maio 28, 2008

Elogio da loucura

Foto: Rogelio Casado - Seu Manoel - Manaus-AM, anos 1980
Elogio da loucura

Imagine Ivan, personagem popular das ruas de Manaus, sendo recolhido ao hospital psiquiátrico. Ele que fez da Rua Simão Bolívar, canto com a Praça da Saudade, o lugar de um ritual diário de “autoflagelação”, jogando-se de costas, com abraços abertos, em direção ao muro de uma casa, desenhando uma cruz com seu corpo, envolvido numa manta encardida e maltrapilha que lhe servia de agasalho. Mais do que sua morte civil, certamente abrir-se-ia caminho para sua morte física, habituado que está a viver em espaços abertos.

A história da Reforma Psiquiátrica no Amazonas tem um registro que vale a pena refletir. Chamava-se Manoel o personagem que habitava uma ambulância dos anos 1950, abandonada nos fundos do Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro. Com longos cabelos presos num turbante, cuidava de manter cheias de água mais de 1500 garrafas espalhadas entre árvores próximas da sua estranha habitação. Raramente falava. Restringia sua comunicação às cozinheiras, por razões óbvias: saciar a fome.

Pois bem! Para permitir a construção de um Pavilhão de Oficinas de Trabalho, Manoel foi convidado a retirar-se do espaço que ocupou por décadas. Foi quando passou a falar pelos cotovelos. Invocou respeito pelos seus poderes, indagando como poderia continuar fabricando dinheiro, se o espaço já não lhe pertenceria mais. Embora tenha sido acolhido num pavilhão aberto, foi definhando, definhando... Acabou morrendo de tristeza. Nem só de pão vivia Manoel.

Num certo dia (faz tempo), um diretor do hospital psiquiátrico amazonense revelou para a imprensa local sua intenção de fotografar os “loucos de rua” para posterior recolhimento. Neste mesmo dia, psicanalistas e psiquiatras paulistanos defendiam o direito de circulação no espaço social dos “loucos de todos os gêneros”. Por essa e por outras entendo quando Marcio Souza, ao se exilar no Rio de Janeiro, declarou sua vergonha em ser amazonense. Por pouco, deixei de fazer declaração semelhante. É de morrer de vergonha tanta indigência cultural.

Manaus, Maio de 2008.
Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental
Pro-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da UEA
www.rogeliocasado.blogspot.com

Nota do blog: O presente artigo publicado no Caderno Raio-X, do jornal Amazonas em Tempo, que circula às quartas-feiras, foi inspirado numa discussão que tá rolando, na net, num grupo-de-defesa da Reforma Psiquiátrica.
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