PICICA: "“Somos todos precários”, afirma Guy Standing ao final de seu estudo sobre
essa nova realidade do
trabalho, nascida do cruzamento do “proletariado” com o “precário”. Vivemos em
um capitalismo do desejo, da informação, das marcas, do projeto, do dinheiro e
das finanças virtuais. Neste capitalismo de projeto, o precariado é aquela
pessoa aturdida, que gastou suas economias em um perfume propagandeado, mas que
não obteve o sucesso social. Ao contrário do excluído tradicional, ele é
convidado para a festa – mas batem-lhe a porta à cara. A condição essencial do
precariado é a frustração. Ela pode transfornar-se em vontade política de mudança?
Não é fácil. Hoje, o precariado opta mais pela teatralidade das protestos mais
numerosos que as manifestações tradicionais esquerda ou direita – mas capazes,
no máximo, de constranger o Estado, não de transformá-lo."
Precariado: frustração no capitalismo do desejo
Por Juan Carlos Monedero – on
01/10/2013
Que é a nova classe social? Em que difere do proletariado histórico? Livro recém-lançado de Guy Standing lança provocações instigantes
Por Juan Carlos Monedero | Tradução: Inês Castilho
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Resenha de Precariado, a nova classe perigosa, de Guy Standing. Tradução: Cristina Antunes. Editora Autêntica, 2013
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“Somos todos precários”, afirma Guy Standing ao final de seu estudo sobre essa nova realidade do trabalho, nascida do cruzamento do “proletariado” com o “precário”. Vivemos em um capitalismo do desejo, da informação, das marcas, do projeto, do dinheiro e das finanças virtuais. Neste capitalismo de projeto, o precariado é aquela pessoa aturdida, que gastou suas economias em um perfume propagandeado, mas que não obteve o sucesso social. Ao contrário do excluído tradicional, ele é convidado para a festa – mas batem-lhe a porta à cara. A condição essencial do precariado é a frustração. Ela pode transfornar-se em vontade política de mudança? Não é fácil. Hoje, o precariado opta mais pela teatralidade das protestos mais numerosos que as manifestações tradicionais esquerda ou direita – mas capazes, no máximo, de constranger o Estado, não de transformá-lo.
Já faz trinta anos que a direita expôs sua receita e a repetiu até convertê-la em um novo senso comum: desmontar o Estado, privatizar, desideologizar parlamentos e partidos, controlar a mídia, financiar fundações e universidades, combater os “excessos de democracia”, submeter o Sul por meio da dívida, aumentar a exploração da natureza e financiar a economia através do déficit público e eliminação dos limites à expansão financeira. A esquerda social-democrata abraçou o neoliberalismo sob a égide da “terceira via”. A esquerda não social-democrata se social-democratizou e começou a entoar o canto repetido do retorno ao Estado social perdido (que ontem criticava). A direita passou três décadas fazendo seus deveres. Já a esquerda, não. A precarização generalizada do trabalho não esteve ausente nessas décadas. Na verdade, ninguém moveu um dedo para evitar que isso acontecesse.
O precariado, diz Standing, é uma nova classe social em formação que, embora ainda não seja uma “classe para si” (quer dizer, que se reconhece e luta por seus próprios interesses), tem já uma série de características específicas que nos convidam a entendê-la como uma entidade que promete ação coletiva própria. O precariado vive uma flexibilidade laboral nem sempre desejada e uma constante sensação de levar uma vida de má qualidade. Não equivale nem aos proletários tradicionais nem às classes médias superexploradas. Tampouco uma “subclasse” ou “a camada inferior da classe trabalhadora”. Quer boa parte das garantias dos trabalhadores tradicionais, mas não uma vida profissional como a de seus pais ou avós. Suas incertezas e inseguranças são peculiares. Consumistas e carentes de memória, seus membros parecem elegantes aos olhos dos mais velhos – que eles enxergam como dinossauros privilegiados.
Embora os sindicatos não o compreendam direito, o precariado existe e tem suas próprias características, ainda que seja apenas porque lê sua realidade de forma diferente. São pessoas bem-formadas, às quais se prometeu (na escola, na faculdade, na televisão, na publicidade, no exemplo de quem teve sorte) um mundo divertido, confortável e criativo – que nunca chega. São aqueles que viram a escada pela qual subiam ser chutada pelos que vieram antes deles. Mas que ainda não parecem ter pressa (como teve a classe operária, desde o final do século XIX). São pessoas com certa rede familiar (que se sustenta cada vez mais nos avós, mas que também está se precarizando), com uma formação que lhes permite sonhar com um futuro profissional brilhante (ao contrário do ocorreria com um proletário tradicional, condenado a um realismo inclemente). São mulheres e jovens (em sociedades onde as mulheres estão lutando para conseguir um espaço de igualdade e diferença, e onde há um aumento da esperança de vida que prolonga a juventude até os quarenta). São receptivos às mensagens de rebeldia e inconformismo herdados de 68. São urbanos (resultado do êxodo do campo para a cidade a partir dos anos 60 do século XX) e, portanto, sujeitos à condição paradoxal de estar profundamente conectados às redes, ao mesmo tempo em que estão desconectados do mundo real.
O precariado diferencia-se do assalariado “com um posto de trabalho relativamente duradouro e estável, com jornadas de fixas e caminhos de progresso bastante claros, com sindicatos e acordos coletivos, com funções cujos nomes seus pais compreendiam”. A pergunta quase óbvia é: mas o precariado não é na verdade a mesma classe proletária fustigada de sempre? Standing insiste em que são realidades diferentes. Basicamente, o que ele está dizendo é que o mundo do Estado social está acabando. A diferença entre o precariado e outras formas de trabalho subalterno não está tanto em sua “decadência” profissional, mas na leitura que construiram sobre o lugar que mereceriam ocupar. O precariado conseguiu fazer, no oásis social-democrata, os deveres de casa necessários para estar em outro lugar – por exemplo, formando-se, manejando tecnologias, aprendendo idiomas, conhecendo o mundo. No entanto, está por baixo. O risco de que despreze o proletário tradicional é grande, assim como o de demonizar o imigrante, que “parasita os subsídios” (que estão no mesmo lugar que ele, mas dos quais quer distância). Daí pode surgir um problema que conviria resolver: os oprimidos históricos desprezam o precariado (sendo eles próprios precários); e este despreza a camada inferior da classe operária. Trata-se de encontrar a janela de oportunidade para unir essas forças.
O precariado tem um “status truncado”. O status é o espaço de reconhecimento vinculado ao trabalho assalariado. Enquanto um trabalhador de baixo salário podia construir uma carreira profissional (ainda que limitada), o precário tem essa possibilidade negada. O precário carece de segurança para conseguir emprego, manter-se no emprego, fazer carreira, ter garantias e segurança no posto de trabalho, reproduzir suas habilidades, manter uma renda e representar seus interesses coletivamente. Carece da identidade baseada no trabalho, não tem memória social nem sensação de pertencer a uma “comunidade ocupacional baseada em práticas estáveis, códigos éticos e normas de comportamento, reciprocidade e fraternidade”.
A solidariedade entre os precários é fragil. A sensação é de estar sendo maltratado, e de enfado diante da diferença entre sua sorte e a dos outros. O antigo estagiário tornou-se hoje um simples precário. Portanto, há quatro novas características do precário. Aversão (certa inveja ou ressentimento que leva ao desenraizamento ou excesso de autoexploração). Anomia, essa passividade nascida do desespero. Ansiedade, por se saber sempre à beira do abismo (basta um erro ou um golpe da sorte para cair no lado escuro da vida). É a frustração de saber que se tem muito pouco e, não bastasse isso, é muito fácil perder o que se tem. Por fim, a alienação: frustrado profissionalmente, o precário tem dificuldades profundas em desenvolver relações de confiança, ao mesmo tempo em que escuta que deve ser positivo e sorrir.
O precariado está lançado no mundo, à mercê de forças – os mercados – contra as quais não pode fazer nada, a não ser acrescentar ressentimento. A política poderia ajudar, mas por força de não controlar seu destino, de ter-se desenvolvido em formas de democracia representativa, de estar sujeito a constantes mensagens que dizem não haver alternativa, acabou desprezando a política, perdendo o único instrumento que poderia realmente ajudar.
O livro deixa perguntas. Standing não critica o capitalismo, mas apenas seus excessos neoliberais. Daí sua proposta de “mercantilização total do trabalho” (dando como certo que quem contrata, necessita; e vai remunerar segundo as regras teóricas do “mercado de trabalho”) ou que os países ricos convertam-se em “economias rentistas” e invistam nos países emergentes. É muita suposição. Como quando ele fala de um precariado bom – ao qual atribui todas as qualidades de uma cidadania responsável – e um mau – que cairia nas garras da direita populista.
A classe operária podia invadir o paraíso, porque o grosso da humanidade era trabalhadora e o sistema de produção capitalista é um modo de produção sustentado pelo trabalho alheio. Pensar o precariado revolucionariamente, sem mudar o capitalismo, é um exagero. Um precariado que, por enquanto, só quer melhorar suas condições de vida. A consciência resultará de suas lutas.
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Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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