PICICA: "Quando falamos de “novo capitalismo”, de
capitalismo cognitivo, de trabalho imaterial, de cooperação social, de
circulação do saber, de inteligência coletiva, tentamos descrever, ao
mesmo tempo, a existência de um novo saqueio capitalista da vida, seu
investimento não só na fábrica, mas em toda a sociedade, mas também a
generalização do espaço da luta, a transformação do lugar de resistência
e da figura da metrópole como lugar de produção, convertida hoje no
espaço de resistências possíveis."
Inventar o comum
"Quando falamos de “novo capitalismo”, de capitalismo cognitivo, de trabalho imaterial, de cooperação social, de circulação do saber, de inteligência coletiva, tentamos descrever, ao mesmo tempo, a existência de um novo saqueio capitalista da vida, seu investimento não só na fábrica, mas em toda a sociedade, mas também a generalização do espaço da luta, a transformação do lugar de resistência e da figura da metrópole como lugar de produção, convertida hoje no espaço de resistências possíveis". O comentário é de Judith Revel e Antonio Negri em artigo publicado pelo sítio Uninomade e reproduzido pelo blog Lobo Suelto. A tradução é de Haroldo Gomes e publicado em seu blog, 03-04-2012.Eis o artigo.
Partimos de uma constatação muito simples já que, às vezes, é mais fácil raciocinar começando pelo final: vivemos num mundo onde a produção se converteu num ato comum. Alguns de nós, todavia têm em mente as análises de Foucault sobre a dupla pinça que a industrialização impôs aos corpos e às mentes dos homens desde finais do século XVIII.
De um lado, a individualização, a separação, a desobjetivação, o adestramento de cada indivíduo, reduzido à unidade produtiva em forma de mônada, sem portas nem janelas, totalmente desarticulado e rearticulado em função das exigências de rendimento e maximização dos lucros; por outra, a construção em série dessas mônadas produtivas, sua massificação, sua constituição em pessoas indiferenciadas, seu caráter intercambiável, já que o cinza sempre equivale ao cinza e um corpo adestrado vale por outro. Individualização, serialização – eis aqui a bendita pinça do capitalismo industrial, a maravilha de uma racionalidade política que não duvida em redobrar seu procedimento de controle e gestão, em morder a carne desse indivíduo que está formando a sua imagem e semelhança, em enquadrar àquelas pessoas que inventa, para assegurar definitivamente seu poder sobre a vida e explorar sua potencia. Ouvindo isso, alguns releem Vigiar e Punir.
Outros simplesmente têm em mente o ritmo da cadeia produtiva, os braços exaustos, a impressão de não existir mais, o corpo que se transforma em carne de cânon para produção em série, a repetição sem fim, o isolamento, a fadiga. A impressão de haver sido tragado por uma baleia e haver sido mastigado como tantos outros.
Tudo isso é certo. Tudo isso existe, todavia. Porém, vai existindo em menor medida. Desde seu início, Multitudes tem tratado de dar conta dessa mutação, de descrever esta realidade – esta “tendência” que atravessava a existência e escavava dentro da íntima consistência – de analisar as consequências. Essa mutação tocou, ao mesmo tempo, as condições da exploração, as relações de poder, o paradigma do trabalho, a produção de valor. Essa transformação também investiu sobre as possibilidades de resistência porque essa transformação, paradoxalmente, também reabriu e multiplicou suas possibilidades.
Um dos pontos mais difíceis e polêmicos para os que, hoje, se mantém no velho modelo da produção em série, na figura da fábrica e da história da resistência da classe operária, é pensar o que um novo modo de exploração – mais forte, mais eficaz, mais extenso – pode acrescentar à possibilidade de agitação e de sabotagem, de rebelião e de liberdade. Para nós, dizer que o modelo de produção (e, portanto, de exploração) mudou, dizer que é necessário deixar de pensar na fábrica como a única matriz de produção e de agitação operária, é também pensar numa maior resistência. Quando falamos de “novo capitalismo”, de capitalismo cognitivo, de trabalho imaterial, de cooperação social, de circulação do saber, de inteligência coletiva, tentamos descrever, ao mesmo tempo, a existência de um novo saqueio capitalista da vida, seu investimento não só na fábrica, mas em toda a sociedade, mas também a generalização do espaço da luta, a transformação do lugar de resistência e da figura da metrópole como lugar de produção, convertida hoje no espaço de resistências possíveis.
Nós dizemos que hoje o capitalismo não pode se permitir desobjetivar – individualizar, serializar – as pessoas, não pode triturar a carne para fazer dela um golem de duas cabeças (o “indivíduo” como unidade produtiva, as “pessoas” como objeto de gestão massificada). O capitalismo não pode se permitir isso porque o que produz valor atualmente é a produção comum da subjetividade. Quando nós dizemos que a produção é comum não negamos que existem fábricas, corpos destroçados e trabalho em cadeia. Afirmamos que o princípio mesmo da produção, seu centro de gravidade, se deslocou; que a criação de valor, hoje, consiste em por em rede a subjetividade e capturar, desviar, se apropriar da atividade comum. O capitalismo necessita da subjetividade, é parasitário. Portanto, está encadeado àquilo que, paradoxalmente, o põe em perigo: porque a resistência, a afirmação de liberdade, é precisamente fazer valer a potencia de invenção subjetiva, sua multiplicidade singular, sua capacidade de produzir o comum a partir das diferenças. Os corpos e os cérebros têm passado de carne de cânon a armas contra o capitalismo. Sem o comum, o capitalismo já não pode existir. Com o comum a possibilidade de conflito, de resistência e de reapropriação se incrementam infinitamente. Formidável paradoxo de uma época que por fim conseguiu se livrar dos ornamentos da modernidade.
Do ponto de vista do que pode se chamar a “composição técnica” do trabalho, a produção tem se tornado comum. Do ponto de vista de sua “composição política”, se necessitaria então que a essa produção comum se correspondessem novas categorias jurídico-políticas, capazes de organizar esse “comum”, para expressar sua centralidade, para descrever suas novas instituições e seu funcionamento interno. Atualmente essas novas categorias são insuficientes. De fato, disfarçamos as novas exigências do comum, continuamos pensando-as em termo obsoletos – como se o lugar de produção fosse, todavia a fábrica, como se os corpos estivessem encadeados, como se não houvesse escolha entre estar sós (indivíduo, cidadão, mônada produtiva, número de cela numa prisão ou trabalhador em cadeia, pinóquio solitário no ventre da baleia) e ser indistintamente massificado (população, povo, nação, força de trabalho, raça, carne de cânon pela pátria, tigela digestiva no ventre da baleia) – , de fato, portanto, continuamos atuando como se nada houvesse ocorrido, como se nada houvesse mudado: essa é a mais perversa capacidade de mistificação do poder. Devemos abrir o ventre da baleia, devemos derrotar Moby Dick.
Essa mistificação repousa em particular sobre a proposição quase permanente de dois termos, que funcionam como outros tantos enganos, mas, ao mesmo tempo, correspondem a duas maneiras de se apropriar do comum. A primeira é o recurso à categoria do “privado”; a segunda, o recurso à categoria de “público”. No primeiro caso, a propriedade – Rousseau diz: e o primeiro homem que disse “isso é meu”… – é uma apropriação do comum por parte de um só, ou seja, a expropriação de todos os demais. Hoje, a propriedade privada consiste propriamente em negar aos homens seu direito comum sobre o que só sua cooperação é capaz de produzir. A segunda categoria, ao contrário, é a de público. O bom Rousseau, que era tão duro com a propriedade privada, que, com razão, a considerava a fonte de todas as corrupções e sofrimentos humanos, cai imediatamente na armadilha.
O problema do contrato social – o problema da democracia moderna é porque a propriedade privada gera desigualdade, como se poderá inventar um sistema político onde tudo, pertencendo a todos, não pertença a nenhum. A armadilha se fecha sobre Rousseau – e sobre todos nós ao mesmo tempo. Isso é, portanto, o público: o que pertence a todos, porém a nenhum, ou seja, o que pertence ao Estado. E, uma vez que o Estado deveria ser nós, então se necessita inventar algo para render a manumissão do comum, fazendo-nos crer, por exemplo, que nos representa e se o Estado se apropria dos direitos sobre o que nós produzimos é porque o “nós” que somos não é o que produzimos em comum, que criamos e organizamos como comum, mas aquilo que nos permite existir.
O comum nos diz o Estado, não nos pertence, porque na realidade não o criamos. O comum é nosso solo, nosso fundamento, o que nós temos sob os pés: nossa natureza, nossa identidade. E se isso não nos pertence – ser não é ter – a manumissão do Estado sobre o comum não se chama apropriação, mas gestão (econômica), delegação e representação (política). CVD: implacável beleza do pragmatismo público.
A natureza e a identidade são as mistificações do paradigma moderno do poder. Para nos reapropriar de nosso comum, é necessário antes de tudo, produzir uma crítica radical. Nós não somos nada e não queremos ser nada. “Nós” não é uma posição ou uma essência, uma “coisa” que é fácil declarar pública. Nosso comum não é nosso fundamento, é nossa produção, nossa invenção continuamente renovada. “Nós” é o nome de um horizonte, o nome de um devir. O comum está diante de nós, sempre, é um progresso. Nós somos este comum: fazer, produzir, participar, mover-se, dividir, circular, enriquecer, inventar, relançar.
Todavia nós seguimos pensando, depois de quase três séculos, a democracia como a administração da coisa pública, ou seja, como o instituto da apropriação estatal do comum. Hoje, a democracia já não pode ser pensada senão em termos radicalmente diferentes: como gestão comum do comum. Essa gestão implica, por sua vez, uma redefinição do espaço – cosmopolita; e uma redefinição da temporalidade – constituinte. Não se trata de definir uma forma de contrato que faça que tudo, sendo de todos, não pertença a nenhum. Não, tudo, sendo produzido por todos, pertence a todos.
No dossiê que alguns temos proposto na “maggiore” desse número de Multitudes (a partir das experiências levadas a cabo há anos e a partir também da constatação de que essas experiências estão agora se generalizando), nós tentamos tornar visível esse comum, fazer recontagem das estratégias de reapropriação do comum. Na atualidade, a metrópole se converteu em tecido produtivo generalizado: é onde se dá e se organiza a produção comum, é onde a acumulação do comum se realiza. A apropriação violenta dessa acumulação se faz, todavia, a título privado ou público – e o que se chama “a renda” do espaço metropolitano é agora um enjeu econômico importante e é sobre esse ponto que as estratégias de controle se cristalizam – mas nós não queremos entrar aqui nas análises da relação dessa renda com o lucro nem tampouco na da “externalidade produtiva”… é-nos suficiente, por enquanto, fixar o fato de que a apropriação privada é, com frequência, garantida e legitimada pela apropriação pública, e vice-versa.
Retomar o comum, reconquistar não já uma coisa, mas um processo constituinte significa também o espaço em que isso se desenvolve: o espaço da metrópole. Traçar diagonais dentro do espaço retilíneo do controle: opor as diagonais aos diagramas, os interstícios às quadrillages, os movimentos às posições, os devires às identidades, as multiplicidades culturais sem fim às naturezas simples, os artifícios às demandas de origem. Num belo livro, faz alguns anos, Jean Starobinski falou do século das Luzes como de um tempo que havia visto “a invenção da liberdade”. Se a democracia moderna foi a invenção da liberdade, a democracia radical, hoje, quer ser a invenção do comum.
Fonte: IHU
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