março 03, 2015

"Santo-daime, a legalização como cuidado, entrevista com Wallace Hermann" (UniNômade)

PICICA: "Na segunda entrevista da série sobre a “Legalização das drogas e suas potências políticas”, entrevistamos Wallace Hermann, militante das rádios comunitárias e movimentos sociais, que hoje reside no Centro “Rainha do Mar”, em Pedra de Guaratiba, na Baía de Sepetiba (RJ), onde trabalha diariamente com a produção, uso ritual, preservação e difusão da memória da doutrina do Daime. Fomos muito bem acolhidos na casa à beira mar onde funciona a igreja, sob a direção do fotógrafo e produtor musical Marco Imperial. A entrevista foi toda ela realizada com o pano de fundo da paisagem de pescadores da baía de Sepetiba e um rumorejar sibilino de pequenas ondas. Chamado de ayahuasca, Yagé e outras denominações regionais, o santo-daime é uma bebida enteógena que há milênios desceu os Andes, junto com a cultura inca, para se tornar uma prática biopolítica das tribos amazônicas das terras baixas. 

Relatada por jesuítas durante o período colonial, está presente na obra de José de Alencar em “Iracema”, em que a personagem-título é uma protetora dos segredos do vinho da Jurema, que contém o mesmo princípio ativo do Daime, o DMT (n,n-dimetiltriptamina). Cristianizado no Brasil moderno, o Daime incorpora elementos das tradições caboclas do Nordeste, afro-brasileiras, xamânicas, misticismo popular, esoterismo  em geral, experimentação estética e espiritismo. O culto do Daime se tornou igreja e, legalizado para fins religiosos e regulamentado pelo CONAD, disseminou-se pelas metrópoles brasileiras em todas as regiões, tornando-se um fenômeno significativo da vida cultural e social do país. 

Inúmeras questões, como se vê, se entrecruzam nas práticas associadas ao Daime. Embora a maioria das entrevistas sobre o santo-Daime tenda a focar na experiência psicoativa (a “viagem”), buscamos compreender o âmbito de técnicas de si e dos outros em que a substância é apenas uma peça de um agenciamento maior. (Bruno Cava)"

Santo-daime, a legalização como cuidado, entrevista com Wallace Hermann

Entrevista com Wallace Hermann, do centro “Rainha do Mar”, por Bruno Cava

Goldwater
Foto: Wallace Hermann, do estudo “escrituras da água”



Na segunda entrevista da série sobre a “Legalização das drogas e suas potências políticas”, entrevistamos Wallace Hermann, militante das rádios comunitárias e movimentos sociais, que hoje reside no Centro “Rainha do Mar”, em Pedra de Guaratiba, na Baía de Sepetiba (RJ), onde trabalha diariamente com a produção, uso ritual, preservação e difusão da memória da doutrina do Daime. Fomos muito bem acolhidos na casa à beira mar onde funciona a igreja, sob a direção do fotógrafo e produtor musical Marco Imperial. A entrevista foi toda ela realizada com o pano de fundo da paisagem de pescadores da baía de Sepetiba e um rumorejar sibilino de pequenas ondas. Chamado de ayahuasca, Yagé e outras denominações regionais, o santo-daime é uma bebida enteógena que há milênios desceu os Andes, junto com a cultura inca, para se tornar uma prática biopolítica das tribos amazônicas das terras baixas. 

Relatada por jesuítas durante o período colonial, está presente na obra de José de Alencar em “Iracema”, em que a personagem-título é uma protetora dos segredos do vinho da Jurema, que contém o mesmo princípio ativo do Daime, o DMT (n,n-dimetiltriptamina). Cristianizado no Brasil moderno, o Daime incorpora elementos das tradições caboclas do Nordeste, afro-brasileiras, xamânicas, misticismo popular, esoterismo  em geral, experimentação estética e espiritismo. O culto do Daime se tornou igreja e, legalizado para fins religiosos e regulamentado pelo CONAD, disseminou-se pelas metrópoles brasileiras em todas as regiões, tornando-se um fenômeno significativo da vida cultural e social do país. 

Inúmeras questões, como se vê, se entrecruzam nas práticas associadas ao Daime. Embora a maioria das entrevistas sobre o santo-Daime tenda a focar na experiência psicoativa (a “viagem”), buscamos compreender o âmbito de técnicas de si e dos outros em que a substância é apenas uma peça de um agenciamento maior. (Bruno Cava)

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UniNômade: Wallace, bom dia, como foi seu encontro pessoal com o Daime, você tem uma relação antiga?

Wallace: Meu encontro com a ayahuasca foi em 1987, na União do Vegetal, que é uma sociedade espiritualista que faz uso do chá. É um pouco positivista e eu não me identifiquei. No ano seguinte, já vim aqui pro “Rainha do Mar”, pra ajudar na produção do chá, no “feitio”, como se diz no Daime. A minha motivação primeira foi, basicamente, sair da drogadição. Na década de 80 eu estava emburacado no uso de álcool e cocaína. Era muita cheiração e eu estava nas últimas. Me salvei dessa pelo Daime. Foi muito rápido. Saí de uma vez com o chá. Não precisei de tratamentos longos, não tive recaídas, foi de uma vez só.

UniNômade: Interessante você falar isso, porque agora mesmo, no Uruguai, descobriram que a maconha legalizada está servindo de “porta de saída” para drogas mais pesadas, como o álcool ou o cigarro. As pessoas estão migrando para a maconha.

Wallace: Sem dúvida. A maconha tem além da dimensão recreativa, a dimensão medicinal. Os canabidióis (CBD) inclusive tiveram a sua comercialização liberada pela ANVISA, para tratamento de saúde. Mas eu acho que é uma linha equivocada. Quem vai ganhar com isso são grandes laboratórios e a pessoa só vai poder comprar quando fabricada no exterior. É preciso dizer que o uso recreativo já é medicinal, não existe essa separação entre o “barato” e os efeitos benéficos à saúde. A sociedade brasileira precisa sair dessa estupidez da proibição da maconha.

UniNômade: Como foi seu processo de envolvimento com o Daime, teve estudo, participação em grupos especializados?

Wallace: Já tinha lido sobre ayahuasca e Daime. Quando era adolescente, tinha visto algumas fotos e aquelas imagens da panela de preparação, da fumaça, nada daquilo saía da minha cabeça. A primeira vez eu estava numa manifestação na Cinelândia, na época era parte daquela geração que usava de tudo, eu usava ácido, cogumelo, e um amigo ligado à União do Vegetal me convidou a tomar. Então tomei com ele e um pequeno grupo num apartamento em Santa Teresa. Tomei um copo imenso e, como não sentia nada, tomei outro, mais de meio litro. Foi muito intenso, tive a sensação de sair do corpo, escorrer pelo teto, viajar pela floresta, me dissipei em altos turbilhões lisérgicos que nunca tinha visto, fiquei maravilhado. Percebi imediatamente que tinha um potencial de cura e que podia me ajudar com a drogadição. No primeiro ano e meio fui tomando com um pessoal que não tinha um trabalho mais sistemático, até que decidi vir morar aqui, em 1988, e mergulhei de cabeça. Fiquei sete anos afastado de minhas atividades anteriores, me engajando totalmente no centro. No final da década de 90, voltei para militar no movimento das rádios comunitárias.

UniNômade: Já ficou sem usar algum período? Com qual frequência é tomado o chá?

Wallace: Desde o primeiro chá, nunca parei de usar. Aqui se toma regularmente de quinze em quinze dias, mas também nos trabalhos, que chamamos de “farda branca”, e no calendário oficial, por exemplo, na festa de São Sebastião. São trabalhos espirituais, de cura, de atendimento a pessoas que vêm aqui com problemas.

UniNômade: É cobrado? como vocês se sustentam?

Wallace: Aqui não cobramos a distribuição do Santo Daime nos trabalhos espirituais. O Daime não é comercializado. Temos um diferencial em relação a outras igrejas por isso, o que às vezes nos rende críticas e perseguições do meio. Temos a obrigação de atender e, por orientação do Padinho Sebastião, não podemos cobrar nada. Somos orientados pela entidade a dar o Daime. Plantamos o cipó e a folha Rainha, fabricamos, temos uma pequena plantação aqui em Pedra de Guaratiba e outra maior em Petrópolis, e não cobramos. Não cobramos nem quando é exportado pra Alemanha, Holanda. Nossa orientação é não cobrar, quem quiser tomar Daime, produza-o, cultive as plantas que o compõem, fornecemos inclusive mudas gratuitamente e estimulamos a autonomia das igrejas na produção de sua própria bebida. Temos outros arranjos para ganhar dinheiro e sustentar o Daime, mas não inclui vendê-lo, de jeito nenhum.

UniNômade: Como o santo-daime foi legalizado?

Wallace:  Foi legalizado ainda no período de governo do FHC, na década de 90, depois de anos de tratativas com os governos através de parecer favorável do CONFEN. Depois, em 2010, foi regulamentado pelo CONAD. Precisamos de uma aprovação do IBAMA para transportar em quantidade dentro do país.

UniNômade: Como é a relação da igreja com o entorno da cidade? como se organiza internamente?

Wallace: Somos vistos como um grupo religioso com todo o respeito que merece. Nunca tivemos problema com a prefeitura. A polícia, há tempos, no começo do trabalho aqui em Pedra de Guaratiba, veio infiltrada para ver o que fazíamos. No final do trabalho, eles agradeceram, ficaram impressionados com os resultados e foi a última vez que isso aconteceu. Costumamos receber qualquer um e atendemos sem cobrar nada, nos casos mais variados, de doenças variadas, depressão, tendência ao suicídio, psicose. Na penitenciária de Rondônia está sendo usado entre os detentos, como maneira de ressocialização num cenário de muita violência. Internamente, a igreja tem um padrinho, no caso daqui, o Marco Imperial, nosso “poeta-comandante”, e os demais são todos no mesmo nível de “fardados”, qualquer um que tome o Daime três vezes aqui já pode ser considerado “fardado”, e todos trabalham juntos, é um trabalho colaborativo e sem fins lucrativos. A liderança se dá na prática, por maior experiência, dedicação.

UniNômade: A ayauasca é classificada como substância psicotrópica “enteógena”. A lei e certa medicina a consideram “alucinógena”, querendo patologizar o efeito como se existisse uma “reta percepção” e o estado alterado da consciência fosse, por si mesmo, nocivo à saúde.

Wallace: A substância não existe em si mesma, está numa relação, num conjunto de relações da pessoa consigo mesma, com os outros. Entendemos que, com o chá, essas relações são mediadas por uma entidade. Enteógeno quer dizer “Deus dentro”. Quem usa o Daime não está usando só para “dar barato”, embora o maravilhamento esteja presente e faça parte da experiência. Está criando uma relação com uma consciência que vai possuir o usuário e decodificar o mundo de outra maneira. Uma consciência espiritual, vegetal ou extraterrestre, como preferir. É aberto um portal em que você mergulha noutra experiência do espaço, tempo, extra-corpo, seu mundo de emoções. O “Deus dentro” é porque Deus está nas coisas, no caso, na planta, e é diretamente com a planta que entramos em contato. Você sente a potência dela, ela possui você, e só então começa a viagem que é em essência espiritual.

UniNômade: Na década de 60, junto com a revolução sexual, houve também uma revolução das drogas, os estudos de alteração de consciência antes limitados a pesquisadores e pequenos grupos ganharam a sociedade levando a várias mutações comportamentais e de hábitos mentais. Os psicotrópicos em geral, em especial os enteógenos, são muito usados em experiências estéticas e naquelas mais “espirituais”, de cura ou autoconhecimento, mas, quem sabe, também podem ser usadas na análise do funcionamento do mundo em que vivemos. No caso, o mundo de um capitalismo supermidiatizado e cognitivo, que coloniza nossa atenção e nossos sonhos. Essas substâncias, possivelmente, podem favorecer o entendimento das cadeias semióticas significantes e a-significantes, que estruturam a malha de sensibilidade própria do capitalismo, digamos, com o escritor William Burroughs, do “Control”, que é ao mesmo tempo sensorial e bioquímico.

Wallace: Eu concordo, o Daime não me isola, não é um uso, em geral, que torna você impotente, desligado, diminuído em suas capacidades. Favorece muito a compreensão. A ayahuasca leva a uma experiência que pode ser suave ou então muito intensa, mas em todo caso existe um saldo de compreensão, provoca conexões, conjunções, disjunções, vários tipos de reorganização da sua percepção das coisas, de você mesmo, sua ordem espiritual e sentimental. É como Salomão que pede a Deus: não quero nada, apenas um coração compreensivo. Compreensivo como uma mundivivência incrementada. Esse é o ganho principal.

UniNômade: Como o Daime, se insere na questão maior das drogas, qual o lugar social dele? Com os psicotrópicos sintetizadas, LSD, MDMA, NBOMe…

Wallace:  NBOMe é uma merda…

UniNômade: Sim, é uma síntese perigosa que simula o LSD, mas, considerando que o Daime é religioso…

Wallace: Não gosto da expressão “religião”. Eu a propósito fiquei mais anticlerical na igreja do Daime do que antes. Mas de qualquer modo o Daime é uma religião brasileira e este é um país religioso. Encaro como uma doutrina, que define melhor como funciona. Uma doutrina de vida que potencializa muito você em diversos aspectos, além de um inegável efeito terapêutico medicinal. Tem um fundo social e socializante muito presente, nos encontros, no dia a dia.



Esta entrevista faz parte da série: “A legalização das drogas e suas potências políticas”.

Primeira entrevista, com André Barros, sobre a legalização da maconha, publicada em 29/12/2014.
Mais informações balizadas sobre psicotrópicos, consultar o NEIP - Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos.

Outro site informativo, concentrado em psicodélicos e enteógenos: Mundo Cogumelo.
Fonte: UniNômade

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