março 23, 2015

"Espinosa – o que pode o corpo?", por Rafael Trindade

PICICA: "Só quem está cansado do corpo, ou tem um corpo (ou uma mente) doente, pode inventar outros mundos ou falar de espíritos (veja aqui). Para se esquecer do corpo, ou menosprezá-lo, muitos se fingiram de filósofos e compactuaram para denegri-lo. Será então que a Ética de Espinosa não é toda uma maneira nova de pensar o corpo? Uma terapêutica dos afetos buscando aumentar o conhecimento e a perfeição do homem? Podemos até mesmo pensar em uma psicologia espinosana. O corpo que volta a experienciar o real é aquele também que pode libertar-seMuitos filósofos se perguntaram como salvar a alma, e muitos padres se fingiram de filósofo para tentar salvar o homem. Mas quem salvará o corpo? Talvez Espinosa…"

Espinosa – o que pode o corpo?

 
Pablo Picasso
O Acrobata – Pablo Picasso

Depois do texto sobre a relação entre mente e corpo para Espinosa (veja aqui), gostaria de pensar um pouco sobre uma de suas mais importantes perguntas: “o que pode o corpo?”. Se o corpo não é passivo, se ele não é instrumento da alma nem mero objeto descartável, então cabe a nós refletir sobre qual o seu lugar dentro da filosofia e como nós podemos entendê-lo.
O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente – pode e o que não pode fazer” (Ética III, Prop. 2)
Esta pergunta tem me assombrado: o que pode realmente um corpo? Posso pensar em vários exemplos: alguns savantes são pessoas que possuem uma hiper capacidade de memorização e processamento de dados. Existem monges budistas que aumentam conscientemente a sua temperatura corporal e resistência à dor. Conheço o relato pessoal de uma cientista que teve um derrame no hemisfério esquerdo e entrou em estado de Nirvana. Ou até mesmo o exemplo clássico da mãe que levanta um ônibus para salvar seu bebê.

Tudo isso mostra que somos máquinas incríveis. Não acho que usamos apenas 2% do cérebro, e não me convém discorrer sobre o assunto, mas tenho certeza que não sabemos ainda o que pode um corpo. Enquanto digito e vocês leem, as células se dividem, o coração bate, o pulmão se enche de ar. Há uma força em nós que está para muito além da mente consciente, tudo acontece em plena harmonia sem nem ao menos nos darmos conta disso.

Nosso corpo dança um movimento ritmado. Mesmo o corpo parado dança: as veias pulsam, o coração dá o ritmo, os olhos piscam em contracanto, a melodia dos órgãos não é ouvida porque passamos a vida inteira imersos em sua sinfonia. E talvez esse seja o problema, nos esquecemos de nós mesmos. O corpo atual está separado de sua capacidade de ser afetado, seus poros estão entupidos.

A pergunta pode ser ainda mais específica: o que pode o teu corpo? Que sensações você já experimentou, já que você mexe tanto com seu corpo? Nos encontramos primeiramente cansados demais para experimentar, e mesmo que não estivéssemos, já nos tornaram desconfiados demais para tentar. Experimentar no sentido de apropriar-se do real, amor-fati, reaprender a não esconder-se do que nos acontece, não virar a cara. Saber experimentar não acontece em quantidade, mas sim em qualidade. Só será possível nos reapropriar-nos do mundo quando reapropriar-nos de nós mesmos. Muitos morrem sem jamais saber do que são capazes, sem jamais se surpreenderem com si próprios. A única saída é o investimento em si mesmo.

Valorizar o corpo significa valorizar a vida que trago em mim, ele não é suporte para outras coisas, ele é tudo que temos. Podemos defini-lo quantitativamente: ele é o quanto pode. Exatamente, ele é definido exclusivamente por sua potência, conatus, e sempre efetua suas possibilidades ao máximo. Você não consegue, não tem coragem, não tem capacidade? Eu não posso julgar, não posso culpar, cada um sabe de si, mas temos alternativas, possibilidades.

Como podemos nos potencializar? A resposta de Espinosa é clara: na experimentação, nas relações. “Um corpo deve ser definido pelo conjunto das relações que o compõe ou, o que vem a ser exatamente o mesmo, pelo seu poder de ser afetado” (Deleuze, Curso sobre Spinoza). Encontrar um ambiente favorável, um clima favorável, uma companhia que lhe convém, refeições que lhe façam bem. A potência é o que define seu corpo, este é constantemente afetado e estes afetos aumentam a potência, alegria, ou a diminuem, tristeza. Toda esta relação entre os indivíduos gera bons ou maus encontros. Eles aumentam ou diminuem nossa perfeição. Nos modificam e ao mesmo tempo aumentam nossa capacidade de ser novamente afetado (veja mais aqui).

Por exemplo: a semente cresce na relação com a terra, ela cresce com o sol, ela troca gases com o ar. Se ela não brota, a culpa não é da semente, nem do solo. A relação é a base de tudo. Por que a semente não se compõe com a terra? Não sei, não cabe a mim julgar ou procurar culpados porque certamente é algo que aconteceu na relação, posso apenas dizer que esta relação não floresceu. Mas quando dá certo, a semente passa a ser um canal, uma porta pela qual a terra e água se transformam em uma majestosa árvore. As relações que a semente estabelece com a terra criam uma árvore, isto é o que pode o corpo da semente.

Eu diria que as possibilidades são infinitas, ainda que o corpo seja passivo em muitas coisas e muitas coisas superem sua potência (veja mais aqui). Há apenas dois problemas: quando morremos cedo e não temos a chance de nos desenvolver, apropriar-nos de nós mesmos, encontrar as melhores relações para nos potencializar. Ou quando estamos submetidos aos fatores externos, quase sempre morais, que nos coagem e enfraquecem.
aquele que tem um corpo capaz de muitas coisas, tem uma mente que, considerada em si mesma, possui uma grande consciência de si, de Deus e das coisas. Assim, esforçamo-nos, nesta vida, sobretudo, para que o corpo de nossa infância se transforme, tanto quanto o permite a sua natureza e tanto quanto lhe seja conveniente, em um outro corpo, que seja capaz de muitas coisas e que esteja referido a uma mente que tenha extrema consciência de si mesma, de Deus e das coisas” (Ética V, Prop. 39, esc.)
Criar um corpo ético, não moral. Criar um corpo que experimenta e pode cada vez mais, um corpo que escolhe tudo o que lhe convém sempre da melhor maneira possível, um corpo feliz, satisfeito, realizado. Deixar definitivamente esta corporeidade moral, que julga, cultua, edipianiza, idealiza, esquece de si, se despreza, tem nojo, medo, vergonha. É possível abrir todo um novo plano de sensações novas dentro de nós, um novo topos, um nova região.

O corpo visto como geografia, não como história. O corpo que experimenta, não que interpreta. Isso torna as possibilidades infinitas, cada nova experiência abre uma porta inédita, nunca antes explorada. Na relação, quando nos modificamos automaticamente, nossa essência se atualiza. Viver é estar em relação e permite criar organizações corporais totalmente novas, inéditas, impensadas, e muito melhores que estas que nos ofereceram.

Só quem está cansado do corpo, ou tem um corpo (ou uma mente) doente, pode inventar outros mundos ou falar de espíritos (veja aqui). Para se esquecer do corpo, ou menosprezá-lo, muitos se fingiram de filósofos e compactuaram para denegri-lo. Será então que a Ética de Espinosa não é toda uma maneira nova de pensar o corpo? Uma terapêutica dos afetos buscando aumentar o conhecimento e a perfeição do homem? Podemos até mesmo pensar em uma psicologia espinosana. O corpo que volta a experienciar o real é aquele também que pode libertar-seMuitos filósofos se perguntaram como salvar a alma, e muitos padres se fingiram de filósofo para tentar salvar o homem. Mas quem salvará o corpo? Talvez Espinosa…

yoga
“O impressionante é o corpo. Isso quer dizer o que? É uma reação de certos filósofos que dizem: escutem, parem com a alma, com a consciência, etc.  Você deveriam antes tentar ver um pouco, de início, o que pode o corpo. O que é…? Não sabem nem mesmo o que é um corpo e vêm falar da alma. Então não, é preciso ultrapassar” – Deleuze, Curso sobre Spinoza.
Fonte: Razão Inadequada

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