Amazônia brasileira
22/5/2008Amazônia e a quinta lei de Asoka
Por Jorge Tufic
Para que os homens dêem um único passo para dominar a natureza por meio da arte da organização e da técnica, antes terão que avançar três em sua ética.
Novalis (1772 – 1801)
I – PORQUE MATARAM KENNEDY
A importância do homem está na razão direta de sua inteligência, e não do instinto predatório. Daí a criação do eruditismo ecologia, suas divisões e desdobramentos. Apela-se aqui, não somente para a inteligência humana, mas também para o lado sensível da própria matéria que lhe dera forma e poder, sendo ela capaz de avaliar e reconhecer os incontáveis prejuízos causados à Natureza, desde que surgira no chamado planeta dos macacos. Se, por acaso, tivesse o bípede implume alguma origem divina, nada disto seria necessário. Diante de tal realidade, esta ciência é uma das mais abrangentes de todas. Talvez a mais abrangente de todas. E uma das mais antigas.
Quando falamos no apelo à matéria do homem, quisemos com isto apenas inseri-lo, contextualizá-lo no mundo do qual, apesar de tudo, ele se julga separado e até se envergonha de lhe pertencer; e assim o transforma, sem ligar para a estrutura primitiva em que ambos, homem e natureza, consumidor e objeto, estiveram, estão e continuarão comprometidos. É terrível mergulhar ao ponto em que ambos se encontram e se renovam, e quanto é belo saber que a vida está impregnada de vida e também de outras vidas. Basta lembrar que a teia alimentar, lugar comum de qualquer Enciclopédia, não estabelece distinções honrosas. As distinções honrosas se fazem na superfície, elas devem ou deviam ter nascido com o homem, forma superior ou peculiar de consciência ativa, mas frágil, extremamente frágil em comparação aos bilênios em que esteve esperando o momento oportuno para despertar.
Para que se tenha uma idéia das rupturas causadas na face da terra desde o aparecimento do homem, basta que se remonte às cavernas e à caça de animais, já então responsável pelo extermínio de espécies valiosas. A partir daí, toda e qualquer devastação de recursos naturais começa, inevitavelmente, com a prática da caça, exploração de montanhas, destruição do solo, desperdício e saque. Nos EE UU, segundo Stewart L. Udall, autor do livro “A Crise Silenciosa – a tragédia do desmatamento e da erosão”, “a presunção generalizada era de que as árvores, como os índios, eram um obstáculo à colonização e os madeireiros eram, por conseguinte, pioneiros do progresso”. Esta obra é do início dos anos sessenta e não é outro senão Jonh F. Kennedy que diz na sua introdução: “A crise pode ser silenciosa, mas se reveste de inegável urgência. Devemos fazer, hoje, o que Theodore Roosevelt fez há sessenta anos e Franklin Roosevelt há trinta anos: devemos ampliar o conceito de conservação para atender aos problemas imperiosos dos novos tempos. Devemos aperfeiçoar novos instrumentos de previsão, proteção e educação para se recuperar a relação entre o homem e a Natureza e se ter a certeza de que o patrimônio nacional que transmitimos aos nossos descendentes foi zelado como merecia”. E numa seqüência de fotos, há legendas assim: A terra que herdamos / era um mundo de florestas sem fim / e rios caudalosos / em que o solo se cobria inteiro de vegetação / Mundo de terras férteis e seguras / aquele que o índio habitava / e a intrepidez do bandeirante nos legou... / Sem conservação o solo se empobreceu / e a vegetação escasseou / ou morreu / Exaurida a terra / numa devastação total / só resta o abandono do chão / ...para trás ficando a tapera. E amanhã? / Por aqui já correu um rio / que acalentou, também, muita esperança. / Hoje, sobre seu leito seco, apenas areia... ou lama que virou pedra! / A seara do inferno / desnecessária e maléfica / Recursos malbaratados, num tipo de devastação cruel e desenfreada / em que muitas vezes o fogo vem completar a obra iniciada pelos insensatos.
Isto na década 60. E Kennedy foi morto porque via a possibilidade de uma “ética agrária” tão honesta quanto o Walden, de Thoreau, e tão geral como a ciência ecológica. Cogitava-se então de uma técnica para o futuro, uma volta ao passado pastoral de um século atrás; reliam-se os almanaques e dava-se um novo colorido semântico às palavras de Aldo Leopold, que asseverava: “Abusamos da terra porque a consideramos mercadoria que nos pertence. Quando a vemos como uma comunidade a que pertencemos, começamos a usá-la com amor e respeito”. Estes exemplos, restritos a países do primeiro mundo, oferecem uma visão concreta sobre a guerra mundial que sempre existiu no nível de aproveitamento, sabedoria e convivência superior entre as necessidades materiais e as reservas substantivas que jazem, animam ou se elevam do solo. Mas pouco importava ainda o desmatamento e as queimadas da Amazônia. Nem a exportação de peles de animais silvestres. Nem a extinção do peixe-boi e a tartaruga da água doce.
Um dia, porém, alguém viu e gritou: “-Estamos sendo queimados!” Era a película de ozônio, uma espécie de camisa de Vênus do planeta, que começava a vazar os raios da morte; e a face hedionda de Tânatos insinuava-se, por essa abertura, mais temerária do que as ameaças do Apocalipse, visto que, a partir da explosão atômica as catástrofes naturais como choques astronômicos, que a Deus pertencem, passariam a plano secundário, enquanto o homem, dono absoluto da tecnologia da morte, tornava-se imbatível com seu poder de exterminar a vida na Terra. Ao explicar esse fenômeno da ordem e da desordem na mente humana, escreve o psicanalista William Asmar: “A destrutividade humana seria um correlato psíquico da entropia, uma grandeza física que mede o grau de desordem num sistema energético isolado”. E conclui: “Acontece que foi dada ao homem a possibilidade de destruir a vida no planeta. Por que achar que isso foi só um acontecimento social? Por que isto não foi um dado biológico, uma mutação extemporânea? A gente pode considerar que o homem é uma espécie que apareceu num momento anterior ao que seria adequado. Ele poderia ter surgido daqui a não sei quantos milhões de anos num sentido de maior harmonia com a natureza. Mas o fato é que, desde o seu surgimento, ele é o ser mais predador do universo. Uma capacidade destrutiva tão grande não foi um mero condicionamento histórico ou social, isto veio com o homem, talvez junto à inteligência e à liberdade”.
Inteligência, liberdade, competição, imediatismo, usura. Concentração de grandes propriedades, extensos latifúndios, autoridade política envolvida, representação popular entre aspas, corrupção, parentela, clientelismo, fraude, etc, são termos afins. Mais perigoso, portanto, do que o velho projeto multinacional de ocupação da Amazônia é a farsa da política fundiária no Brasil, que esgarça a segurança nacional pelos flancos de uma legislação conivente com o entreguismo e os testas-de-ferro, enquanto expulsa, oprime e massacra o caboclo do interior, o homem do campo e os chamados “povos da floresta”. É claro que o Governo, de vez em quando pretende acertar. Mas, como disse o coronel-engenheiro Otomar Souza Pinto, citado pelo escritor Ernesto Pinho Filho no livro “Amazônia entre Contrastes”: “Muitas das iniciativas generosas do governo são desvirtuadas na sua fase de implementação e colocadas em mãos onde por vezes os interesses pessoais, os apetites de grupos predominam sobre o interesse público”.
Houve tempos, sem dúvida, em que projetos ou simplesmente planos de cobiça internacional serviram de pretexto para comícios, passeatas e enterros, acabando por afastar essa ameaça que pairava sobre a Amazônia. Estes mesmos grupos, no entanto, voltaram a atacar sob outros disfarces e, com o beneplácito do Governo brasileiro, conseguiram, afinal, num primeiro passo através de financiamento internacional e assistência técnica, desbravar os caminhos. E assim nasceu a Transamazônica. Num segundo passo aconteceu a penetração do capitalismo através dos Keith Ludwig, Deltec Internacional Packers, Volkswagen do Brasil, Liquigás (Itália) e Stanley Amos Sellig, somente para citar esses serviços na década setenta, mediante apoio do Banco Mundial, USAID e Blue Spruce Internacional, este último com projeto de vender herbicida ao governo, cinco toneladas para desflorestamento da Amazônia. Num terceiro passo aconteceu a apropriação dos minerais, a invasão das terras indígenas, a dispersão e o genocídio que veio terminar com o massacre dos W Atroari, na construção da BR-174 (Manaus - Boa Vista). Que era então dos nossos Governadores, Deputados Federais, Senadores e políticos profissionais para defender a Amazônia? Sabe-se, contudo, que muitos destes oráculos de hoje estavam associados ao bandido ou pagos para calar.
Assim foi que, há 12 anos, declarava o Gel. Edgardo Mercado Jarrín, ex-Ministro da Guerra do Peru, em artigo estampado na revista “Encontros com a Civilização Brasileira”, n°11: “As empresas multinacionais obtiveram posições inacreditáveis na conquista da Amazônia brasileira, sem maiores restrições e em detrimento da delicada ecologia da região. Elas poderiam se converter num substituto moderno das velhas idéias de internacionalização da Amazônia, como o foram a criação, em Iquitos, do Instituto da Hiléia Amazônica ou o projeto dos grandes lagos do Hudson Institute, dirigido pelo futurólogo Kant”. E o quadro atual, com as minerações, garimpos, etc, alguns deles proprietários de jornais, rádios e televisões, além de detentores de mandatos políticos ou defendidos por eles? Estarão porventura estas empresas contribuindo para o bem-estar social, pelo menos, de tantos trabalhadores regidos unicamente pelas leis da selva e do mais forte?
Ainda agora, quando redigimos estas linhas, o noticiário da Globo anuncia que as levas de agricultores do sul contempladas com terras e financiamento do governo, poderão desmatar suas áreas de cultivo nos arredores do município de Manaus, a fim de compensar suas perdas ou prejuízos. Via-se pelo sorriso daqueles que assinaram os títulos junto ao Ministro da Agricultura que a meta, a glória e o orgasmo de nossos caboclos, mesmo que travestidos de cultura e poder, é o desmatamento. Algo profundamente íntimo e vingativo se gruda, como o visgo de Bahira, ao telurismo careta, seco e árido da postura irresponsável. Na mesma seqüência do horário, numa outra emissora, desfilam as imagens dos predadores e comerciantes internacionais da avifauna, que usam motos-serra para a derrubada de robles seculares com o único propósito de capturar filhotes de araras e papagaios aninhados em suas copas altíssimas. Em seguida, aparecem dezenas e centenas dessas aves sendo alimentadas à força e artificialmente até sufocarem, tudo em virtude da pressa que domina esse tipo de traficantes. O desânimo, a seguir, se abate sobre nós e quase deixamos de acreditar no futuro. Terá razão o acadêmico Austregésilo de Athayde quando transfere a culpa pelo destino da natureza à própria natureza? De uma coisa, porém, estamos certos: o desmatamento, ou seja, a desarborização vai exterminar as florestas patrimoniais da Amazônia da mesma forma que a cana-de-açúcar e o café são responsáveis pela eliminação das florestas do Sul. Com as fazendas de boi, tanto pior!
Mas, para coroamento da miséria e da pobreza do povo amazonense, uma réplica altamente sofisticada da extinta Cidade Flutuante, uma Cidade Flutuante do dólar e da tecnologia desloca-se, agora, de Okinawa (Japão) em direção a Manaus. Trata-se de “Aquápolis”, plataforma flutuante de três andares, com uma área de dez mil metros quadrados, adaptada para abrigar um centro de convenções, restaurantes, teatros, heliporto e vários outros serviços. Um outro projeto da “Aquápolis” ficou denominado como Eco-City, e deverá ter o seu lançamento em 1992. Dizem tratar-se de um centro de pesquisas voltadas para estudos preservacionistas e para o desenvolvimento de alternativas turísticas integradas ao ambiente natural da Amazônia. Em nossa opinião, contudo, esse projeto não passa de um Cavalo de Tróia da moderna tecnologia de invasão e posse territorial de uma área de cem mil quilômetros quadrados do Estado do Amazonas, em troca de um provável faturamento anual para a Zona Franca de Manaus de cerca de US$ 9 bilhões de dólares. Um verdadeiro estado dentro do Estado! Com isso, os japoneses não estarão exportando um “projeto de interesse nacional” para o Brasil, como dizem, senão colocando alternativas que possam seduzir os políticos da região, cujas fontes de renda se esgota a cada avanço da campanha mundial pela preservação da Amazônia, enquanto a Zona Franca de Manaus, esse encarte econômico de miséria e subemprego, tende a sucumbir.
Vejam em quanta contradição incorrem os nossos políticos e governantes: eles temem a dominação da Amazônia e cruzaram os braços enquanto a loteavam e saqueavam; eles argumentam a necessidade da exploração de nossos recursos naturais em nome da gente humilde do interior amazônico, mas sabe-se que o branco sempre usou o caboclo como os Tucano ainda usam os Macu; eles defendem alternativas ecológicas de manejo florestal, mas nada sabem nem mostram a respeito; enquanto isso, a engenharia e a sabença indígena não são consultadas; e o extrativismo, embora sendo a única forma “ecológica” de subsistência das populações interioranas, é posto de lado; eles condenam Chico Mendes e o acusam de traidor, mas não escondem temores justificados diante da possibilidade de estarmos contribuindo para um desastre ecológico; se apegam, enfim, à tônica do desmatamento, da lavoura e da pecuária, mas ignoram os estudos mais sérios que tratam do assunto. Fingem ignorar, por exemplo, que só no começo dos anos 70, 120.000 trabalhadores se ocupavam, na Amazônia, da derrubada de madeiras e árvores e da plantação de grama. Sobre o fato escreve Rubem Costa, ex-presidente do BNH: “Ambas são ocupações sazonais que criam sérios conflitos sociais; sem trabalho permanente, com um poder aquisitivo muito baixo, e sem nenhuma terra de sua propriedade, estes trabalhadores terminavam vivendo em favelas, completamente marginalizados e reduzidos à extrema pobreza. No futuro próximo, as grandes propriedades amazonenses provavelmente não empregarão mais que 20.000 desses 120.000 trabalhadores atualmente ativos”. Isto foi escrito em 1978! Dez anos após, um governador do Amazonas ajudou a construir algumas dessas favelas na periferia de Manaus. Outras já havíamos encontrado em alguns outros municípios do Estado, a exemplo de Manacapuru, Itacoatiara e Parintins, e ali estavam os refugos, de madeira e gente, cuja força de trabalho, energia e disposição, se foram para sempre.
A educação e a cultura que fazem do Japão, desde que fomos guindados de Vila a Província, talvez o país mais preocupado com a relação do homem com a natureza, sofrem aqui o boicote estratégico de uma política imoral e, portanto desumana. Andanças normais de campanha, em 1990, nos levaram da casa ao tapiri, do tapiri à canoa. Entrevistamos lenhadores, mateiros, agricultores e pescadores da região. Em nenhuma dessas comunidades, grupos e famílias, constatamos qualquer indício da mais rudimentar consciência ecológica. Os pescadores queriam pescar, mesmo que fossem piabas ou filhotes, e queixavam-se do Ibama. Inclusive, externavam sua revolta diante da liberdade com que pescavam seus colegas mais favorecidos pela distância e pelos acidentes geográficos, que dificultavam a aproximação dos fiscais. Pesca predatória e criminosa. Para sua sobrevivência? Não. E para quê? Para entregar o produto, a troco de nada, aos ávidos e espertos atravessadores... Nos demais segmentos, mudavam as personagens, mas o drama era o mesmo. Francamente, pensamos, com alguns níqueis, promessas e cachaça levaríamos daqui uma boa votação. Todavia, seguimos em frente.
A nosso ver, a zoada de políticos e economistas sobre este problema pode satisfazer a uns e outros, mas deixa a desejar a uma terceira corrente que se perfila entre as populações carentes do planeta Amazônia, a que todos, finalmente, pertencemos e de cuja integridade muita coisa, além de nós, parece depender no futuro. Este será o tema do próximo bloco.
Leia o texto na íntegra em Cronópios : o autor cita trechos do ensaio de Samuel Benchimol “Amazônia Interior: Apologia e Holocausto”.
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