PICICA: "Nos diálogos de Birdman
não há campo e contra-campo, a câmera foca um objeto intermediário,
geralmente decisivo para a compreensão do encontro. Também os travelings
citam Godard, não para apreender a totalidade da situação, mas para
mostrar como a ilusão de que com a totalidade mostrada vamos perder o
essencial. Se Bird, o filme de Alan Parker (1984), retrata o narcisismo dissociativo de dois egressos do Vietnam (um sem rosto, outro que se acha um pássaro), Birdman (2014) é o retrato de um narcisismo associativo,
que vive um estado perene de indeterminação, às vezes calculado, entre
público e privado, entre solilóquio e diálogo, entre representação e
real, entre ficção e verdade."
Fundamentalismo narcísico
[Michael Keaton, em fotograma do filme Birdman, ou, a inesperada virtude da ignorância (2014), dirigido por Alejandro González Iñárritu.]
O artigo que Slavoj Žižek publicou aqui no Blog da Boitempo, pensando, em ato, o atentado contra o semanário Charlie Hebdo,
começa suspendendo nossa recepção espontânea, que procura culpados e
vítimas segundo geografias pré-estabelecidas. Apoiando-se em Nietzsche e
Yeats ele imputa parte das razões do atentado a uma espécie de crise de
nossas crenças, no contexto de um colapso regressivo das nossas teorias
da transformação. Ao aventar a possibilidade de que os próprios
terroristas desconfiem dos princípios que pregam, e que isso poderia ter
os levado a confirmar sua crença em ato, como uma prova de fé, ele
retoma uma perspectiva que é absolutamente liberal.
Retomando um
de seus temas mais importantes – a crença – Žižek nos remete ao
problema das comunidades autênticas, ao retorno de valores esquecidos e
ao poder construtivo da indignação com o mundo que nos é oferecido. Seu
argumento sugere que o fundamentalismo islâmico é um caso particular do
fundamentalismo em geral e por isso não deve ser apreciado pelo seu
conteúdo, como se a cultura islâmica devesse ser chamada ao tribunal. O
ponto de Žižek é que esta é uma resposta muito pobre e pouco elaborada
para este estado de crise permanente com relação a nossas próprias
crenças. Certo, isso é um traço de nossa disposição ética na modernidade
desde a noção cartesiana de moral provisória. Contudo, isso não explica
porque só depois da queda do muro de Berlin, da intervenção irrestrita
em regiões resistentes a este modelo civilizacional e da implantação
inquestionada das políticas neoliberais que um novo tipo de terrorismo
se alastrou.
A hipótese
de Žižek não tem nada que ver com a repetição de um mantra marxista ou
revolucionário. Ele afirma que o fundamentalismo é uma resposta
exagerada, em meio a um cenário composto pela ausência de alternativas,
sentidas como efetivamente reais, para a transformação de um determinado
estado de coisas. A hipótese que não foi efetivamente discutida por
seus críticos é de que os terroristas sentem-se inferiores e não
superiores quando se trata dos valores que defendem. Esta indeterminação
quanto ao que realmente acreditamos, não é oriental ou ocidental, mas
um sintoma típico do excesso de crença que nos é exigido quando temos
que engolir este mundo como o melhor dos mundos possíveis. Daí a ligação
entre a ascensão do fundamentalismo islâmico e o declínio da esquerda
no oriente:
“O
fundamentalismo é uma reação – uma reação falsa, mistificadora, é claro
– contra uma falha real do liberalismo, e é por isso que ele é
repetidamente gerado pelo liberalismo. Deixado à própria sorte, o
liberalismo lentamente minará a si próprio – a única coisa que pode
salvar seus valores originais é uma esquerda renovada. Para que esse
legado fundamental sobreviva, o liberalismo precisa da ajuda fraterna da
esquerda radical. Essa é a única forma de derrotar o fundamentalismo, varrer o chão sob seus pés.” (Slavoj Žižek, “Pensar o atentado ao Charlie Hebdo”)
O texto de Žižek foi republicado pela Folha com resposta de João Pereira Coutinho, intitulada “Não é o ocidente que deve mudar, mas o Islã” e que declarava, em síntese, que
- o Islã precisa passar por uma reforma que desvincule vida comum e religião, modernizando-se e iluminando-se como nós;
- Žižek alinha-se com ideias de Hitler, Lenin e Carl Schmitt sendo ele mesmo um fundamentalista de esquerda, (“que deveria estar na cadeia”, como ele diz em outro artigo);
- Žižek engana-se porque desconhece os pormenores das formas religiosas islâmicas confundindo assim jihadismo, fundamentalismo e radicalismo.
É realmente
incrível como críticos especializados, que ganham a vida com isso, sejam
incapazes de ler: a única forma de salvar os valores originais do liberalismo
é reconhecer que a nova esquerda tem alguma contribuição a dar em
matéria de formação de convicções. Não se trata do comunismo, nem do
socialismo, mas da importância da esquerda radical para o próprio
liberalismo.
Para surpresa geral o texto de João Coutinho é ecoado por gente esclarecida como Contardo Calligaris (“O que me ofende“, Folha de S.Paulo),
para quem nossa modernidade se funda na ausência de fundamentos. Mas
premido pelo contra-fundamentalismo de ocasião, a tese de Žižek se
transforma na ideia de que nossa fraqueza (a crise de convicções) é
nossa força, de tal forma que não seria preciso “injetar um novo
fundamentalismo no Ocidente”. Como se fosse isso mesmo que Žižek está a
pregar. Como se o individualismo não fosse um dos fundamentos da
modernidade. Como se só os de esquerda procurassem fundamentos, enquanto
os de direita flutuam no ar. Também Paulo Ghirardelli (“Sobre o Islamismo: nem Žižek e nem Coutinho, mas redescrição rortiana“),
apesar de mais ponderado, comprou esta versão neutralizante do texto.
Tudo não passa de uma repetição de um estigma do que a esquerda (e Žižek
em particular) diria em qualquer situação. Espero ter mostrado que isso
se aplica ao espírito carniceiro de João Coutinho, mas não a Žižek, que
raras vezes defende o retorno aos valores originais do liberalismo.
Ou seja, Žižek foi transformado no inimigo interno. Ele mesmo é o fundamentalista defensor de crenças perigosas. O fato de que Charlie Hebdo
é uma publicação de esquerda foi esquecido. O fato de que seus
quadrinhos davam sobrevida a um tipo de humor descendente de Maio de
1968, foi tornado irrelevante. A grande marcha triunfal que descreve a
evolução de nossas crenças, que vão do animismo às religiões
patriarcais, terminando na ciência e passando pelo liberalismo político e
principalmente econômico, fica incólume. O atentado não coloca em
questão nada do que estejamos realmente fazendo. Ele é apenas um
fenômeno residual, externo à nossa própria forma de vida e ao nosso
consequente regime de crenças. Uma forma que será saneada com o
progresso da consciência e com a expansão do espírito de liberdade assim
constituído. Até então devemos resignadamente acolher os efeitos
colaterais da modernidade neoliberal.
A tese de
que o fundamentalismo é uma solução simplória para um tipo específico de
narcisismo talvez seja banal, mas é ela que deve ser discutida, não se
as nossas crianças universitárias estão em perigo nas mãos do esloveno. O
narcisismo, assim como o capitalismo, tem uma história que se
transforma em relação direta com a gramática de nossas crenças. Incrível
que nada disso tenha sido tocado, ou sequer reconhecido, pelos críticos
de Žižek. Parece que o ódio prevenido contra o seu “fundamentalismo” os
obriga a retratá-lo vomitando Marx, Lenin e Stalin, mesmo que o que ele
esteja realmente fazendo seja sussurrar Nietzsche, Yeats, e talvez
também Freud ou Lacan.
O debate em torno do Charlie Hebdo
transformou-se assim em uma oposição inútil – esta sim repetitiva –
entre os que defendem crenças envelhecidas, baseadas em valores
comunistas (Cuba Khmer Vermelho, PT, corrupção, tudo isso junto e
misturado com militância religiosa e política…), e aqueles que não
precisam mais acreditar em nada porque já superaram este estágio
primitivo de permanência no mundo. Em vez de insistir na inanidade desta
falsa divisão, gostaria de mostrar como certos atos perturbadores,
incompreensíveis e violentos podem emergir bem no centro de nossa forma
de vida “correta”, ainda que advoguemos que não há nada de errado com
ela.
O problema
não está numa disputa entre valores mais arcaicos ou mais modernos, que
nos faria ler os ataques terroristas como uma espécie de crise de
crescimento. Os terroristas não vieram dos confins rurais do
Afeganistão. Eles são pessoas nascidas e criadas na França, são
imigrantes na Inglaterra, como poderiam ser adolescentes insatisfeitos
em um colégio americano. Pessoas cuja insatisfação tornou-se tão
sistemicamente impossível de ser acolhida e nomeada, que lhes resta o
suicídio como mensagem. É esta divisão que o neoliberalismo não consegue
pensar porque é ele mesmo que a produz.
Aquilo que
Žižek chama de “reação falsa e mistificadora” ligada à “falha real do
liberalismo” pode ser pensada também com o filme Birdman, ou, A inesperada virtude da ignorância
(2014), dirigido por Alejandro González Iñárritu. O filme aborda uma
espécie de tragédia que se dissemina e se aprofunda nas relações quando
estas estão expostas a expectativas de reconhecimento totalmente fora da
potência de auto-realização dos envolvidos. Ela não tem a ver com os
valores envolvidos, girem eles em torno da família, do trabalho ou do
amor, mas com a superestimação da crença e do modo como se realizam. Não
tem a ver com a natureza das regras, sejam elas modernas, pré-modernas
ou pós-modernas, mas com o sentimento de injustiça e de que não é
possível sua transformação prática. Finalmente, não tem a ver com
fundamentalismo ou radicalismo, com a pureza ou podridão de princípios
gerais, mas com o nível de implicação e consequência que alguém coloca
naquilo que faz.
Riggan
Thomson (Mikael Keaton) é o protagonista de uma peça de teatro, cujo
roteiro ele mesmo adaptou a partir de uma história de Raymond Carver, e
que está prestes a estrear na Broadway. A peça é sua desesperada
tentativa de voltar a fazer sucesso desligando-se do papel que lhe
trouxera fama e fortuna, mas que agora torna-se um pesadelo que ele
arrasta dentro de si. Birdman, o super-herói que ele interpretava no
cinema, sobrevive como voz e sombra a puxá-lo para o passado, incitando
seu lugar especial junto ao público. Sua tentação narcísica oscila entre
provar que ele é mesmo super-poderoso, por trás da máscara, e as
dificuldades em se fazer reconhecer por um sistema que ele não entende
mais como funciona.
Assim como antes falávamos de um choque de civilizações, podemos dizer que o filme trata de um choque narcísico entre gerações.
No primeiro
andar está o velho e decadente Riggan e sua problemática identificação
com um personagem, que é também a síntese de tudo o que ele não é mais.
Sua crise narcísica é vivida como solidão e esvaziamento. Falta crônica
de amor. Como não ver aqui uma alusão a Ronald Reagan, que nos anos 1980
sai das telas para a presidência implantando, junto com Tatcher, a
religião neoliberal.
No segundo
andar encontramos, Mike Shiner (Edward Norton) com quem ele contracena
na peça, que é um ator de meia idade marcado pelo cinismo e pela máxima
de que “o real é o próprio palco”. Aqui está uma metonímia dos anos 1990
e sua brilhante (shine) promessa de consumo sem fim, de
realização ilimitada e de ganhos infinitos. Ele é capaz de tudo, desde
que perceba o olhar da plateia. Sem isso, sente-se impotente. Parece
superior mas está obcecado pela inferioridade. Ele pode matar, mas só se
perder o olhar do outro.
No terceiro
andar está a filha de Riggan, meio debilitada, meio alheia, voltando da
reabilitação e tentando achar seu lugar no mundo. Ela sofre na errância e
no recuo defensivo com relação a crer, em qualquer coisa. Seu
narcisismo digital foi formado em uma geração que cresceu advertida
quanto aos poderes da imagem fabricada. Tatuada em seu ombro está uma
pena de escrever que se dissolve em inúmeros pássaros que, qual um
desenho de Escher, saem voando no desintegrar da pena.
Se nos anos
1980 tudo que é sólido desmancha no ar, e se nos anos 1990 tudo vem do
pó ao pó retorna, nos anos 2010, tudo que se escreve evapora como
pássaros à deriva. Sequelada pelo falso reconhecimento das gerações
anteriores, ela está dividida entre o pai, excessivamente preocupado em
ter sido um bom pai e ter fracassado na missão (preocupado com o sucesso
aqui também), e o ator coadjuvante, que ela tenta seduzir, apesar dele
estar excessivamente preocupado com seu próprio fracasso viril. Dividida
entre verdade ou consequência ela pratica o narcisismo do
distanciamento, sedento de autenticidade.
Óbvio que os
determinantes do descontentamento e da insatisfação são de natureza
material, mas o capitalismo não sobrevive sem um espírito. A reação
“falsa e mistificadora” de que fala Žižek é o correlato narcísico deste
problema. A crise de crenças não é uma crise no quê acreditar (Bíblia ou Corão), mas na própria gramática narcísica e simbólica das crenças. Por isso as palavras de Alain Badiou sobre o episódio do Charlie Hebdo são também como comentário involuntário sobre Birdman:
“Várias
identidades falsas, cada uma se considerando superior a outra, fixam
ferozmente sua dominação local em pedaços deste mundo unificado. Elas
dividem o mesmo mundo real, onde os interesses dos agentes são os mesmos
em toda parte: a versão liberal do Ocidente, a versão autoritária e
nacionalista da China ou da Rússia de Putin, a versão teocrática dos
Emirados, a versão fascista dos grupos armados…” (Alain Badiou, “O vermelho e o tricolor”, Blog da Boitempo)
A ideia de
que a vida é um teatro está nos fundamentos da modernidade, de Caldeirón
de La Barca a Shakespeare, mesmo que se queira acreditar, como Shiner,
que não há fundamento algum, só palco e plateia. Birdman é uma
anatomia do narcisismo de nossa época porque o mundo não é só palco e
plateia. Ele tem coxias, iluminação, camarins, bastidores e até mesmo a
beirada do telhado, na qual meditam os candidatos a anjos caídos; o café
da esquina, o teatro da frente, os tipos periféricos da rua, a
bilheteria, o público pagante e até mesmo o crítico especializado.
Tudo isso
permite que a trama se desenrole absorvendo uma das características
formais mais típicas de nosso narcisismo fundamentalista: a passagem das
cenas ocorre sem corte. Há aceleração do tempo, transições escalonadas
pela imagem, câmera no pescoço do protagonista, mas não há o tão
decisivo corte em que uma cena termina e outra começa, ainda que com um
diminuto intervalo. A trilha sonora baseada quase que exclusivamente em
percussão trabalha na mesma direção, pois não permite inferir modulações
de humor, apenas momentos de intensificação e depressão. Ocorre que o
relógio da história não marca a mesma hora em todos os seus quadrantes. A
solução terrorista, não é somente a do suicídio, nem a agressão ao
olhar do outro que não o reconhece, ela é também um apelo errante e à
deriva, para criar um lugar em meio a um diálogo sem cortes.
Nos diálogos de Birdman
não há campo e contra-campo, a câmera foca um objeto intermediário,
geralmente decisivo para a compreensão do encontro. Também os travelings
citam Godard, não para apreender a totalidade da situação, mas para
mostrar como a ilusão de que com a totalidade mostrada vamos perder o
essencial. Se Bird, o filme de Alan Parker (1984), retrata o narcisismo dissociativo de dois egressos do Vietnam (um sem rosto, outro que se acha um pássaro), Birdman (2014) é o retrato de um narcisismo associativo,
que vive um estado perene de indeterminação, às vezes calculado, entre
público e privado, entre solilóquio e diálogo, entre representação e
real, entre ficção e verdade.
Portanto
quem acha que os atentados são coisa de quem está querendo voltar para a
Idade Média, de que sua mensagem representa um anseio de retorno a
valores sólidos, comunitários e estáveis, que falaciosamente a esquerda
estaria defendendo, está simplesmente equivocado.
Aqui existe uma diferença entre o atentado contra o Charlie Hebdo
e as decapitações e imolações promovidas pelo Estado Islâmico. A nova
esquerda defende o corte, a suspensão, a retomada da lógica do conflito.
Sem ela não haverá mais lugar para a dissonância que não no ato de
violência, na encruzilhada das ilusões. O choque narcísico vivido pelos
imigrantes, refugiados, excluídos e pelas demais formas de vida
primitivas ou ultrapassadas, nada fica a dever ao heroísmo de nossos
próprios ídolos. Eles acham que vão sair voando, e às vezes fazem por
onde. Eles se revoltam contra o sistema, ignorando suas transformações.
Só que a eles não concedemos a virtude da ignorância. Não vamos dar o
Oscar para eles, nem exterminá-los como eles fazem conosco, não vamos
fazer nada até que entendamos que eles são intimamente como nós.
***
A Boitempo lança este mês o novo livro de Christian Dunker: Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros. A integrar a coleção Estado de Sítio, coordenada por Paulo Arantes, o livro parte de uma psicanálise da vida em condomínios para desenvolver uma aprofundada reflexão interdisciplinar sobre a privatização do espaço público e a inserção da psicanálise no Brasil. Confira a aula dele, no Café filosófico do CPFL Cultura, sobre as transformações no sofrimento psíquico:
***
Christian Ingo Lenz Dunker é
psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do
Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012, seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, no prelo). Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte: Blog da Boitempo
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