PICICA: Em 1976 panfletei no curso de medicina um texto, de autoria do amigo e colega de turma Humberto Mendonça (Beto), que havia lido no encerramento do IV Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado na bela cidade de Fortaleza, da minha querida colega Nazaré Gonçalves. O texto refletia a inquietação dos estudantes amazonenses com a política de saúde mental, sobretudo a formação dos concludentes do curso de medicina, às vésperas do futuro compromisso social descortinado pela formatura que se avizinhava. Diante da baixa repercussão entre os colegas, metemos o 'rabo entre as pernas' e ficamos à espera de outra oportunidade. Tempos duros aqueles da ditadura militar, que não permitia organização entre estudantes, sindicalistas, professores e o 'raio que o parta'. Antes de voltar à cena política, tivemos que enfrentar a destituição da função de encarregados pela organização das solenidades de formatura, sob a acusação de excessiva conduta 'subversiva' (palavrão da moda, usada para estigmatizar o pensamento crítico). Cearazão, Carlão, Beto e eu fomos punidos por homenagear o indigente, sobre o corpo de quem aprendemos a medicina. A homenagem foi mantida. E de quebra ainda emplacamos um evento artístico que contou com a presença de Thiago de Mello e Sérgio Ricardo, inesquecível por sua rebeldia num festival da Record, quando ali quebrou seu violão diante de uma plateia hostil. No nosso caso, foi a banda conservadora da turma quem quebrou nosso violão. Mais tarde ele seria recuperado pelas mesmas mãos de quem o quebrou. Vejam como. Toda a estrutura do curso estava baseada num currículo que privilegiava as especialidades. O último ano do curso, iniciado com a reforma universitária de inspiração militar, era dedicado aos estágios. Alguém 'bem-intencionado' invocou a medicina generalista como norteadora dos estágios. Nada mais correto, não fosse o fato de que a premissa era falsa, na medida em que todo o curso baseava-se na exaltação das especialidades. Até hoje é assim. Daí porque sinto falta na análise do nosso ex-ministro da saúde José Gomes Temporão como é possível conciliar na formação médica a medicina generalista com a medicina de especialidades. Nesse sentido, Cuba é exemplar por conciliar as duas vertentes. Enganam-se os que tendo por fonte informações unilaterais pensam que nos países socialistas só há lugar para a medicina generalista, e que nos nos países capitalistas só há espaço para a medicina de especialidades. Nos países socialistas há um equilíbrio entre elas; diferentemente dos países capitalistas, onde a oferta é desigual. O PSF (Programa Saúde da Família) entre elas; não por acaso inspirada no modelo cubano. Analisar tais ofertas sem levar em consideração o modo de produção das nossas sociedades é abrir uma enorme lacuna para a compreensão das manifestações contrárias às ameaças do modelo cubano de fazer saúde. Um bom exemplo dessa contradição é o currículo da Universidade do Estado do Amazonas, recentemente aprovado - coisa de menos de cinco anos - na Universidade do Estado do Amazonas, que recusou a preceptoria e a tutoria de médicos estrangeiros. 'Macacos me mordam' se aí não impera um modelo antagônico, que perde por não compartilhar a realidade de onde vem parte dos alunos que ingressam na Escola Superior de Ciências da Saúde da UEA, mediante o sistema de cotas, em sua maioria vindos do interior do Estado do Amazonas. Brevemente estarei postando aqui o texto "A/cerca da medicina generalista", que escrevi com o saudoso Beto, fruto do pedido de socorro dos colegas que sentiam na pele o peso de uma injusta decisão, para a qual deveria ser exigido uma profunda revisão curricular. Um texto escrito com ódio, um sentimento tão próximo do amor, como a alegria é da dor. A alegria de analisar criticamente a política de formação médica numa universidade brasileira, frente a dor de sabê-la apropriada pelos novos tempos da economia neo-liberal. Temporão deixou escapar um momento para o exercício da pedagogia que nos liberta do lugar-comum.
Sociedade
Saúde
“A medicina perdeu a aura de profissão exclusivamente dedicada a minorar o sofrimento”
Para o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão,
formação médica excessivamente voltada à especialização leva ao
desinteresse dos jovens brasileiros pelo Mais Médicos
por Miguel Martins
Agência Brasil
Ex-ministro da Saúde do governo Lula e atual
diretor-executivo do Isags, braço de saúde da União de Nações
Sul-Americanas (Unasul), José Gomes Temporão afirma que o desinteresse
dos profissionais brasileiros em participar do programa Mais Médicos
deve-se a uma formação médica excessivamente centrada na especialização,
afastando os jovens de uma ação voltada ao atendimento familiar e
preventivo. Sanitarista de formação, Temporão não antevê problemas de
adaptação aos 400 médicos cubanos que desembarcaram no Brasil no último
fim de semana. Quanto às possíveis barreiras na legislação trabalhista
brasileira à vinda dos profissionais, o ex-ministro argumenta que não há
“vínculo laboral”, mas apenas um acordo de cooperação trilateral entre o
Brasil, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e Cuba. Confira,
abaixo, a íntegra da entrevista a CartaCapital.
CartaCapital: Por que houve tão pouco interesse dos médicos brasileiros na convocação do Mais Médicos? O senhor considera que haja um desinteresse por medicina familiar e preventiva entre os profissionais formados no Brasil?
José Gomes Temporão: São múltiplos os aspectos envolvidos. Em primeiro lugar o clima criado, no momento em que as entidades médicas desencadearam uma guerra santa contra o projeto do governo. Mas esse não me parece o fator central. Há muito a medicina perdeu aquela aura de profissão nobre e única e exclusivamente dedicada a minorar o sofrimento humano. Transformou-se em um florescente negócio que envolve gigantescos recursos financeiros em todo o mundo. Embora importante, o médico é uma peça nessa engrenagem. Existe toda uma cultura do cuidado voltada para a sofisticação tecnológica, nem sempre adequada ou necessária, o que acaba colocando barreiras ao que se considera como exercício profissional seguro ou em condições adequadas. Ao lado do fato de que médicos, arquitetos, advogados etc. optam por trabalhar e viver onde possam ter segurança, conforto e perspectivas de longo prazo na carreira. Por fim a formação médica fortemente centrada na especialização precoce e na fragmentação da atenção entre subespecialidades afasta os jovens médicos de uma ação mais holística e centrada na atenção primária e na prevenção. De todo modo, deve ficar claro que o Mais Médicos é uma proposta parcial, focal e que, por si só, não tem potencial para mudanças substantivas no sistema de saúde.
CC: Como o senhor avalia a educação e a prática médicas em Cuba? Acha que os médicos cubanos conseguirão se adaptar e fazer um bom trabalho?
JGT: Cuba tem uma saúde pública de bom padrão com indicadores de fazer inveja a muito países desenvolvidos. Eles possuem décadas de experiência em trabalhos deste tipo em países da África e América Latina. Não antevejo nenhum problema de adaptação à realidade dos municípios onde vão atuar.
CC: Muitas críticas tem sido feitas à forma de contratação dos cubanos. As bolsas no valor de 10 mil reais serão repassadas ao governo cubano e os médicos devem receber entre 2,5 mil a 4 mil reais. Em entrevista recente à CartaCapital, o senhor levantou o problema do tipo de vínculo que será estabelecido com os profissionais, se será apenas uma bolsa ou um plano de carreira na saúde pública, com perspectiva de longo prazo. Em relação a vinda dos cubanos, como o senhor vê essa questão trabalhista?
JGT: Na realidade, a vinda dos médicos cubanos não se caracteriza pelo estabelecimento de um vínculo laboral entre esses profissionais com o governo brasileiro. É um acordo de cooperação trilateral entre o Brasil, as Nações Unidas (OPAS) e Cuba, de caráter claramente provisório e com o claro objetivo de, em caráter emergencial, levar serviços médicos essenciais a quem hoje não dispõe deles. Claro que podem surgir outras implicações neste tipo de relação que inclusive estão sendo analisadas pelos órgãos de controle e da Justiça do Trabalho.
CC: No lugar do Revalida, os médicos estrangeiros serão avaliados por professores de instituições públicas e aqueles considerados aptos receberão um registro profissional provisório. Um dos argumentos a favor da mudança é o de que o Revalida tem índices de reprovação altíssimos entre os médicos estrangeiros. Como o senhor vê essa nova forma de avaliação?
JGT: É perceptível um evidente preconceito em relação aos médicos estrangeiros e sua capacidade técnico-científica. Claro que a proposta correta seria a de submeter todos esses profissionais ao Revalida. O argumento de que o Revalida reprova muito e por isso não pode ser utilizado me parece falacioso. Seu conteúdo deveria expressar o grau de conhecimento necessário para aquele profissional exercer determinada função no sistema de saúde. A opção do governo pela concessão de um registro provisório com vigência apenas durante o período de 3 anos e atuação exclusiva na atenção primária, tem a ver com o fato de que não se poderia restringir legalmente, do ponto de vista do exercício da profissão, a atuação no setor público ou privado e em qualquer local do território nacional, aos aprovados no Revalida. Se o revalida fosse exigido para todos os estrangeiros, os que fossem aprovados poderiam exercer a medicina em qualquer local e especialidade, tanto no setor público como no privado. Isso vai contra a estratégia do governo de restringir os locais de exercício apenas aqueles municípios definidos, apenas na atenção básica e apenas no setor público.
Fonte: Carta Capital
CartaCapital: Por que houve tão pouco interesse dos médicos brasileiros na convocação do Mais Médicos? O senhor considera que haja um desinteresse por medicina familiar e preventiva entre os profissionais formados no Brasil?
José Gomes Temporão: São múltiplos os aspectos envolvidos. Em primeiro lugar o clima criado, no momento em que as entidades médicas desencadearam uma guerra santa contra o projeto do governo. Mas esse não me parece o fator central. Há muito a medicina perdeu aquela aura de profissão nobre e única e exclusivamente dedicada a minorar o sofrimento humano. Transformou-se em um florescente negócio que envolve gigantescos recursos financeiros em todo o mundo. Embora importante, o médico é uma peça nessa engrenagem. Existe toda uma cultura do cuidado voltada para a sofisticação tecnológica, nem sempre adequada ou necessária, o que acaba colocando barreiras ao que se considera como exercício profissional seguro ou em condições adequadas. Ao lado do fato de que médicos, arquitetos, advogados etc. optam por trabalhar e viver onde possam ter segurança, conforto e perspectivas de longo prazo na carreira. Por fim a formação médica fortemente centrada na especialização precoce e na fragmentação da atenção entre subespecialidades afasta os jovens médicos de uma ação mais holística e centrada na atenção primária e na prevenção. De todo modo, deve ficar claro que o Mais Médicos é uma proposta parcial, focal e que, por si só, não tem potencial para mudanças substantivas no sistema de saúde.
CC: Como o senhor avalia a educação e a prática médicas em Cuba? Acha que os médicos cubanos conseguirão se adaptar e fazer um bom trabalho?
JGT: Cuba tem uma saúde pública de bom padrão com indicadores de fazer inveja a muito países desenvolvidos. Eles possuem décadas de experiência em trabalhos deste tipo em países da África e América Latina. Não antevejo nenhum problema de adaptação à realidade dos municípios onde vão atuar.
CC: Muitas críticas tem sido feitas à forma de contratação dos cubanos. As bolsas no valor de 10 mil reais serão repassadas ao governo cubano e os médicos devem receber entre 2,5 mil a 4 mil reais. Em entrevista recente à CartaCapital, o senhor levantou o problema do tipo de vínculo que será estabelecido com os profissionais, se será apenas uma bolsa ou um plano de carreira na saúde pública, com perspectiva de longo prazo. Em relação a vinda dos cubanos, como o senhor vê essa questão trabalhista?
JGT: Na realidade, a vinda dos médicos cubanos não se caracteriza pelo estabelecimento de um vínculo laboral entre esses profissionais com o governo brasileiro. É um acordo de cooperação trilateral entre o Brasil, as Nações Unidas (OPAS) e Cuba, de caráter claramente provisório e com o claro objetivo de, em caráter emergencial, levar serviços médicos essenciais a quem hoje não dispõe deles. Claro que podem surgir outras implicações neste tipo de relação que inclusive estão sendo analisadas pelos órgãos de controle e da Justiça do Trabalho.
CC: No lugar do Revalida, os médicos estrangeiros serão avaliados por professores de instituições públicas e aqueles considerados aptos receberão um registro profissional provisório. Um dos argumentos a favor da mudança é o de que o Revalida tem índices de reprovação altíssimos entre os médicos estrangeiros. Como o senhor vê essa nova forma de avaliação?
JGT: É perceptível um evidente preconceito em relação aos médicos estrangeiros e sua capacidade técnico-científica. Claro que a proposta correta seria a de submeter todos esses profissionais ao Revalida. O argumento de que o Revalida reprova muito e por isso não pode ser utilizado me parece falacioso. Seu conteúdo deveria expressar o grau de conhecimento necessário para aquele profissional exercer determinada função no sistema de saúde. A opção do governo pela concessão de um registro provisório com vigência apenas durante o período de 3 anos e atuação exclusiva na atenção primária, tem a ver com o fato de que não se poderia restringir legalmente, do ponto de vista do exercício da profissão, a atuação no setor público ou privado e em qualquer local do território nacional, aos aprovados no Revalida. Se o revalida fosse exigido para todos os estrangeiros, os que fossem aprovados poderiam exercer a medicina em qualquer local e especialidade, tanto no setor público como no privado. Isso vai contra a estratégia do governo de restringir os locais de exercício apenas aqueles municípios definidos, apenas na atenção básica e apenas no setor público.
Fonte: Carta Capital
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