NOAM CHOMSKY E AS ILUSÕES NECESSÁRIAS
Jorge Silva
Discretamente, anonimamente, no segredo que é o que caracteriza toda a programação televisiva alternativa ao monopólio global, a Rede Cultura do Brasil transmitiu o imperdível documentário “Consenso Fabricado” uma série de três capítulos sobre a vida e obra do pensador libertário norte-americano Noam Chomsky. Centrada nas análises mais polemicas e lúcidas de Chomsky, o documentário discute o papel contemporâneo dos mídia na fabricação do consenso na sociedades de massas. Noam Chomsky nasceu em Filadélfia em 1928 de família judia ucraniana. Desde cedo se aproximou das idéias libertárias de pensadores judeus como Martin Buber, Gershom Scholem e da tradição dos emigrantes anarco-sindicalistas. Professor do MIT (Massachusetts Institute of Technology), aos 30 anos já era internacionalmente famoso pelas suas pesquisas em lingüística e suas teorias revolucionárias sobre estrutura da linguagem: a gramática generativa.
Aquele que podia ter sido um pacato e famoso professor universitário, não compactuou, no entanto, com o poder. Tal como havia feito nos anos 30 - quase criança- manifestando sua solidariedade aos libertários espanhóis vítimas do fascismo de Franco, nos anos 60 foi um dos principais intelectuais presentes na oposição à guerra do Vietnã participando também das lutas dos direitos civis que abalaram o establishment norte- americano. Chomsky mostrou como um intelectual pode viver duas vidas: a dum cientista brilhante e a do engajamento nas causas sociais. A partir daí podemos encontrar ao lado da obra do famoso lingüista, as análises ácidas do analista independente capaz de escrever Os Novos Mandarins, Ano 501: A Conquista Continua ou As Ilusões Necessárias: O Controle do Pensamento nas Sociedades Democráticas. Uma obra que se estende por mais de cinqüenta livros traduzidos em todo o mundo.
A maior parte do seu tempo fora do MIT e da pesquisa universitária é gasto dando conferências para grupos comunitários e alternativos por toda a América do Norte. Para ele compromisso social é isso: defesa da liberdade, da justiça e da autonomia dos cidadãos. Essa radical generosidade tanto se manifesta na oposição à arrogância imperial norte-americana, quanto na solidariedade aos palestinos -ele que é um judeu-, ou no apoio à causa do povo maubere de Timor, essa ilha perdida na Oceania, onde se fala o português.
De forma desconcertante, desmontando os discursos dos intelectuais e especialistas da sociedade do espetáculo, Chomsky afirma: “Para analisar as ideologias, basta um pouco de abertura de espírito, de inteligência e um cinismo saudável. Todo o mundo é capaz de fazê-lo. Temos de recusar que só os intelectuais dotados de uma formação especial são capazes de trabalho analítico. Na realidade, isso é o que alguns nos querem fazer querer...”
Talvez por essa sua independência, sua autonomia, Noam Chomsky tem sido um intelectual suspeito para a esquerda dogmática, até porque sua visão libertária sempre o fez duvidar dos caminhos autoritários do socialismo de estado. Nos anos 80 afirmava: “Para a esquerda, a queda da tirania soviética foi uma alegria e uma pequena vitória. Sempre é positivo que desapareça uma forma de opressão.” Talvez por isso sua obra seja tão herética para as grandes editoras dos EUA, quanto para as confrarias da esquerda brasileira. Por essa razão a dificuldade de encontrar algumas das obras fundamentais de Chomsky em língua portuguesa, e também por isso o silêncio na universidade brasileira em relação ao mais conhecido e influente pensador norte-americano, contrastando com a omnipresença dos mais medíocres pensadores da ortodoxia marxista.
Mas pensar independentemente na sociedade de massas, onde os mídia domesticam o pensamento e fabricam os consensos -essa é opinião de Chomsky- é talvez o maior desafio dos intelectuais da nossa época. “O cidadão só tem uma maneira de defender-se do sistema de propaganda: o de adquirir algum controle sobre sua vida, vencendo o isolamento e organizando-se”, “as idéias da livre associação, do controle popular das instituições e de derrubada das estruturas autoritárias são o caminho da liberdade e da democracia.”
Segundo Chomsky a “fabricação de ilusões necessárias para a gestão social é tão velha como a história.” mas, foi a partir do começo do nosso século com o autoritarismo comunista e fascista que se criou o atual “modelo de propaganda” onde a instrumentalização dos cidadãos se faz através dos mais poderosos meios de manipulação de massas criados até hoje pelo o homem: a imprensa, o radio e a televisão.
Para os que o acusam de maniqueísmo, Chomsky responde com estudos documentados e detalhados do comportamento dos mass media americanos face aos grandes acontecimentos, particularmente da política externa norte-americana, demonstrando a cínica e distinta forma de tratar o genocídio no Cambodja e em Timor, a repressão em Cuba e na Guatemala, a violência palestina e israelense...
Esta análise “pode produzir a impressão de que o sistema é todo poderoso, o que está longe de ser verdade. As pessoas estão capacitadas para resistir, e às vezes fazem-no, com efeitos consideráveis.” Este otimismo vem da “da tradição que afirma que os seres humanos tem um instinto de liberdade e que tratam de ampliar ao máximo sua própria liberdade e a dos demais; que têm um impulso de solidariedade e empatia.”
Só que a fabricação do consenso nas sociedades democráticas, a manipulação e o isolamento são um obstáculo a esse potencial social positivo. “Uma nova tecnologia como a televisão é muito útil, porque produz o efeito de isolar as pessoas. Cada indivíduo está só diante da tela. Não se comunica com ninguém, nem atua em comum, nem se organiza. “; uma das razões é que “os indivíduos devem estar sozinhos, enfrentando o poder centralizado e os sistemas de informação de forma isolada, para que não possam participar de modo significativo na administração dos assuntos públicos.” O cidadão comum, para quem Chomsky continuamente afirma escrever seus livros, pode vencer o isolamento. “Se as pessoas com um poder limitado querem fazer algo, seja vencer o sistema de propaganda ou simplesmente adquirir algum controle sobre suas vidas, têm que criar organizações que lhes proporcionem uma força para contrapor aos principais centros do poder e quem sabe expandir essa força em outras direções.”
Mas o crítico da manipulação e do consenso fabricado, é também o grande especialista do estudo da linguagem -sinal de identidade definidora da espécie - e acredita na virtualidade da interação comunicativa. Mas para isso teria que haver mudanças substanciais no comportamento dos cidadãos, capazes de olhar criticamente a informação, “ler com lupa, com cuidado para não tropeçar em armadilhas”, dos jornalistas que deveriam “contar a verdade. Terem honestidade pessoal, coragem - até para perder o emprego - talento” e principalmente “uma política de comunicações democrática, que deveria tentar desenvolver meios de expressão e interação que reflitam os interesses e as preocupações da população em geral, fomentem sua auto-educação e sua ação individual e coletiva.”
Texto publicado no Anexo Cultural do jornal A Notícia (Joinville/SC), 1 de maio de 1996
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