FÁTIMA OLIVEIRA (*): É verdade. Em ciência, promessa é a regra
Visões teocráticas enclausuram as biociências no Brasil
Em 30.5.2005, o então procurador-geral da República Cláudio Fonteles protocolou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin nº 3.510-0), na qual insta o STF a considerar inconstitucional o disposto na Lei de Biossegurança referente a pesquisas em células-tronco embrionárias. Os argumentos do então procurador, uma obra-prima de abuso de poder, alicerçada na fé vaticanista para enclausurar a biociência nacional, diz apenas uma coisa: o então procurador, declarado católico, não teve senso em declarar que lava as mãos para a democracia quando é para impor a vontade de sua grei em leis laicas. Mas qual é o dispositivo legal questionado na Adin?
O art. 5º e parágrafos da lei nº 11.105, de 24.3.2005, que diz: "É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I. sejam embriões inviáveis; ou II. sejam embriões congelados há três anos ou mais, na data de publicação desta lei, ou que, já congelados na data da publicação desta lei, depois de completarem três anos, contados a partir da data de congelamento. § 1º. Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2º. Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisas ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética e pesquisa. § 3º. É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da lei nº 9.434, de 4.2.1997".
Em 5 de março passado, data do julgamento final, após os votos, pela improcedência da Adin, do ministro Carlos Brito e da ministra Ellen Gracie, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito pediu "vistas". Enquanto o STF não "bate o martelo" sobre a constitucionalidade da matéria, cientistas brasileiros não pesquisam em células-tronco embrionárias em solo nacional, submissos aos ditames de uma fé com ar de verdade única que reverencia a intocabilidade de embriões cujo destino é o lixo. Atrás dos panos, há o desejo confesso de mandar nos corpos das mulheres! Como o tempo não pára, perdem a ciência brasileira e a sociedade.
Falamos de embriões humanos destinados ao lixo, mas que podem servir à ciência, com o consentimento de quem lhes deu origem! Nada a ver com "fazendas de embriões"! Ademais, não há contradição em pesquisar células-troncos oriundas de embriões humanos, de humanos adultos, do cordão umbilical e do líquido amniótico, pois todas são ainda rotas de pesquisas não estabelecidas em plenitude. É engodo dizer qual a melhor sem que se saiba bem onde cada uma nos levará.
Sempre que a ciência estaciona ou se atrasa, as perdas sociais são de grande vulto. Alegam que falamos de promessas. É verdade. Em ciência, promessa não é crime, é a regra. A história da ciência é pródiga em demonstrar que, fora um acaso aqui e outro acolá, o desenvolvimento científico decorre de hipóteses que apostam em possibilidades. A discussão de fundo, que tem sido escamoteada, é a exigência de um contrato social e ético que as pesquisas das biociências, desde as rotas, se pautem pela ética e não pela fé; e opositores do progresso científico se estribem no respeito à ética condizente e necessária à ciência do seu tempo e não em oratórios do fundamentalismo e visões teocráticas de Estado, adornados do desejo de emparedar as biociências e cercear liberdades democráticas.
Publicado em: 27/05/2008
Fonte: Mhário Lincoln do Brasil
(*) Fátima Oliveira é médica, feminista, escritora, uma das 52 brasileiras indicadas ao Nobel da Paz 2005. Autora de 8 livros e inúmeros artigos publicados. Articulista do jornal O Tempo, BH, MG, e do Portal Mhário Lincoln do Brasil.
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