março 20, 2015

"A persistência do fracasso prisional: a hipótese do ilegalismo em Michel Foucault". Por Marcelo Buttelli Ramos e Gustavo Noronha de Ávila

PICICA: "Entre os críticos do funcionamento do sistema de justiça criminal, Michel Foucault se fez conhecido através das suas investigações acerca das novas e das velhas tecnologias e dispositivos de disciplinamento, controle e vigilância do homem moderno[1]. Em sua vasta produção teórica, Foucault arquitetou diversos neologismos cujos significados, ainda em discussão, ensejam, frequentemente, calorosas discussões no âmbito das ciências sociais.[2]

Dentre os inúmeros termos concebidos por Foucault em sua crítica à sociedade normalizadora, despontam a biopolítica, a governamentalidade e, finalmente, aquele que deve ocupar a nossa atenção nas próximas linhas, o ilegalismo."


A persistência do fracasso prisional: a hipótese do ilegalismo em Michel Foucault


Por Marcelo Buttelli Ramos e Gustavo Noronha de Ávila

Para a coluna Liberdades
Entre os críticos do funcionamento do sistema de justiça criminal, Michel Foucault se fez conhecido através das suas investigações acerca das novas e das velhas tecnologias e dispositivos de disciplinamento, controle e vigilância do homem moderno[1]. Em sua vasta produção teórica, Foucault arquitetou diversos neologismos cujos significados, ainda em discussão, ensejam, frequentemente, calorosas discussões no âmbito das ciências sociais.[2]

Dentre os inúmeros termos concebidos por Foucault em sua crítica à sociedade normalizadora, despontam a biopolítica, a governamentalidade e, finalmente, aquele que deve ocupar a nossa atenção nas próximas linhas, o ilegalismo.

Trabalhada inicialmente na obra “Vigiar e Punir” (1975), a expressão, que se situa no campo das discussões sobre as formas e as finalidades do disciplinamento humano, representa uma lúcida e interessante forma de questionar as finalidades da norma jurídica, notadamente a de natureza penal, que, através dos séculos, escapa à lógica cronológica da história do encarceramento.[3]Ao explorar a potencialidade crítica que surge com o termo, Foucault indaga acerca dos (reais) objetivos históricos que se realizaram a pretexto do fracasso do cárcere.
“qual é a utilidade desses fenômenos que a crítica, continuamente, denuncia: manutenção da delinqüência, indução da reincidência, transformação do infrator ocasional em delinquente. Talvez devamos procurar o que se esconde sob o aparente cinismo da instituição penal (…) deveríamos então supor que a prisão e de uma maneira mais geral, sem dúvida, os castigos, não se destinam a suprir as infrações, mas antes a distingui-las, a utilizá-las; que visam, não tanto tornar dóceis os que estão prontos para transgredir as leis, mas que tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral de sujeições”.[4]
Dessa referência específica advém outra, que nos parece apontar para o argumento central desse exercício, proposto pelo autor, de subversão do tradicional significado das leis penais:
“a penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir, em parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles”.[5]
Possível perceber, portanto, que a noção de “ilegalismo”, em Foucault, põe em xeque não o ato humano que transgride a norma jurídica (v.g. a ilegalidade), mas sim essa estratégia política, usualmente operada pelo Estado, que instrumentaliza a percepção social sobre a violência, visando, com isso, a criação de uma delinquência útil, legítima em última análise, que autoriza a adoção de expedientes jurídicos extraordinários, muitas vezes contrários a própria lei.

Optamos por dar alguma concretude a essa impressão relembrando aquele acontecimento que, na história da jovem democracia brasileira, abalou profundamente a possibilidade de se pensar, humanitariamente, o trato da questão criminal no Brasil: o advento da Lei dos Crimes Hediondos (LCH) (1990).

Em vigor há mais de duas décadas, a LCH apresentou-se, por meio da sua rígida normatividade, como uma perfeita antítese ao projeto político preconizado pela Lei de Execução Penal (LEP) (1984).[6] Neste sentido, enquanto a LCH optou pela estruturação de um discurso normativo baseado nos ideais do enclausuro e da incapacitação dxs apenadxs, a LEP mirou, na antípoda, a sua “harmoniosa integração à sociedade”. [7]

Essa nova economia de poder engendrada pela LCH fez-se sentir, a nosso ver, através de uma tentativa inicial de definição da impossibilidade de progressão de regime e da obrigatoriedade do regime fechado como regime inicial de cumprimento de pena. Dito de outro modo, sob o pretexto de se punir com mais eficiência, o Estado democrático brasileiro, através das próprias instituições, passou a referendar, cobrindo com o manto da legalidade, práticas nitidamente atentatórias aos direitos humanos.

Essa espécie de técnica política, cínica em sua essência, tem chancelado o surgimento de regras típicas de estados que flertam com o regime de exceção, onde a relativização ou mesmo a negação de direitos fundamentais, surge como caminho natural em face da necessidade de “suspensão do ordenamento vigente”[8] em relação a um inimigo comum “cuja aniquilação restaurará o equilíbrio e a justiça”.[9]

Esses breves comentários buscam sugerir que a investigação do controle diferencial e enviesado das ilegalidades, promovido, no caso do controle penal, pelo próprio Estado, pode servir ao questionamento da legitimidade deste giro estratégico das finalidades do cárcere e da legislação penal brasileira.

A discussão aqui proposta – acreditamos – ganha relevância na medida em que ajuda a compreender os motivos pelos quais o cárcere persiste, enquanto tradição, não obstante o seu fracasso tenha sido “registrado quase ao mesmo tempo de seu surgimento”.[10]

Marcelo Buttelli Ramos é Especialista em Ciências Penais pela PUCRS. Mestrando em Ciências Criminais também pela PUCRS. Advogado.

Gustavo Noronha de Ávila é Doutor e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor do Mestrado em Direito do Unicesumar. Professor de Direito Penal e Criminologia das Faculdades de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da Unicesumar. Também é docente nos cursos de especialização em Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estadual de Maringá, Unicesumar, Instituto Paranaense de Ensino e do Centro Universitário Ritter dos Reis (Porto Alegre/RS). Autor da obra “Falsas Memórias e Sistema Penal: A Prova Testemunhal em Xeque”, publicada pela Editora Lumen Juris (RJ).

[1] Dentre os inúmeros cursos ministrados por Michel Foucault enquanto titular da cátedra da Collège de France, sugerimos a leitura dos seguintes, em virtude da sua adequação para com a tema que constitui o objeto desta breve exposição: FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008; FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
[2] Importante lembrar que nenhuma análise da vasta (e boa parte inédita) obra de Foucault pode ser considerada definitiva. Trazemos aqui, tão-somente, uma interpretação acerca dos seus escritos sobre ilegalismos e das prisões, no estrito espaço de uma coluna. Edgardo Castro, tradutor de sua obra para o espanhol, deixa claro a necessidade de cautela em qualquer discussão: “O ciclo das publicações dos textos de Foucault não está fechado. Não só porque não apareceram senão dois de seus treze cursos no Collège de France, mas porque o ‘arquivo Foucault’, agora depositado na Bibliothèque Nationale de France, compreende aproximadamente 40.000 folhas inéditas, entre as quais se encontram o quarto tomo de História da sexualidade, As confissões da carne, e três dezenas de cadernos, diário intelectual no qual Foucault registrou suas leituras e reflexões desde 1961 até sua morte.” (CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014, p. 11)
[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; 38 ed. Petrópolis: Rio de Janeiro. 2010, p. 251.
[4] Ibidem. p. 258.
[5] Idem.
[6] Cf. ÁVILA, Gustavo Noronha de. Política Criminal e o Código Penal de 1984: O discurso punitivo ressocializador entre permanências e resistências. In: LOPES, Luciano Santos Lopes; SILVA, Guilherme José Ferreira da; BRODT, Luis Augusto Souza. (Org.). Parte Geral do Código Penal Brasileiro 30 anos depois. 1ed.Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2014, v. 1, p. 227-242.
[7] Curioso perceber, no ponto, a contradição lógica que se estabelece a partir do cotejo entre a ideologia dos movimentos políticos que inspiraram a edição das referidas leis e os seus respectivos momentos históricos de surgimento.
[8] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 48.
[9] ŽIŽEK, Slavoj. Em Defesa das Causas Perdidas. Trad. Maria Beatriz de Medida. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 281.
[10] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 26a ed. Rio de Janeiro: Graal, 2013, p. 216.

Fonte: Justificando

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