abril 26, 2015

"Meu amigo Foucault", por Jean-Baptiste Marongiu (Blog Controvérsia)

PICICA: "O renomado historiador da Roma Antiga Paul Veyne traça um retrato íntimo e surpreendente do filósofo francês, morto em 1984"

Meu amigo Foucault

O renomado historiador da Roma Antiga Paul Veyne traça um retrato íntimo e surpreendente do filósofo francês, morto em 1984 

JEAN-BAPTISTE MARONGIU

Sem dúvida aqueles dois se amaram. Mas nada os predispunha a isso. Nem a origem social, nem as inclinações sexuais, nem a personalidade. Sua abertura de espírito de provincianos sedentos do vasto mundo e de reconhecimento mundano teve grande influência.

Filho de cirurgião, Michel Foucault pertencia à boa sociedade de Poitiers. A mãe de Paul Veyne era uma pobre comerciante em Aix-en-Provence. Michel estudou com os jesuítas, Paul é um puro produto do mérito republicano.


O segundo dedica ao primeiro, 24 anos após sua morte devido à Aids, “Foucault – Sa Pensée, Sa Personne” [Foucault -Seu Pensamento, Sua Pessoa, ed. Albin Michel, 224 págs., 16, R$ 43]: um retrato em pé, em que as cores abstratas do discurso foucaultiano vêm dar mais relevo físico à singularidade moral do corpo do herói.


É grande arte. O mestre da história romana é um fino conhecedor do baixo-relevo. Assim, ele pinta uma temporada intelectual única, esclarecendo os confrontos entre as grandes teorias (marxismo, existencialismo, estruturalismo, psicanálise) por meio da vivência dos homens que as animavam.


O estilo desse ímpar criador de intrigas da pequena e da grande história é veloz e voraz.


Hoje professor honorário no Collège de France, Paul Veyne nos recebeu em sua casa perdida no sopé do monte Ventoux, a dois quilômetros da aldeia de Bédoin. 


O tio

O encontro entre Paul Veyne e Michel Foucault ocorreu em 1954 em Paris, na rua d’Ulm, na Escola Normal Superior.


“Éramos quatro: Gérard Genette, futuro semiólogo; Jean Molino, outro futuro semiólogo, emigrado para a Suíça; Jean-Claude Passeron, um sociólogo que considero muito superior a Bourdieu; e eu. Tínhamos 20 anos. Ele tinha quatro a mais. Éramos estudantes, ele, professor. Havia nos escolhido porque o admirávamos e porque nos achava simpáticos.”


“Ainda estávamos no Partido Comunista, ele já havia saído.


Nós nos tratávamos com familiaridade, mas as relações eram ligeiramente condescendentes da parte dele. Era o tio. Entre nós, o chamávamos de “Fouks”, a raposa. Ele sabia, e nós sabíamos, que era infinitamente mais inteligente que nós e que tínhamos muito a aprender com ele.”


Os anos 1950 eram muito rígidos em relação a normas. Em seu meio católico provinciano, Foucault sofreu o inferno por causa de uma homossexualidade vivida na vergonha. Fez duas tentativas de suicídio e absorveu todo tipo de droga que pudesse haver no armário de seu pai, cirurgião.


Escapando da família, reviveu. Foi seu período de “louca histérica”, como ele diria mais tarde, quando pensava ter-se tornado “um veado corajoso, sem problemas”. Por seu lado, Veyne tinha um gosto bastante doentio pelo sexo oposto, que nunca se solucionou. Foucault ficava desolado: “Alguém como você, aberto, instruído, preferir as mulheres!”.


Para facilitar sua entrada no círculo dos íntimos, acabaria por nomeá-lo “homossexual honorário”. “A Escola Normal era um lugar muito sério, muito conformista. Foucault, por seus hábitos que acabou nos deixando entrever, era diferente, alguém que não era como todo mundo. Isso foi uma experiência preciosa que nos marcou para sempre.”


Em que acreditamos quando não acreditamos em nada? O “Foucault” de Veyne é perpassado por essa pergunta. A resposta é paradoxal: depois de propor que Foucault era um cético, demonstra que ele acreditava fortemente em uma certa verdade.


“Quando o conhecemos, ele não era cético. Tinha deixado de ser marxista e procurava sua voz em coisas complicadas, pelo lado de Heidegger [1889-1976]. Foi no grande ano de 1953 que leu Nietzsche [1844-1900] e se atirou no empirismo histórico, como sabemos. Nós o conhecemos em mutação. Foucault não acreditava em nenhuma idéia geral, mas na verdade dos fatos. Um dia, o cético grego Pirro foi perseguido por um cão que queria mordê-lo; Pirro acreditou no cão! Ele não acreditava na “caninidade”, na essência dos cães.” 


Metafísica impossível

“O que nos faz sofrer, o que nos causa indignação, isso existe. Por outro lado, o sentido da história, a vocação da humanidade, o universalismo… Todas as grandes idéias não são realidades. Auschwitz é um fato, assim como a inocência de Dreyfus. Os crimes do stalinismo, o colonialismo, as alas de alta segurança nas prisões, o tratamento infligido aos loucos pelo sistema de asilos são fatos. Foucault não somente crê neles como os combate. Eu disse cético como desafio, porque escutei isso dele e para chocar os espíritos, inscrevendo-o na tradição filosófica que culmina em Montaigne.”


A metafísica era impossível aos olhos de Foucault. Ele não acreditava, ao contrário de Kant e de um bom número de filósofos, que o homem possui qualquer faculdade superior que lhe revele a verdade das coisas.


“Não podemos dizer: o homem é isto ou aquilo. O homem não pára de mudar, e não sabemos do que é capaz. Basta ver os problemas atuais do Pacs [Pacto Civil de Solidariedade, tipo de contrato que permite a união civil entre pessoas do mesmo sexo], da adoção por homossexuais… Daqui a cem anos, as pessoas ficarão surpresas de que isso tenha nos escandalizado de tal maneira, como hoje nos fazem rir as idéias sexuais de alguns séculos atrás.”


“A história humana é o cemitério das verdades do passado, dizia Foucault. Sua arqueologia visava a exumar essas verdades mortas, desatolá-las, como ele dizia, libertá-las da lama das sucessivas interpretações, para considerá-las somente em sua verdade inicial -perdida para sempre para nós. Não era nem relativista nem desesperado.


Pensava apenas que a verdade é deste mundo: um discurso que dá sentido a uma época e que não sobreviverá a ela.” 


Caminhos cruzados

Enquanto seus livros “As Palavras e as Coisas” [Martins Fontes] e “História da Loucura” [Perspectiva] o projetam no grande cenário intelectual, o trajeto universitário de Foucault é errático.
Adido cultural em Varsóvia [na Polônia], ele perde o Maio de 68, e é sua passagem pela universidade experimental de Vincennes, em 1969, que o rotula como de extrema esquerda. Isso quase lhe custa o Collège de France no ano seguinte.


Depois da Escola de Roma e da faculdade em Aix-en-Provence, Paul Veyne o reencontra no Collège em 1975. A reunião com Foucault, 20 anos depois, é calorosa: “Ele foi acolhedor, muito amistoso. Mas, se tivéssemos a infelicidade de pensar mais alto que a pele do crânio (em francês vulgar: de peidar mais alto que o cu), suas réplicas eram flechas que se plantavam na pele do adversário, tão bem escolhidas que o sujeito sofreria até o fim de seus dias”.


“Em meus primeiros anos de curso no Collège de France, morei no estúdio anexo a seu apartamento, na rua de Vaugirard. Ele me hospedou e me alimentou gratuitamente. Impossível contribuir com o que quer que fosse. Generoso, ele era estranhamente avaro com os trocados. É até freudiano: sua avareza só se manifestava com o dinheiro em moedas.”


O Foucault pintado por Veyne é um guerreiro, um samurai temerário e astucioso, usando à maravilha o sabre e o punhal.


No combate intelectual, o ardente indisciplinado se duplica em estrategista consumado. Ele não acreditava na revolução, mas estaria sempre do lado da rebelião. Trabalhava muito e não vivia em estado permanente de indignação ou de febre militante.


“Foucault tinha um apreço pessoal pelos revoltados e malditos, mas não tinha doutrina política. Como em sua juventude ele havia sido humilhado e acreditara em todas as proibições de seu mundo, sua reação foi violenta, e estava decidido a não mais aceitar o que lhe fosse inaceitável”.


“Tinha uma reserva, uma coragem física excepcionais que demonstrou diversas vezes diante dos CRS [guarda republicana francesa, antimotins], da Guarda Civil espanhola, da polícia especial em Varsóvia… e no momento de sua morte. Digo isso com prazer ainda maior porque eu não tenho a menor coragem. Um dia eu lhe disse: como eu gostaria de ter coragem física! Ele me respondeu: “Ah, sim! Mas só existe coragem física, a coragem é sempre um corpo corajoso”.”


Fonte: Folha de S. Paulo Cultura

Fonte: Blog Controvérsia

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