PICICA: "Zombeteiro,
gozador, bufão, intelectual e boêmio, Nunes Pereira mereceu a atenção
do pesquisador Harald Pinheiro que nesta quinta-feira defendeu na PUC de
São Paulo tese de doutorado em Ciências Sociais, onde analisa tanto as
obras de Nunes Pereira como as de outro colecionador de histórias, o
botânico João Barbosa Rodrigues."
O COLECIONADOR DE HISTÓRIAS
José Ribamar Bessa Freire
01/12/2013 - Diário do Amazonas
Quem
gostava de contar essa história saborosa, lá no Canto do Fuxico, era um
sábio amazonense, o etnólogo Geraldo Macedo Pinheiro (1920-1996). Ele
não contou para mim, mas para seu filho, herdeiro de seu nome, que me
relatou e eu, agora, a repasso para ti, desocupado (a) leitor (a). Faz
dela o que bem entenderes. Se quiseres, conta a teus filhos e netos. O
fato aconteceu mesmo, de verdade, embora entre o acontecido e o narrado a
gente introduza sempre os enfeites de praxe.
O
cenário é um restaurante chique de Manaus, na década de 1950, ali na
Eduardo Ribeiro, em prédio já demolido para sediar agência bancária.
Esse foi o palco da ação vivida por nosso herói. Zeloso funcionário do
Ministério da Agricultura e veterinário de profissão, ele viajou por
toda a Amazônia e se embrenhou na floresta para estudar a fauna e a
flora aquática. Aprendeu com os índios que gente e bicho, por quem era
fascinado, faziam parte de um mesmo conjunto, eram todos seres vivos,
igualmente dignos de respeito e carinho, especialmente, mas não
exclusivamente, o bicho-mulher.
Deixa-me
que o apresente sem mais delongas. Seu nome é Manuel Nunes Pereira
(1892-1985), nasceu no Maranhão e incorporava - como ele mesmo dizia - a
síntese do povo brasileiro, pois "tinha os cabelos de português, a cara
e alma de índio e a pele mulata herdada da mãe". Na convivência com os
índios, ele - que já era enólogo desde sempre - se tornou um respeitado
etnólogo, reconhecido nacional e internacionalmente.
Sabia
ouvir. Mais do que isso, sabia escutar os índios e decifrar os
mistérios dos seus mitos. Em suas andanças pelas aldeias, colecionou
inúmeras histórias, sagradas algumas, profanas outras, eróticas,
libidinosas e cômicas quase todas, onde os heróis civilizadores
desmoralizam o sentido da narrativa trazida por missionários. Publicou
livros, entre os quais "Moronguetá: um Decameron indígena", classificado pelo poeta Thiago de Mello como "livro romântico, heróico, fescenino, sarcástico, burlesco, lírico e obsceno". Enfim, livro sacana, no bom sentido, é claro.
Mina de ouro
Eis
que, depois da II Guerra, no final dos anos 1940, quando não existiam
instituições financiadoras de pesquisas, Nunes Pereira queria prospectar
uma mina-de-ouro: as narrativas dos índios Sateré-Mawé, que tinham o
poder de hipnotizá-lo. Sem recursos para a viagem e estadia nas aldeias,
apresentou um projeto à vetusta Associação Comercial do Amazonas (ACA),
em cuja diretoria tinha amigos. Eles aprovaram o projeto só mesmo em
nome da amizade, já que não tinham qualquer interesse pelo tema, o
negócio deles era apenas com o vil metal, o único ouro que buscavam.
A
ACA liberou a grana, que para eles era uma merreca. Lá vai Nunes
Pereira para o rio Madeira em busca da palavra encantada. Passa uma
longa temporada e, tempos depois, volta com o texto pronto do seu livro "Os índios Maués", mas
antes de publicá-lo, o que só aconteceria em 1954, queria apresentá-lo à
entidade financiadora. Para isso, pediu uma reunião. Os patrocinadores
da pesquisa, que estavam se lixando para os índios e suas narrativas,
desconversaram. Solicitou duas, três, dez vezes. Nada.
Uma
bela manhã, cansado de esperar, Nunes Pereira, com uma pasta de papéis
sob o braço, entrou no Bar e Restaurante Avenida. Sentou numa de suas
mesinhas redondas de ferro, com tampa de vidro. Tomou umas e outras
doses de cocal, a cachaça local. Quando o relógio da Matriz deu as doze
badaladas, ele saiu, sentou numa das cinco cadeiras de engraxate que
ficavam ao lado da entrada do bar, pediu um brilho no seu sapato e,
enquanto isso acontecia, teve uma ideia luminosa.
- Se vocês fizerem o que eu pedir, pago o almoço de todo mundo - propôs ele aos cinco engraxates que tinham entre 10 e 12 anos.
O
assassinato de um dos engraxates que abalou Manaus não havia ainda
ocorrido, inexistindo portanto o provérbio "quem tem tu, tem medo,
cuidado com o Figueiredo". Diante da entusiasmada resposta afirmativa
dos meninos, Nunes Pereira os convidou a entrar no restaurante, em cujo
banheiro se lavaram. Ocuparam mesa com seis lugares sob olhares curiosos
de outros clientes. Nunes encomendou um baião-de-dois com jaraqui frito
para todos - que manjar! - e, de sobremesa, um sorvete de cupuaçu,
especialidade da casa.
- Como é teu nome? - perguntou Nunes Pereira se dirigindo ao primeiro menino, já sentado.
- Orlando Pirulito - respondeu o garoto.
- Esquece. Durante este almoço, você vai ser Aluízio Benzecry, presidente da ACA. Como é teu nome? - testou Nunes Pereira.
- Aluízio Benzecry, presidente da ACA.
Fez
isso com cada um, compondo toda a diretoria da Associação.
Luiz-mal-de-vida passou a ser Jayme Benoliel, vice-presidente; Francisco
Dá-o-toba se transfigurou em Phelippe Bittencurt, o tesoureiro. A
secretaria geral ficou com Severino Santo-Pobre agora com o nome de
Armindo Levy e o Conselho Fiscal com Mário Trezentos, transformado no
doutor Wilson Baptista de Sales.
Enquanto
os engraxates comiam, com suas imagens refletidas nos espelhos de
cristal do restaurante, os demais comensais, atônitos, viram Nunes
Pereira se levantar, tirar os papéis da pasta, ficar de pé e começar a
ler:
-
Senhores membros da Diretoria da Associação Comercial do Amazonas, faço
leitura do meu relatório sobre o trabalho de campo realizado com os
Sateré-Mawé com financiamento desta instituição...
O
discurso durou mais de uma hora. De vez em quando, um dos membros da
diretoria aprovava balançando a cabeça. Nunes concluiu informando sobre
os procedimentos realizados na coleta das histórias:
-
Gostaria de vos falar sobre meu método de trabalho. Quando eu ouvia as
historias dos índios, escutava, sem interromper, os narradores e pedia
que falassem lentamente, porque ia anotando - se falassem em língua
geral - as frases dos vocábulos mais expressivos. Não dispondo de um
gravador, lamento não ter registrado certas vozes, gritos, assovios dos
personagens das histórias, fossem eles animais ou seres humanos. Não
pude reter as mímicas, os gestos, a contração dos lábios e o cerrar de
pálpebras dos narradores.
A
leitura foi seguida atentamente por Giovani Meneghini, o seu João, que
havia acabado de comprar o restaurante em dezembro de 1952. Depois que
os engraxates liquidaram a sobremesa, Nunes Pereira concluiu sua fala.
-
Os senhores diretores da ACA gostaram? - perguntou, de forma ambígua,
porque se referia ao relatório e a resposta apontou em outra direção:
- Sim - responderam os membros da diretoria, aprovando o sabor do jaraqui frito e o cheiro do cupuaçu.
-
Considero, então, aprovado meu relatório - disse Nunes Pereira, depois
de, solenemente, prestar contas à sociedade que havia financiado sua
pesquisa. Quando foi pagar a conta, dona Adelina Meneghini, no Caixa,
não aceitou: o almoço era cortesia do Bar e Restaurante Avenida. O
restaurante inteiro aplaudiu. Lá fora, com ajuda da graxa, Nunes Pereira
tomou as impressões digitais de toda a diretoria da ACA, carimbando com
elas a última página do relatório. Estava sacramentado.
Na xereca da baleia
Zombeteiro,
gozador, bufão, intelectual e boêmio, Nunes Pereira mereceu a atenção
do pesquisador Harald Pinheiro que nesta quinta-feira defendeu na PUC de
São Paulo tese de doutorado em Ciências Sociais, onde analisa tanto as
obras de Nunes Pereira como as de outro colecionador de histórias, o
botânico João Barbosa Rodrigues. Além disso, Harald define o perfil do
nosso herói num depoimento pessoal:
"Lascivo
e libidinoso, contava histórias surpreendentes e engraçadas, na roda de
amigos e admiradores nos bares em que frequentava. Quando eu era ainda
adolescente frequentei uma dessas rodas de narrativas encantadas
(acompanhando meu pai) e me fascinei com estranha história narrada por
Nunes Pereira com seriedade e volúpia, depois de posar para uma foto na
genitália de uma baleia. Há quem afirme ser verídica e, inclusive, ter
visto a foto, mas até hoje ela ecoa em minha imaginação com
verossimilhança e mistério, acompanhada por atmosfera de curiosidade
erótica e profundo encantamento etnopoético".
A
banca aprovou a tese com nota dez e recomendou sua publicação. Nela, o
novo doutor, Harald Sá Peixoto Pinheiro, analisa a dimensão estética e
dá visibilidade à poesia das narrativas indígenas registradas por Nunes
Pereira. Dedicou-a a seu pai Geraldo Macedo Pinheiro, a quem
homenageamos. "Narrar é fazer pensar e fazer sentir que o passado não
morreu" nos diz Walter Benjamin citado na tese. Se isto é certo,
trata-se de doce vingança: cinco filhos doutores de Geraldo Pinheiro
estão escrevendo aquilo que foi pensado pelo pai que, desta forma,
permanece entre nós.
P.S.1
Amazonenses da capital e do interior e do estado, meus companheiros e
companheiras dê lutas e dê ideais, não deixem de ler: Harald Sá Peixoto
Pinheiro: "Mitopoética dos muiraquitãs, porandubas e moronguetás: ensaios de Etnopoesia Amazônica". Complementem com a tese defendida na mesma PUC por Selda Vale da Costa, em 1997, "Labirintos do saber: Nunes Pereira e as culturas amazônicas".
P.S.
2 - Da banca de Harald fizeram parte Edgard de Assis Carvalho
(orientador), Lucia Helena Vitalli Rangel, Edimilson Felipe da Silva,
Iraildes Caldas Torres e este locutor que vos fala. Além de Geraldo
Macedo Pinheiro, lembramos a antropóloga Carmen Junqueira, ainda hoje na
ativa, que foi professora de todos nós presentes naquela sala e, em
1977, incendiou corações e mentes no curso de antropologia amazônica que
ministrou em Manaus. O referido é verdade e dou fé.
Fonte: TAQUIPRATI
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