Melancolia libertadora
Às vezes é preciso se deixar levar quando não se sabe para onde ir, como faz a protagonista de Von Trier.
por Juliana Dacoregio (03/02/2012)
PICICA: "Impossível não ficar hipnotizada e refletindo sobre toda
aquela história, repassando as cenas mentalmente e buscando compreender
as metáforas. Não me atrevo a chegar a simples conclusões. Desfechos
explicativos não se aplicam a Melancolia, assim como não é possível definir ao certo o que é esse sentimento que dá nome ao filme."
Ao terminar de assistir o último filme de Lars Von Trier eu estava embevecida. Ainda estou, na verdade. Impossível não ficar hipnotizada e refletindo sobre toda aquela história, repassando as cenas mentalmente e buscando compreender as metáforas. Não me atrevo a chegar a simples conclusões. Desfechos explicativos não se aplicam a Melancolia, assim como não é possível definir ao certo o que é esse sentimento que dá nome ao filme.
Quem não está acostumado com filmes de arte, mais lentos e introspectivos (ou seja, a maioria de nós, e me incluo nessa), pode ficar a fim de desistir de Melancolia logo nos minutos iniciais. São cenas dos personagens em situações como que de sonhos, em que a realidade não manda. Cenas em câmera lenta, mas tão lentas que quase parecem retratos que se movem diante de uma ilusão de ótica. Imagens lindas que não vão fazer sentido para quem ainda não sabe do que se trata o filme e nem ao menos leu a sinopse (meu caso). Mas ao longo do filme, tão vagarosamente quanto as cenas em slow motion, vamos compreendendo do que se tratam. E dessa forma, como num filme de suspense ao contrário, elas vão revelando o que virá a seguir.
O estado psicológico de Justine, personagem vivida por Kirsten Dunst, é intrigante: uma falta de chão levada ao extremo. No início do filme ela parece feliz, como se supõe que qualquer mulher recém-casada deva estar. Mas sua falta de ansiedade diante do atraso em chegar à festa de casamento e suas primeiras atitudes já no local da recepção denunciam certa indiferença. Recepção esta organizada minunciosamente por sua irmã Claire – interpretada por Charlote Gainsbourg, é bom frisar. No início, uma indiferença divertida, mas pouco a pouco vamos percebendo que seus sorrisos se tornam mais e mais mecânicos, ao ponto de em certa parte da história, ao ser confrontada sobre o fato de não estar feliz, ela afirma, “eu sorrio e sorrio e sorrio”, mostrando que está tentando arduamente cumprir seu papel. As reações de Justine vão saindo de controle, até que a confusão interna toma conta e se torna visível. Ela está claramente deprimida e infeliz. Finge até onde pode, mas em certo momento já não sabemos se ela quer parar de fingir ou se, simplesmente, não consegue mais. Provavelmente uma mistura das duas coisas. Quem já sofreu de depressão compreende a apatia e os comportamentos desconexos da personagem. Quem já experimentou uma melancolia avassaladora sabe o quanto é difícil manter-se constante e até mesmo decidida a respeito do que realmente se quer.
De todo modo, mesmo que constrangedoramente, o comportamento de Justine durante seu próprio casamento representa uma libertação. Fez-me lembrar de meu próprio casamento, quando, muito jovem, rumei em direção ao altar com uma leve sensação de perda. Durante a ida de carro até à igreja (tudo como manda a tradição, junto com meu pai e um motorista), o que eu queria era dar meia volta. Fui segurando a mão de meu pai como quem caminha rumo ao apocalipse, porém com uma falsa calma, tentando me convencer de que tudo aquilo era apenas um nervosismo natural. Não agi como Justine, mas poderia tê-lo feito. No fundo eu representava um papel. Claro que não sabia disso, não conscientemente. Meus temores foram eclipsados pelas normas da situação. Fiz o que era esperado de mim. Mas Justine, não. Tudo nela é inesperado, como um cavalo que de domesticado passa à selvagem, como os pássaros quando prenunciam uma tempestade. Não é à toa que em certos momentos do filme a garota não consegue mais domar seu próprio cavalo e se frustra por não conseguir fazer com que ele atravesse uma pequena ponte. O animal se recusa mesmo às chicotadas. Recusa-se a ponto de tombar sobre as quatro patas. Uma clara metáfora: Justine igualmente não consegue atravessar suas próprias pontes, nem seguir em frente. E é esse modo selvagem de Justine durante seu casamento, agindo por impulsos indecisos, que se apresentou como libertador a meu ver. Ela não seguiu o protocolo. Sim, ela decepcionou a todos e nem mesmo deu mostras de estar feliz com sua “rebeldia”, mas fez o que quis. Ou deixou de fazer o que não queria.
E assim também se comportou o planeta Melancolia. Quando a dor começa a fazer com que você deslize em direção ao fundo, é impossível pará-la. Exatamente o que aconteceu ao planeta. Então, diante da tragédia iminente, o comportamento de Justine vai se alterando. No início da segunda parte, nada mais faz sentido para ela. O banho que ela tanto gostava se torna um sacrifício grande demais, a comida perde o gosto e o ciclo que começou no casamento se completa.
Porém, quanto mais próxima se torna a possibilidade de um apocalipse, mais ela vai se reerguendo. Ainda apática, porém resignada, séria e sábia. Pessimista, talvez. O que apavora sua irmã Claire, que teme a passagem deste estranho planeta pela órbita da Terra. Apesar de o marido de Claire tentar tranquilizá-la, afirmando que não há perigo de uma colisão, Claire passa os dias com aquele pavor entalado na garganta. Logo ela, o único membro bem ajustado da família (já que a mãe é amarga e o pai, inconstante), começa a dar sinais de que não tem tudo tão sob controle, como aparentara no início da projeção. Talvez sua organização externa apenas esconde o caos que havia em seu interior. Claire aparenta ser alguém que esconde suas angústias tentando manter sua vida – e as daqueles que a cercam – numa órbita previsível e constante. A imprevisibilidade do planeta que se aproxima tira-a do eixo, enquanto desmancha a agitação depressiva de Justine.
Nesse ponto elas se assemelham, apesar de em momentos diferentes. O que estava em Justine – a dúvida, o medo, a hesitação – se mostra presentes em Claire. A prova viva de que sob toda fachada de equilíbrio sempre há mais do que se possa imaginar.
Melancolia é um filme denso. Recomendaram-me dizendo que era angustiante. E é. Mas não foi a angústia o sentimento que se apoderou de mim ao assisti-lo. Na verdade, me enxerguei em cada personagem, todos repletos de complexidade, como todo ser humano. Esse é mais do que um filme para ser assistido. É para ser experimentado, vivenciado. Dentre todas as evocações que provocou, as principais foram libertação e calmaria. Às vezes é preciso se deixar levar quando não se sabe para onde ir. Como fez Justine em seu casamento. Não se deixar levar pelas expectativas dos outros, mas pelos impulsos, por mais descabidos que eles possam parecer. Afinal, tudo acaba em Melancolia. E mesmo que não se acabe, a vida não é para sempre, só que esquecemos isso o tempo todo e vamos seguindo as convenções. O problema é que Melancolia chega e pode fazer tudo explodir. Por dentro ou por fora. E aí? De que adiantou seguir o roteiro?
Juliana Dacoregio
Fonte: Amálgama
Nenhum comentário:
Postar um comentário