PICICA: "Na
minha modesta opinião todo esse debate está "deslocado" e fora do eixo,
além de manipulado, tanto pelo movimento médico quanto pela mídia
(leia-se sobretudo a Globo). A edição e deslocamento das suas falas (e,
provavelmente, dos demais interlocutores) não me surpreendem em se
tratando de Globo News.
Além dos equívocos,
erros e lançamento desastrado do Programa pelo Ministro Padilha, a
desinformação sobre o assunto é a regra: por um lado a Globo, que não
informa ninguém; e, por outro o movimento médico corporativista, que
piora a situação desinformando cada vez mais uma já desinformada
sociedade... é lamentável."
Mais Médicos e o debate deslocado
O texto abaixo é a cópia integral
de um e-mail da professora Célia Almeida, Pesquisadora Titular
ENSP/Fiocruz, na área de Políticas de Saúde e Organização de Sistemas de
Serviços de Saúde. A professora autorizou a publicação do texto para
movimentar o debate sobre o programa Mais Médicos. Célia faz referêcia a
entrevista de José Carvalheiro que falou, dia 30 de agosto, sobre a
vinda dos médicos cubanos no Sem Fronteiras da Globo News.
Célia Almeida, Pesquisadora Titular ENSP/Fiocruz | Site Abrasco
Na
minha modesta opinião todo esse debate está "deslocado" e fora do eixo,
além de manipulado, tanto pelo movimento médico quanto pela mídia
(leia-se sobretudo a Globo). A edição e deslocamento das suas falas (e,
provavelmente, dos demais interlocutores) não me surpreendem em se
tratando de Globo News.
Além dos equívocos,
erros e lançamento desastrado do Programa pelo Ministro Padilha, a
desinformação sobre o assunto é a regra: por um lado a Globo, que não
informa ninguém; e, por outro o movimento médico corporativista, que
piora a situação desinformando cada vez mais uma já desinformada
sociedade... é lamentável.
Como disse
sabiamente Zuenir Ventura no Globo do dia 31 de agosto, passada a
bipolarização "não é mais tão fácil tomar partido". As variáveis que se
entrelaçam nos processos políticos, econômicos, sociais (só para citar
alguns), nacionais, internacionais e globais são muitas e, como sempre, o
âmbito nacional se imbrica com o internacional. A queda do muro
descortinou, entre outras coisas, essa complexidade, até então encoberta
ideologicamente.
No caso da política externa
não é diferente, pois é uma política pública como outra qualquer, embora
até bem pouco tempo fosse tratada como uma "caixa preta", assunto para
poucos e destacados representantes governamentais (aqui e alhures). No
Brasil essa mudança de percepção é recente e coincide com a
democratização do país. Mesmo assim, até hoje quase nada se debate sobre
a política externa brasileira na grande imprensa e, quando sai alguma
coisa, é sempre estimulando o que existe de pior no “senso comum”, de
forma distorcida e enviesada (veja-se, por exemplo, o recente tema do
perdão da dívida dos países africanos pelo governo brasileiro; ou as
críticas às posições brasileiras em relação à Venezuela, à Bolívia ou ao
Paraguai, em distintas situações bem delicadas).
Pois
bem, o envio de médicos cubanos para trabalhar no exterior é um
instrumento dos mais importantes na política externa cubana, desde o
inicio da revolução (cada um usa a força que tem ou que pode construir).
Como bom estadista que era (naquela época!), Fidel decidiu que, para
ser respeitada no mundo, Cuba tinha que "produzir conhecimentos e
tecnologia" e ser boa nisso. A área de saúde foi seu trunfo/laboratório e
nasce dessa decisão estratégica, nos anos 1970, o Pólo Científico e
Tecnológico de Cuba, cuja competência é reconhecida mundialmente até
hoje.
Só para se ter uma ideia, naquela época
(anos 1960), existia em torno de 8.000 médicos em Cuba e hoje são mais
de 80.000, sendo que apenas cerca de 30% está trabalhando no país, se
não me falha a memória. Cuba dispõe hoje de uma faculdade de medicina em
12 das suas 16 províncias e a formação médica é de excelência, sendo
que todos os profissionais passam, obrigatoriamente, um tempo
pré-definido trabalhando no sistema nacional de saúde, fora da capital.
Mantém-se,
assim, o (bom) funcionamento do sistema de saúde, ainda que com muitos
problemas e sacrifícios. E a população cubana não passa fome, nem
necessidades básicas, ainda que o acesso aos bens de consumo seja
difícil e exija verdadeiros malabarismos por parte da população. O
resultado é evidente: mesmo com o embargo norte-americano, as crises
econômicas e políticas, os macro indicadores de saúde da população
cubana continuam próximos ou iguais aos dos melhores países do norte do
mundo.
Em tempo: essa política nacional de
recursos humanos em saúde inclui também o “rodízio” dos profissionais de
saúde no exterior, que por sua vez, não têm interesse de “desertar”,
pois esses períodos fora do país integram a progressão na carreira e
abrem caminho para seus trabalhos nos organismos internacionais
(principalmente OPAS). A taxa de “deserção” desses profissionais não é
alta, embora essa afirmação deva ser feita com cautela, pois esses dados
não são exatamente transparentes, como sabemos.
Na
Guerra Fria, o "empréstimo" de profissionais "cooperantes" entre os
países do "mundo socialista", e outros "simpatizantes" ou “interessados”
por outros motivos, era a regra; e, no contexto da polarização
ideológica e política essas cooperações entre Estados eram acordadas
entre eles e as áreas de cooperação eram "distribuídas entre os pares"
(ex: área militar − russos em Moçambique e cubanos em Angola), como uma
das formas possíveis de construção de força política no conflito
Leste-Oeste.
O mesmo ocorria no pólo
“ocidental”, sob a égide da hegemonia norte-americana construída e
consolidada no pós II Grande Guerra no século passado, tendo como
mecanismos o Plano Marshall, a invenção da ajuda externa e da cooperação
internacional para o desenvolvimento.
Esses “arranjos
técnico-políticos” não são diferentes, por exemplo, daqueles do inicio
do século, feitos entre os EUA e países da região latino-americana na
área de saúde, onde a Fundação Rockefeller desempenhou papel
fundamental. As motivações (ou justificativas), e os “programas”, mudam
no tempo e no espaço, mas o motor dessa dinâmica é a da disputa pelo
poder no sistema mundial.
Não é possível se
estender muito neste assunto por email, mas voltando ao nosso tema, a
"metodologia" de venda de força de trabalho e do pagamento ser feito
para o Estado, e não para o "cooperante", também não é nova na história
do mundo: por exemplo, a colônia portuguesa de além mar − Moçambique −
já vendia trabalhadores moçambicanos para as minas da África do Sul,
como forma de arrecadação tributária, prática essa que foi criticada e
abolida formalmente pelo governo revolucionário, mas que tem resquícios
que permanecem até hoje.
Por outro lado, os
médicos cubanos continuam espalhados pelo mundo, nos lugares mais
longínquos e com condições de trabalho às vezes muito precárias, além de
atuarem muito efetivamente em situações de catástrofes, controle de
epidemias graves. etc. (vide Haiti).
Atualmente,
a província de Nampula, no norte de Moçambique, uma das maiores, mais
populosas e mais pobres do país, só consegue manter seu precário sistema
de saúde funcionando e sua jovem universidade pública (UniLurio)
formando profissionais, inclusive na área de saúde, pela cooperação de
profissionais cubanos (não apenas médicos) que cobrem mais de 80% das
necessidades de recursos humanos da província.
Obviamente
o trabalho das Brigadas Médicas cubanas pode ser criticado em alguns
aspectos (ninguém e nada é perfeito!), pois o autoritarismo (ou a falta
do exercício/aprendizado democrático) entranha a alma das pessoas e da
sociedade (mesmo aqui entre nós...).
Entretanto, ninguém duvida da competência do trabalho que elas desenvolvem mundo afora.
Em
Dezembro de 2012 participei, junto com outros brasileiros, de um
Congresso em Cuba/Havana – a Convención Internacional de Salud Pública
“Cuba Salud 2012” − e de um Evento Colateral − II Encuentro de Salud
Internacional y Cooperación en Salud − onde esses e outros temas foram
discutidos.
No caso do Programa mais Médicos, o
Ministério da Saúde (MS) foi inábil e incompetente; e o Ministério das
Relações Exteriores (MRE) foi ausente no inicio (não sei se por omissão
ou por não ter sido chamado), mas entrou depois quando o circo começou a
pegar fogo. O Programa teve e continua tendo (pelo pouco que tenho
conseguido acompanhar) inúmeros problemas − falta de preparo e
organização do MS para lidar com o assunto, açodamento e trapalhadas do
Ministro da Saúde nos comunicados e entrevistas à imprensa e tímido
(para não dizer quase constrangido) apoio do Ministro das Relações
Exteriores.
Esses programas de cooperação
funcionam de forma diferente dos mecanismos normais de credenciamento de
profissionais estrangeiros que pretendem trabalhar e PERMANECER no
país. Isto NÃO quer dizer que suas competências não tenham que ser
AVALIADAS, CREDENCIADAS e CONTROLADAS, mas há mecanismos e formas de
fazer isso legalmente, articulando as diferentes estâncias do aparelho
de Estado e negociando com os órgãos reguladores corporativos, cuja
"autonomia" foi historicamente CONQUISTADA pela corporação e CONCEDIDA
pelo Estado.
Há anos que a "diplomacia
presidencial" é forte no Brasil, mas o estilo muda de presidente para
presidente − de FHC para Lula, e deste para Dilma as diferenças são
marcantes − assim como a capacidade dos respectivos chanceleres para
lidar com seus presidentes.
Existe um esforço
concentrado no momento, envolvendo equipes técnicas de ambos os lados,
além do Gabinete da Presidência, para dar conta de superar as
dificuldades e enfrentar o imbróglio criado. Resta saber se já não é
tarde demais...
Enfim, usar as críticas ao
governo autoritário cubano para criminalizar ou desqualificar o trabalho
dos profissionais cubanos no exterior envolvidos nesse projeto é, no
mínimo, ignorância, confusão deliberada e manipulação escancarada dos
fatos e processos, promovida pelo conservadorismo das nossas entidades
médicas e possibilitada pelos ERROS na condução do programa pelo nosso
governo.
Temos sim MENOS MÉDICOS do que
precisamos (segundo o parâmetro da OMS) e muitos de nossos médicos NÃO
querem sair dos grandes centros ou áreas urbanas.
Nessa
luta insana perde-se uma excelente oportunidade de reivindicar o que
realmente importa: maiores e melhores investimentos na nossa rede de
serviços de saúde, em todos os níveis, extremamente heterogênea nesse
Brasil continental, possibilitando condições de trabalho adequadas aos
nossos profissionais de saúde; e uma política nacional de recursos
humanos realmente efetiva, que atenda as necessidades de saúde da
população e proporcione o aprimoramento da formação dos profissionais
que o país necessita.
Há muito que se debater
(e aprender) com essa história e, desculpem-me, mas a nossa área de
Saúde Coletiva ainda domina pouco esses assuntos. Daí meu esforço para
institucionalizar essa área – Saúde e Relações Internacionais – no campo
da Saúde Coletiva.
Fonte: Cebes
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