O livro como instrumento de direitos e inclusão social
Rogelio Casado
Passavam das 10h00 da manhã quando cheguei ao auditório Alalau do campus da Universidade Federal do Amazonas – Ufam, na manhã desta sexta-feira. Lelio Lauria, Secretario de Estado de Justiça e Cidadania do Amazonas – Sejusc discursava sobre a importância da parceria entre a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Amazonas – Fapeam, Sejusc e Ufam, através de um convênio pelo qual a Editora da Universidade Federal do Amazonas – Edua passa a distribuir livros para os presidiários da cidade de Manaus, onde está situado o maior complexo penitenciário do estado.
Lelio Lauria teve a delicadeza de mencionar meu nome como diretor do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico – HCTP, época em que ele era presidente do Conselho Penitenciário no final dos anos 1990. Em seguida fez uma provocação intelectual aos presentes: acaso alguém poderia alimentar a visão fatalista de que o cidadão que cumpre pena de privação da liberdade estaria condenado a não usar o livro como instrumento de inclusão social? Lembrou com emoção de um presidiário que insistia na existência de um dispositivo legal, capaz de lhe assegurar os benefícios de um direito que lhe fora subtraído, e que lera numa pequena obra da autoria do professor que Lelio Lauria também é. Como testemunho, o presidiário invocou não só o conhecimento aprendido, como mostrou-lhe o livro amarrotado pelo manuseio. É legítimo pensar que com a perspectiva da liberdade, através do acesso a um direito expresso em linguagem jurídica, teve no livro uma fonte importante para projetar novos sonhos de vida.
Biblioteca Sobral Pinto
Lá, com os meus botões, pensei que só a psiquiatria conservadora, habituada a condenar moralmente os que desviam das normas de conduta padrão, seria capaz de cometer uma tamanha abstração sociológica, pela qual os presos estão excluídos da possibilidade de ter no livro um instrumento a serviço de novos sonhos de convívio social. Os tipos que se valem desse conhecimento costumam explicar os sonhos pela excitação das ondas cerebrais, e, não raro, a conduta criminosa também. Esta aí o uso distorcido das neurociências, para dar sustentação às mais mirabolantes abstrações, que não me deixa cair em contradição. Ora, não é possível ficar preso à repetição do mesmo a cada sonho narrado; perderíamos, certamente, a riqueza do material narrado. E quanto ao crime, correríamos o risco de não entender a sua complexidade numa sociedade com uma estratificação social e econômica reconhecidamente excludente. Tanto que alguns estudiosos argumentam que os presidiários constituem os verdadeiros presos políticos de um sistema que instituí e perpetua a desigualdade, impedindo a realização das necessidades humanas. Mas aqui entramos numa outra seara.
A provocação de Lelio Lauria me fez lembrar um episódio ocorrido há dez anos quando dirigia o referido hospital, de onde saí em circunstâncias que merecem uma cuidadosa análise, se não fosse um outro fato a merecer o presente registro: a criação da Biblioteca Sobral Pinto.
Em parceria com a livraria Valer, tendo a frente o escritor e editor Tenório Telles – atual presidente da Câmara do Livro do Amazonas – , o HCTP lançou um projeto para captação de livros doados, com os mesmos objetivos traçados pelo atual Secretario de Justiça e Cidadania, embora o projeto atual esteja alicerçado em sólidas parcerias.
Para evitar ruídos de comunicação, esclareço que a parceria com Tenório Telles só não foi mais consistente porque dependíamos de uma autoridade pública com notória tendência ao mais exacerbado narcisismo, e com quem contávamos para a seqüência de projetos concebidos pelos parceiros. O projeto esgotou-se na constituição da biblioteca, da exposição das obras de um artista plástico, da apresentação de uma peça de teatro – adaptada do livro do Eclesiastes pelo ator e diretor Lyndon Johnson –, e de um show de mímica em homenagem ao mestre Marcel Marceau pelo impagável Sérgio Bicudo. Caramba! Não foi pouca m... como diria Zefofinho de Ogum, consultor deste blog. Curiosamente, a indigitada autoridade revelou sua aversão ao livro e saiu no primeiro momento. Com a parceria reduzida à Livraria Valer, atingimos nossos objetivos, sem no entanto lograr o mesmo êxito do atual evento, ungido que foi por um convênio assinado entre os interessados.
Livros surripiados
Desta vez, as instituições governamentais celebraram um convênio entre si, dez anos depois de uma iniciativa parecida, que fracassaria não fosse a sensibilidade de um agente do setor privado. No outro extremo, o exemplo do Flifloresta é um sinal dos tempos. Quem sabe depois que o setor privado rompeu com a ausência de políticas públicas para eventos literários, a cidade de Manaus venha conhecer novos Flifloresta (Festival Literário da Floresta), atendendo as aspirações coletivas das novas gerações, impedidas que estavam de entrar em contato com os escritores contemporâneos. Uma vergonha, que esperamos tenha ficado no passado.
Ao final da celebração do convênio fui cumprimentar o querido Lelio Lauria, que conversava animadamente numa roda de servidores públicos de quem fui contemporâneo na direção do HCTP. Lembrei a todos do episódio que me fez escrever essas mal-traçadas linhas: mais de três mil livros doados ficaram sob a guarda do gabinete do diretor da Penitenciária Desembargador Raimundo Vidal Pessoa, onde está situado até hoje o HCTP em condições precárias; vários deles foram levados por servidores inescrupulosos, até hoje desconhecidos, sem a devida licença. Nesse singelo episódio, um sinal emblemático: inúmeras são as formas com que se costuma subtrair direitos aos presos.
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