fevereiro 11, 2011

"MinC alia-se a Cae contra Lula e cultura livre", por Bruno Cava

PICICA: "Caetano, a ministra da cultura Ana de Hollanda, a aristocracia carioca enraizada no novo MinC, outros medalhões (quase todos com mais de 50 anos), --- todos esses famosos de manto farisaico talvez não estejam afinal tão errados em defender o "meu" direito. Ainda vigora um mundo individualista onde cada um olha para o próprio umbigo antes de qualquer coisa. Desse modo, eles se mantêm no topo da velha pirâmide social da cultura, e extraem mais-valia da plebe inculta, que os consome e os ausculta."

MinC alia-se a Cae contra Lula e cultura livre.


No domingo, Caetano Veloso usou a sua coluna semanal, num jornal carioca, para pregar a propriedade imaterial. Aproveitou para, como tem feito nos últimos anos, falar mal de Lula ("muito show business"). E elogiou Dilma ("estou adorando"). Aproveitando certo clima reacionário, o músico soltou o verbo: "ninguém toca em nem um centavo dos meus direitos", "devemos respeitar os direitos autorais sem concessões" e "A internet que se vire."

O que Caetano pensa disso realmente não importa. Há mais de uma década se trata, junto de Ferreira Gullar e Arnaldo Jabor, de um caso perdido para as lutas. Se um dia era proibido proibir, endireitaram. Encastelaram-se em verdades empoeiradas, em sua vaidade de famoso, cegos e surdos para o movimento vivo de novas gerações. Por isso, não estranhei essa posição à boca cheia de Cae. Tomou a propriedade por absoluta e fez da celebridade artística uma espécie de latifundiário empedernido, ante bárbaros despossuídos que batem à porta atrás do justo quinhão.

Porém, me importo quando o artigo curiosamente reapareceu no site oficial do MinC. Não foi em qualquer ministério. No da cultura. Justo a instituição presidida por Gilberto Gil, entre 2003 e 2008, durante o governo Lula, que tanto disseminou a cultura. Por capricho histórico (ou há aí lógica oculta?), os dois expoentes da tropicália se posicionaram em campos opostos do espectro político.

Com o MinC de Gil, e também de Juca Ferreira (2009-10), a diversidade, a transversalidade entre produtores/transmissores e consumidores/receptores, a valorização dos insumos intangíveis (idéias, informações, símbolos, linguagens), o incentivo ao acesso e à produção dos pobres --- tudo isso pôs a cultura no cerne de um projeto global de democracia. O MinC teve uma atuação sem precedentes, e se assentou como pedra angular da produtividade e da popularidade do governo Lula. Afinal, qualidade é democracia.

Curioso como o artigo de Caetano, cujo conteúdo prega uma cultura proprietária e intocável, foi literalmente pirateado pelo MinC. O mesmo da ministra que não cansa de manifestar-se a favor dos direitos autorais. Mais acintoso: o artigo foi malandramente remixado algumas horas depois da publicação. Ao perceber a burrada de republicar ataques a Lula, num site do governo, Hollanda mandou extrair o trecho do "muito show business". A emenda pior que o soneto: a trapalhada não passou despercebida por muita gente e circula nas redes sociais.


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A propriedade imaterial não é absoluta. Aliás, nenhuma propriedade é absoluta. Se a constituição da república salvaguarda direitos ao proprietário, ressalta que "a propriedade atenderá a sua função social" (Art. 5º, XXIII). A bem da verdade, todo exercício de direito se vincula ao bem comum, à democracia, ao social. Aprende-se no primeiro período da faculdade: inexiste direito absoluto. Não poderia ser diferente com o direito à propriedade, conquanto o constituinte tenha julgado mais prudente, --- à luz de nossa história desigual e violenta, --- espaventar qualquer "dúvida".

Assim, quanto mais relevante, do ponto de vista social, o objeto da propriedade, maior será a relativização do poder do titular. Isto significa, por um lado, que objetos de uso pessoal tendem, embora jamais atinjam, à propriedade absoluta. Por outro lado, conteúdos que interessem aos públicos, --- que sirvam para produzir, educar, informar, difundir, --- esses implicam a função social e, portanto, sujeitam-se a regimes diversos de usufruto e disposição. O conteúdo da propriedade constitui-se de um amálgama de interesses privados e públicos, cujas proporções variam em função do sentido social que seu âmbito requeira.

Poucas coisas são mais cruciais para o cidadão do que a cultura. Hoje mais do que ontem. No pós-industrial, na medida em que a instância simbólica, intangível, afetiva da produção assoma em valor, a cultura cada vez mais converge com a própria economia. O produtor cultural torna-se o agente transformador por excelência, já que a arte da política consiste em organizar a produção de bens e valores.

Cultura significa não mais uma "classe artística", a verter a criação das Musas nas bocas do povão consumidor. Mas sim um círculo virtuoso de cidadania e renda, em que todos participam e se constróem, vivendo-a no dia a dia.

Daí que não tem essa de "meu" direito à produção cultural. Meu, meu, meu. Esse "meu" direito cai como fruto podre, diante da disseminação da cultura em todas as classes sociais. Diante do imperativo de propiciar uma sociedade culta, produtiva e politicamente ativa, em que o cidadão não só consome, mas também gera a cultura. Como nunca antes na história deste país. Este o sentido democrático, emancipador e de esquerda, com que o ministério da cultura qualificava a sua atuação durante os oito anos de governo Lula. Um governo que reconhecia a força da cultura viva na vastidão de regiões e minorias do Brasil, potencializando-a com políticas inovadoras. Que reconhecia a qualidade maior da vida social: sua autovalorização.

Estabelece a constituição de 1988: "É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;". Já na gestão de Gilberto Gil, foi publicada a emenda constitucional n.º 48, de 2005, exatamente para romper com a lógica do "meu". Diz o art. 215: "O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais."

E mais: "§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: (...) II - produção, promoção e difusão de bens culturais; (...) IV - democratização do acesso aos bens de cultura;"

Basta uma interpretação conforme esses dispositivos para constatar-se como a Lei de Direitos Autorais (LDA) se tornou inconstitucional em diversos pontos. Chega à bravata de segregar do domínio público uma obra por até 70 anos depois da morte do autor. Quer dizer, até marchinhas, como "Mamãe eu quero" ou "Cabeleira do Zezé", não podem ser tocadas no carnaval sem pagar aos "donos". De fato, em 2011 como nos outros anos, a polícia autoral, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) vai cobrá-las dos blocos de rua no Rio de Janeiro.

A constituição mudou porque o mundo mudou. O estado sempre vem depois, a reboque, para adaptar-se à vida concreta. A virtude do MinC de Lula/Gil/Juca foi estar bem próximo dessa franja transformadora. Que não é só moderna ou "modernosa", mas democrática e popular. Não são outros senão os pobres os principais beneficiados com software livre, banda larga, barateamento da informática; mas também com Creative Commons, bibliotecas digitais, xérox de material didático, produtos piratas, download generalizado de filmes, músicas e conteúdos.

E não tem essa, --- como se apressam em tentar dividir para conquistar, --- de cultura digital de um lado e a cultura "dura" de outro. É a mesma luta. Como não há divisória entre conhecimento e cultura: sistema interconectado de saberes, que cada vez mais circulam livremente e empoderam os cidadãos. Uma rede de redes.

Tudo isso está sendo prejudicado, porque os rumos no MinC doravante são outros. Não à toa, Cae e outros do "panteão nacional" estejam "adorando". Menos do que sentir nostalgia, o caso agora está em mobilizar as redes e perseverar com o movimento da cultura viva, apesar do ministério reacionário, --- dissonante inclusive com a política de governo como um todo.

Caetano, a ministra da cultura Ana de Hollanda, a aristocracia carioca enraizada no novo MinC, outros medalhões (quase todos com mais de 50 anos), --- todos esses famosos de manto farisaico talvez não estejam afinal tão errados em defender o "meu" direito. Ainda vigora um mundo individualista onde cada um olha para o próprio umbigo antes de qualquer coisa. Desse modo, eles se mantêm no topo da velha pirâmide social da cultura, e extraem mais-valia da plebe inculta, que os consome e os ausculta.

Pois então vamos também fazer a nossa parte. Vamos defender o "NOSSO" direito, constitucionalmente assegurado, constituído democraticamente nos anos Lula.

Eles podem ser celebridades e deter autoridade, mas nós somos em maior número.

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Outros textos relacionados do QdL:

04.02.2011 MinC: a parte que nos cabe desse latifúndio

30.01.2011 A conservadora ministra da cultura

09.01.2011 A nova militância cultural: enxamear é preciso

04.01.2011 Precedente do TJ-RJ favorece a cópia livre

E também artigo que escrevi ao Le Monde Diplomatique Brasil, em 2007:

29.12.2007 A revolução do cine Falcatrua

Fonte: Quadrado dos Loucos

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