmos juízes que hoje prendem
provisoriamente e condenam por motivos absurdos são os mesmos que
estarão na audiência.”
A opção pelas prisões em massa remonta
aos anos 80 e 90, em linha com uma tendência mundial. A ideia de
recuperação dos criminosos enfraqueceu-se, em boa medida, por causa de
iniciativas surgidas nos Estados Unidos, a exemplo da política de
tolerância zero. Venceu a “linha-dura”, defensora da segregação de quem
comete um delito. Para Salo de Carvalho, professor de Direito Penal da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista em criminologia,
apesar de seguir uma tendência mundial, o encarceramento massivo no
Brasil tem suas peculiaridades, a começar pelo foco em crimes contra o
patrimônio (furtos, roubos) e drogas. “O aumento do encarceramento
aumenta a violência, todos os estudos mostram isso.”
Segundo o acadêmico, uma medida imediata
de desafogo das prisões deveria ser a descriminalização da posse de
drogas, como acontece em Portugal há anos, no estado norte-americano do
Colorado desde 2014 e no Uruguai a partir deste. A lei em vigor, de
2006, foi um dos principais combustíveis do abarrotamento das cadeias.
Desde sua edição, somaram 100 mil as prisões por tráfico.
A lei atual criminaliza o uso, embora não
chegue a prescrever punição com cadeia nestes casos. Determina
advertências sobre os malefícios, prestação de serviços comunitários e a
participação em cursos educativos. O problema é existir uma linha tênue
de interpretação entre quem é usuário e quem é traficante, riscada pelo
policial, primeiro, e pelo juiz, depois. É bem mais comum o
enquadramento como traficante, crime para o qual a pena é a de reclusão.
A história do publicitário gaúcho
Alexandre Thomaz é um exemplo desse rigor excessivo. Em 2002, ele
descobriu um câncer na garganta. Deixou de sentir sabores, perdeu a fome
e peso. Por conselho médico, descobriu na internet que a maconha
estimula o apetite. Plantou pés de cannabis em um sítio. Em 2009,
graças a uma denúncia anônima, foi preso como traficante. Está em
liberdade, mas responde a processo por tráfico e pode pegar de 5 a 15
anos. “Os cidadãos não sabem o que é tráfico. Têm uma imagem a respeito,
mas não sabem o que se encarcera como tráfico no Brasil”, explica
Carvalho.
Essa mistura da
imagem entre usuário e traficante tem alguns responsáveis, entre eles a
mídia, que estimula o clima de medo alimentador das políticas públicas
de encarceramento em massa. O papel de jornalistas no tratamento da
criminalidade dispensado por governos, tribunais e parlamentares mereceu
um estudo em 2012 na Fundação Escola do Ministério Público do Paraná. O
trabalho intitula-se “A influência da mídia no processo penal
brasileiro e seus reflexos no julgamento dos crimes” e deixa os meios de
comunicação em maus lençóis, especialmente aqueles programas
“pseudojornalísticos” na linha Ratinho, Datena e congêneres.
O autor do estudo, Fernando Michalizen,
analisou uma série de leis aprovadas no Congresso e identificou, quase
sempre, algum escândalo midiático por trás. Dois casos relatados: a Lei
de Crimes Hediondos surgiu em 1990 após uma onda de sequestros de
figurões, incluídos aqueles dos empresários Roberto Medina e Abilio
Diniz, noticiados sem trégua dia e noite. Quatro anos depois, o
Congresso incluiu na lista de crimes hediondos o homicídio qualificado,
resultante da intenção de matar. Motivo? O assassinato em 1992 da atriz
global Daniela Perez por um colega de novela.
A tentativa de mudar a Lei de Crimes
Hediondos para moderar a onda encarceradora caiu, ela mesma, na
armadilha midiática, segundo o estudo. Em 2004, o então ministro da
Justiça, Márcio Thomaz Bastos, defendeu a revisão da lei, que lista uma
série de crimes que podem ser chamados de “os piores” para os
brasileiros. Homicídio doloso, latrocínio, estupro e extorsão mediante
sequestro ou seguida de morte, entre outros. Para estes, a lei de 1990
não admitia nem redução da pena após certo tempo de cadeia. Bastos
defendia o combate à cultura do encarceramento e o desafogo dos
presídios. Foi alvejado pela mídia, segundo Michalizen, que enxergou no
noticiário uma predileção por mostrar o ministro como alguém disposto a
soltar milhares de criminosos.
A cultura do medo disseminada pelos meios
de comunicação é só um dos obstáculos ao debate do encarceramento
massivo. E não só no Brasil. Ministro da Corte Suprema da Argentina e
vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal, Eugenio
Raúl Zaffaroni acredita que o mundo moderno no fundo gosta da situação.
As sociedades atuais são excludentes e precisam se livrar dos
indesejados. Sistema prisional que não recupera ninguém e parece um
matadouro ou uma universidade do crime seria o bueiro perfeito. As
elites políticas e econômicas não sujam as mãos. “Quanto mais se matem
os pobres, melhor. Esse é o programa das sociedades excludentes”, resume
Zaffaroni.
Colaborou Marcelo Pellegrini
Fonte: OUTRAS MÍDIAS
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