PICICA: Todo cuidado é pouco com o elogio da disciplina embutido no discurso papal. Os perigos de uma "sociedade sem pais" são denunciados todos os dias. Mas o perigo real é o retorno galopante dos pais monstruosos. O cimento que une essa sociedade já é visível. O novo senso comum levanta muros da salvação e da caridade mais imunda - aquela que está empenhada na salvação das almas -, deixando de lado o desafio de construir comunidades em que o maior valor é o da "confiança" e não o da "pertença". Como diria Deleuze, o que necessitamos é de um programa político e não de um fantasma edipiano, pois numa sociedade de irmãos "a aliança substitui a filiação, e o pacto de sangue, a consaguinidade". (RC)
MÍDIA & EDUCAÇÃO
A palmada do papa Francisco
Por Muniz Sodré em 10/03/2015 na edição 841
Há notícias cuja ressonância no foro público dos debates é maior em
vias colaterais do que nas suítes convencionais dadas pela própria
mídia. É o caso da declaração feita pelo papa Francisco sobre a palmada
eventualmente aplicada pelos pais no processo de educação de seus
filhos. Houve algum estranhamento quanto à posição do Sumo Pontífice com
referência a dois aspectos: o primeiro é que a imposição de um castigo
físico parece algo regressivo quando se considera a modernização das
relações parentais, e o segundo é que o papa estaria propriamente fora
da esfera religiosa, opinando onde não lhe cabe.
Mas há um problema de fundo na fala do pontífice. Para começar, é preciso tornar semanticamente claro que “palmada” não equivale a uma punição corporal capaz de ferir a dignidade de uma pessoa, e sim um gesto mecânico destinado a criar certo tipo de ordem na vida cotidiana da família. Claro, esse gesto foi progressivamente proscrito pela pedagogia do século passado, junto com a ideia de que qualquer punição é incompatível com o processo educativo eficaz.
Só que a opinião do papa, sem tom normativo, lança alguma dúvida sobre a condenação do gesto ou, ao menos, sobre a neutralidade de muitos pais e pedagogos diante desse tópico que, aparentemente pequeno, integra o rol de questões importantes no transe da crise moral da família ou da paternidade.
O fato é que o assunto não prosperou tal e qual no noticiário, mas reapareceu tematizado no problema da “disciplina”. Assim é que, logo depois da divulgação de uma pesquisa da Fundação Lemann pelo programa Fantástico, da Rede Globo, o colunista de educação Antônio Gois trouxe a público um boletim da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com um dado considerado “alarmante” sobre o tema:
Elogio da disciplina
Evidentemente, o problema não é exclusivo do Brasil e apresenta números diferentes, mas constantes, em 65 nações comparadas, tais como Chile, México, Argentina, Tunísia, Dinamarca, Croácia, Noruega e Japão. A solução, se é que existe, não é nada simples, mas a convicção da OCDE é que se faz necessário “criar uma cultura de responsabilidade compartilhada com impactos positivos no envolvimento do estudante com a escola e em seu comportamento”. Para isso, é preciso envolver alunos, pais, funcionários e professores nas decisões escolares.
A “palmada” sugerida pelo papa é, no fundo, uma pequena metáfora para o envolvimento mais responsável de educadores (primeiramente pais, em seguida professores) no processo de formação de crianças e adolescentes após o que uns poucos autores chamam de “falência dos métodos educativos libertários que caracterizam a pedagogia desde os anos 60”. Para esses, liberdade não implica só independência nem arbítrio, mas a busca de um equilíbrio entre controle e confiança, intransigência e amor. Em outras palavras, seria preciso reencontrar, pela coragem da severidade, a virtude sufocada pela moralidade triunfante do mercado.
Claro, sempre houve pais ausentes, indiferentes, autoritários, drogados ou então condições sociais degradadas que tornam os filhos incapazes de amar e trabalhar. Por outro lado, nunca houve educação sem o exercício de uma forma disciplinar, isto é, a capacidade de dizer “não”, o que pode implicar conflitos pedagógicos, mas igualmente a possibilidade de crescer na “morte simbólica dos pais”.
Mas agora, no vazio aberto pelo enfraquecimento da autoridade parental e das estruturas pedagógicas, entram o consumo desenfreado, a mídia e as drogas. Às vezes, podem ser lidos como sinônimos. O consumismo conseguiu afirmar-se como uma relação social que produz seres autocomplacentes ou narcisistas; a mídia, agora uma realidade virtual ao alcance de todos, como um tipo de contato sem afeto; a droga, como uma endemia de crescimento. A indisciplina e a violência resultantes são cúmplices da permissividade parental e pedagógica.
A “palmada” do papa Francisco pode ser lida nesse quadro como um elogio da disciplina. Não é uma simples posição moralista, mas uma intervenção propriamente “religiosa” contra a marcha coletiva para o afundamento no pântano do caráter desfibrado.
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Mas há um problema de fundo na fala do pontífice. Para começar, é preciso tornar semanticamente claro que “palmada” não equivale a uma punição corporal capaz de ferir a dignidade de uma pessoa, e sim um gesto mecânico destinado a criar certo tipo de ordem na vida cotidiana da família. Claro, esse gesto foi progressivamente proscrito pela pedagogia do século passado, junto com a ideia de que qualquer punição é incompatível com o processo educativo eficaz.
Só que a opinião do papa, sem tom normativo, lança alguma dúvida sobre a condenação do gesto ou, ao menos, sobre a neutralidade de muitos pais e pedagogos diante desse tópico que, aparentemente pequeno, integra o rol de questões importantes no transe da crise moral da família ou da paternidade.
O fato é que o assunto não prosperou tal e qual no noticiário, mas reapareceu tematizado no problema da “disciplina”. Assim é que, logo depois da divulgação de uma pesquisa da Fundação Lemann pelo programa Fantástico, da Rede Globo, o colunista de educação Antônio Gois trouxe a público um boletim da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com um dado considerado “alarmante” sobre o tema:
“Dentre os 33 países comparados na Pesquisa Internacional sobre Ensino e
Aprendizagem de 2013, o Brasil foi, disparado, onde os professores mais
relataram ter 10% ou mais de estudantes indisciplinados. Dois terços de
nossos docentes disseram vivenciar esse problema em sala de aula” (O Globo, 2/3/2015).
Evidentemente, o problema não é exclusivo do Brasil e apresenta números diferentes, mas constantes, em 65 nações comparadas, tais como Chile, México, Argentina, Tunísia, Dinamarca, Croácia, Noruega e Japão. A solução, se é que existe, não é nada simples, mas a convicção da OCDE é que se faz necessário “criar uma cultura de responsabilidade compartilhada com impactos positivos no envolvimento do estudante com a escola e em seu comportamento”. Para isso, é preciso envolver alunos, pais, funcionários e professores nas decisões escolares.
A “palmada” sugerida pelo papa é, no fundo, uma pequena metáfora para o envolvimento mais responsável de educadores (primeiramente pais, em seguida professores) no processo de formação de crianças e adolescentes após o que uns poucos autores chamam de “falência dos métodos educativos libertários que caracterizam a pedagogia desde os anos 60”. Para esses, liberdade não implica só independência nem arbítrio, mas a busca de um equilíbrio entre controle e confiança, intransigência e amor. Em outras palavras, seria preciso reencontrar, pela coragem da severidade, a virtude sufocada pela moralidade triunfante do mercado.
Claro, sempre houve pais ausentes, indiferentes, autoritários, drogados ou então condições sociais degradadas que tornam os filhos incapazes de amar e trabalhar. Por outro lado, nunca houve educação sem o exercício de uma forma disciplinar, isto é, a capacidade de dizer “não”, o que pode implicar conflitos pedagógicos, mas igualmente a possibilidade de crescer na “morte simbólica dos pais”.
Mas agora, no vazio aberto pelo enfraquecimento da autoridade parental e das estruturas pedagógicas, entram o consumo desenfreado, a mídia e as drogas. Às vezes, podem ser lidos como sinônimos. O consumismo conseguiu afirmar-se como uma relação social que produz seres autocomplacentes ou narcisistas; a mídia, agora uma realidade virtual ao alcance de todos, como um tipo de contato sem afeto; a droga, como uma endemia de crescimento. A indisciplina e a violência resultantes são cúmplices da permissividade parental e pedagógica.
A “palmada” do papa Francisco pode ser lida nesse quadro como um elogio da disciplina. Não é uma simples posição moralista, mas uma intervenção propriamente “religiosa” contra a marcha coletiva para o afundamento no pântano do caráter desfibrado.
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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fonte: OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA
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