março 09, 2015

"Vozes da Amazônia: Investigação sobre o pensamento social brasileiro". BASTOS, Élide Rugai e PINTO, Renan Freitas (orgs.)

PICICA: "Élide Rugai Bastos, reconhecida estudiosa da Ciência Política, salienta em seu prefácio ao livro Vozes da Amazônia o peso de certos momentos históricos para o pensamento social brasileiro. Remete-se á 1930 e 1950, períodos em que o país desenvolve e, através de figuras como Gilberto Freyre ou Antônio Cândido, reflete sobre seu passado, presente e futuro. Mas a Amazônia também tem suas décadas-chave, como 1970 e 1980.É durante esse período que as discussões sobre o desenvolvimento da Amazônia, á luz dos primeiros efeitos da Zona Franca e da pressão autoritária do regime militar, adquirem um sabor a mais com a consolidação do ambiente universitário na região. 

É durante esse período que surgem, após a crítica ao pensamento etnocêntrico do qual os estudos amazônicos sempre foram grandes devedores, as primeiras propostas de uma ciência eminentemente amazônica. É durante esse período, ainda, que Renan Freitas Pinto, doutor em Sociologia pela USP e atualmente professor aposentado do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e Marilene Corrêa Silva Freitas, doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP e professora do Departamento de Sociologia da UFAM, iniciam suas carreiras.

Cito-os porque além de figurarem no livro em questão são os maiores representantes desse esforço de constituição de um espaço acadêmico no Amazonas. Basta lembrar que o curso de Antropologia e os programas de pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia e Natureza e Cultura foram criados com sua ajuda. Muitos dos autores de Vozes da Amazônia são oriundos destes programas, representando bem a interdisciplinaridade e o comprometimento com os rumos da Amazônia hoje presentes em tais estudos." 


BASTOS, Élide Rugai e PINTO, Renan Freitas (orgs.). Vozes da Amazônia: Investigação sobre o pensamento social brasileiro. 

Vinicius Alves do Amaral

Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Amazonas.


Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007. 452p.



Élide Rugai Bastos, reconhecida estudiosa da Ciência Política, salienta em seu prefácio ao livro Vozes da Amazônia o peso de certos momentos históricos para o pensamento social brasileiro. Remete-se á 1930 e 1950, períodos em que o país desenvolve e, através de figuras como Gilberto Freyre ou Antônio Cândido, reflete sobre seu passado, presente e futuro. Mas a Amazônia também tem suas décadas-chave, como 1970 e 1980.


É durante esse período que as discussões sobre o desenvolvimento da Amazônia, á luz dos primeiros efeitos da Zona Franca e da pressão autoritária do regime militar, adquirem um sabor a mais com a consolidação do ambiente universitário na região. É durante esse período que surgem, após a crítica ao pensamento etnocêntrico do qual os estudos amazônicos sempre foram grandes devedores, as primeiras propostas de uma ciência eminentemente amazônica. É durante esse período, ainda, que Renan Freitas Pinto, doutor em Sociologia pela USP e atualmente professor aposentado do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e Marilene Corrêa Silva Freitas, doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP e professora do Departamento de Sociologia da UFAM, iniciam suas carreiras.


Cito-os porque além de figurarem no livro em questão são os maiores representantes desse esforço de constituição de um espaço acadêmico no Amazonas. Basta lembrar que o curso de Antropologia e os programas de pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia e Natureza e Cultura foram criados com sua ajuda. Muitos dos autores de Vozes da Amazônia são oriundos destes programas, representando bem a interdisciplinaridade e o comprometimento com os rumos da Amazônia hoje presentes em tais estudos.


O projeto Vozes da Amazônia, nascido inicialmente como um seminário organizado pela UFAM em 1996, tem o objetivo de contribuir para o estudo do pensamento social brasileiro com as reflexões produzidas á nível regional tanto ontem como hoje. Seguindo essa proposta podemos encontrar artigos que buscam refletir sobre certos temas presentes na tradição de pensamento local ou então oferecer uma releitura de autores consagrados.


Na primeira alternativa, os textos de Ricardo Ossame e Luiz Fernando Souza parecem ser emblemáticos por se deterem em temas tais como as cidades amazônicas ou então o discurso sobre a natureza, respectivamente. Ossame se ocupa dos relatos de alguns viajantes do século XIX, que também aparecem de forma tangencial no estudo de Souza. No entanto, o artigo do primeiro parece muito mais descritivo que reflexivo propriamente. Souza problematiza as diferentes visões da natureza amazônica (construídas e reconstruídas há séculos), encontrando um ponto essencial: a dominação implícita.


Não há como não enxergar uma aproximação com a grande obra do historiador Arthur Cézar Ferreira Reis, A Amazônia e a Cobiça Internacional (1965). Por apresentar um longo histórico de ameaças estrangeiras á região, o livro encontrou acolhida nos mais diferentes meios e sua influência pode ser encontrada tanto no artigo de Souza como no de Luiz Carvalho. No entanto, é necessário não perder de vista que Souza analisa, com a ajuda de Foucault dentre outros, os discursos e que contempla também em sua crítica o projeto colonizador português, que para Reis representava um esforço civilizatório digno.


Há aqueles também que se comprometem a construir conteúdos programáticos, reportando-se á discussão epistemológica sobre uma ciência amazônica. É o caso de Luiz Carvalho que defende que há “(...) uma inconsistência epistemológica dos modelos teóricos disponíveis para formular o conhecimento e a compreensão ambiental amazônica e o da inadequabilidade programática de seus modelos desenvolvimentistas/ subdesenvolvimentistas” (p. 69). Após detida discussão filosófica, Carvalho procura fundar um novo projeto mental e social para a Amazônia que supere a divisão criada pela ciência moderna entre natureza e sociedade. 


Quanto aos demais textos, há aqueles que empreendem releituras de clássicos ao analisarem um tema em específico de suas obras. Encontramos no artigo de Heloísa Lara Campos uma amostra desse esforço, quando a pesquisadora elenca como objeto de estudo as representações femininas dentro da obra do escritor paraense Dalcídio Jurandir. Extremamente pertinente o nexo que a autora estabelece entre ideias feministas e a experiência do viver amazônico que podiam estar presentes na criação literária de Jurandir.


Ainda elegendo a literatura como foco, Marco Aurélio Paiva Coelho realiza uma reflexão sobre os limites do modernismo paulista propagado pela Semana de Arte Moderna de 1922 ao abordar a carreira artística e algumas obras do também escritor paraense Abguar Bastos. O autor faz uma desconstrução desse artista geralmente considerado um dos porta-vozes do modernismo  no Norte, mas no sentido de apresentar a sua proposta diferenciada de modernismo. Assim sendo, o herói Bepe de seu livro representaria o oposto do herói sem caráter criado por Mário de Andrade, não por se filiar a um ideal romântico, mas por se aproximar do mito, uma das expressões amazônicas mais autênticas para Bastos. Mas o mito não está desligado da História, como percebemos nas maquinações feitas por um papagaio sobre um fonógrafo (p.364).


Lúcia Ferreira Puga e Odenei Ribeiro nos apresentam pioneiros raramente estudados no pensamento social na Amazônia. Estamos falando de André Araújo e Leandro Tocantins, respectivamente. Minuciosa análise faz Puga demonstrando a visão original de Araújo, uma mescla inesperada entre a questão social da Igreja Católica e a Escola de Sociologia de Chicago, e como o conceito de comunidade é central nela. Para ele, a modernidade destruiria os laços da comunidade, processo esse que pode ser evitado por duas entidades através de suas obras assistencialistas: o Estado e a Igreja Católica. Já Tocantins, como bem mostra Ribeiro, propõe uma modernização que não desconsidere alguns traços essenciais da cultura amazônica, tal como os saberes tradicionais ou a miscigenação.  É previsível a conclusão a que chega Ribeiro de que a obra de Tocantins “(...) cumpre no extremo Norte papel semelhante a que a de Gilberto Freyre cumpriu no cenário nacional” (p. 337).


Júlio Cesar Schweikckardt aponta a importância do sanitarista Alfredo da Matta como pensador amazônico, até então subsumido dentro da discussão regional. Sua presença no panteão de intelectuais locais se deve ás suas considerações decorrentes de sua percepção da saúde amazônica. Para o médico, como pregava o discurso sanitarista da virada do século XIX, os costumes garantiam a permanência das doenças sendo, portanto, necessário uma reeducação, organizada pelo Estado, com vistas á “civilizar” os povos amazônicos.


Importantes releituras empreendem Renan Freitas Pinto e Selda Vale Costa a partir de fontes como a imprensa e a correspondência. Pinto não discute as características intrínsecas de suas fontes – tais como os aspectos da escrita condicionados pelo suporte impresso diário – enquanto Costa se detém em uma breve discussão sobre a validade do estudo das cartas e algumas de suas vicissitudes.


Renan F. Pinto analisa os artigos de jornais de Djalma Batista como uma extensão das reflexões presentes em sua obra magna, Complexo da Amazônia (1977). Seu recorte temporal abrange a década de 1970, mas não considera os artigos como parte do processo criativo do livro, mas sim como um apêndice das questões já analisadas pelo pensador. É importante lembrar também que seu texto é introdutório, elencando temas para análises posteriores.


Selda Vale Costa, por sua vez, estuda a correspondência do etnólogo Nunes Pereira com quatro intelectuais locais: o historiador Arthur Cézar Ferreira Reis, o antropólogo Curt Nimuendaju, o médico Djalma Batista e o diretor do Museu Goeldi Machado Coelho. O objetivo é claro: entender a rede de sociabilidades mantidas por estes intelectuais. O acervo de Nunes Pereira surpreenderia pela riqueza de dados contidos em algumas páginas, guardadas por ele e organizadas por seu secretário. “As epístolas, em síntese, revelam linguagens regionais, preocupações políticas com a região e querelas familiares. Cultura, ciência, política e afeto, eis os ingredientes mais comuns das missivas” (p. 280).


A pesquisadora Giselle Martins Venâncio, no livro Escrita de Si, Escrita da História (organizado por Ângela de Castro Gomes), chama a atenção para o papel das representações nas cartas. Ao analisar a amizade epistolar entre Monteiro Lobato e Oliveira Vianna desvincula-se das tradicionais representações imputadas a tais intelectuais e nos apresenta novas interpretações deles através de suas missivas (VENANCIO, 2004, p. 118). Foucault em estudo antológico situaria este precioso status das correspondências enquanto parte do contínuo exercício pessoal construção de si. Afinal, “é algo mais que um adestramento de si próprio pela escrita, por intermédio dos conselhos e opiniões que se dão ao outro: ela constitui uma certa maneira de cada um se manifestar a si próprio e aos outros” (FOUCAULT, 1992, p. 150).


A antropóloga Selda V. Costa enxerga essa dimensão representativa na troca de missivas: podemos ver a gradação de amizade através das expressões e da grafia, mas mais interessante ainda é ver os diferentes tipos de amizade que Pereira mantém com os referidos intelectuais. Somos apresentados á um Arthur Reis desiludido com Manaus e que oscila entre o tratamento reverencial e a crítica jocosa com seu interlocutor. Djalma Batista se coloca como aprendiz, mas incita seu mestre todo tempo a produzir mais. Sua fala é um tanto institucional, talvez por no momento estar presidindo a Academia Amazonense de Letras da qual Nunes ajudou a fundar. Nimuendaju possui um relacionamento mais formal com o etnólogo, ao contrário de Machado Coelho que o considera um grande irmão e ressente-se das poucas visitas do amigo.


Mais significativa é a representação que Pereira constrói de si. Aqui e acolá assume o perfil de libertino e pornográfico, mas por vezes não hesita em abusar da autoridade que a idade e os centros culturais lhe conferiam. Estas representações são de fundamental importância, pois nelas é perceptível a tensão social e cultural estabelecida entre seus autores. O diálogo, a troca de informações, não discrimina as rivalidades e conflitos que estes homens possuíam. Apesar de ser marcante, mais em uns que outros, o estigma de ser um intelectual amazônico persiste – como é o caso de Coelho que se ressente do amigo, talvez por ter fincado raízes na capital federal, ou então de Reis que recusa qualquer tentativa de ação cultural em sua terra natal.


As considerações finais de Selda Costa são exemplares por não esgotarem as interpretações sobre o provincianismo intelectual amazônico: “Talvez se trate mais de visualizar a província como espaço cultural e evidenciar que o insulamento, o sentir-se só, abandonados pelo governo federal, pelo Brasil, essa temática-lamento constante, talvez seja mais uma armadilha (...)” (p. 306) ou seja, será que o “atraso cultural” da Amazonas não passa de um discurso para reduzir questões próprias do campo artístico e exigir uma intervenção estatal no sentido de subsidiar estes artistas, por exemplo? E esse isolamento talvez seja a força motriz do pensamento e da arte amazônica, sua fonte maior de vigor. Afinal, “esse ilhamento, real ou idealizado, cria as condições para uma migração para dentro de si mesmos, certo ensimesmamento, que cria e recria, elabora e inventa uma ideologia da amazonidade” (p. 306).


Em suma, como afirmamos no início, há uma proposta que subjaz á todos estes artigos tão desiguais entre si (seja no estilo de escrita ou na densidade teórica e metodológica) que é a crítica á modernidade que se impunha já nos anos 70 e 80 e que hoje, ao invés de arrefecer, agudizou-se. A grande riqueza deste livro é não focar apenas no ataque ao projeto modernizador implantado, mas sugerir novos caminhos através inclusive da tradição de pensamento local. A releitura de autores consagrados também aponta uma dimensão necessária do diálogo, muito diferente da atitude que permeou em outros tempos de desqualificação de suas obras através de taxações como “reacionário” ou “conservador”. Seja como for, Vozes da Amazônia é um importante documento sobre o estado atual do pensamento social amazônico. 


Referências:


VENANCIO, Giselle Martins. Cartas de Lobato a Vianna: uma memória epistolar silenciada. In: GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2004.


FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992.

Nenhum comentário: