abril 29, 2015

O Tempo Não-Reconciliado – Peter Pál Pelbart (Territórios de Filosofia)

PICICA: "Ts’ui Pen é o governador de uma província chinesa, douto em astronomia, astrologia, livros canónicos, além de enxadrista, poeta e calígrafo. Borges conta que ele renunciou aos prazeres “da opressão, da justiça, do numeroso leito, dos banquetes e ainda da erudição” a fim de compor um livro e um labirinto. Com tal propósito enclausurou-se por treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. Depois de sua morte, no entanto, os herdeiros encontraram apenas escritos caóticos, e nenhum labirinto. O sinólogo Stephen Albert assim resume sua hipótese a respeito: “Ts’ui Pen teria dito uma vez: ‘Retiro-me para escrever um livro’. E outra: ‘Retiro-me para construir um labirinto’. Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que livro e labirinto eram um só objeto” [l]. Tal pista foi-lhe sugerida por um fragmento de carta, em que Ts’ui Pen escrevia:  “Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam”. “Quase de imediato”, refere Albert, “compreendi; o jardim dos caminhos que se bifurcam era o romance caótico; a frase ‘vários futuros (não a todos)’ sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance” . As variações a que eram submetidos os relatos de Ts’ui Pen não constituíam o capricho ocioso de um romancista menor, nem um experimento teórico mundano, mas respondiam a uma inquietação metafísica, a uma questão filosófica maior que o ocupara ao longo de toda sua vida: o abismal problema do tempo.

Eis como Albert o explica a um interlocutor ilustre, descendente de Ts’ui Pen: “O jardim dos caminhos que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts’ui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns o senhor existe e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois. […] O tempo se bifurca perpetuamente em inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo”.

Podemos deixar o relato de Borges seguir seu curso para apresentar nossa hipótese descabelada: o metafísico Ts’ui Pen é um precursor do patafísico Gilles Deleuze. Isto no nosso tempo. Num outro tempo é o inverso: Gilles Deleuze é o precursor de Ts’ui Pen.[2] Peço indulgência pelos parcos dados biográficos de que disponho para a comprovação dessa tese, o que, espero, deverá ser compensado pelas provas teóricas ulteriores. Seria preciso lançar mão, inicialmente, dos fragmentos reportados pelo lexicógrafo grego Suidas, do século X, e que alguns modernos chamam de André Bernold. Em sua compilação sobre a vida e doutrina de filósofos ilustres ou esquecidos, duas páginas preciosas, embora obscuras, são dedicadas a Deleuze [3]. Nelas consta que alguns o situavam entre os físicos, outros o consideravam médico, ou geólogo, ou descobridor da pulsação das espirais, ou especialista incompreendido em estratégia etc. O detalhe mais anedótico vem de Ateneu: a voz de Deleuze era comparável a um ralador, ou a uma enxurrada de pedregulhos. Mas o essencial está na conclusão dessa nota biográfica, diante da qual o leitor reage com assombro: “Houve uma multidão de outros Deleuzes”. É grande a tentação de pedir ao doxógrafo tão desprovido de senso crítico algum mínimo esclarecimento: terá havido uma multidão de outros Deleuzes ao mesmo tempo, ou em tempos diferentes e sucessivos? Foram eles contraditórios entre si? Ou apenas incompossíveis, isto é, possíveis porém em mundos distintos? Se eram incompossíveis e não obstante coexistiram, que espécie de mundo aberrante os terá acolhido a todos?" 

O Tempo Não-Reconciliado – Peter Pál Pelbart


O TEMPO NÃO-RECONCILIADO.
Peter Pál Pelbart.*

Ts’ui Pen é o governador de uma província chinesa, douto em astronomia, astrologia, livros canónicos, além de enxadrista, poeta e calígrafo. Borges conta que ele renunciou aos prazeres “da opressão, da justiça, do numeroso leito, dos banquetes e ainda da erudição” a fim de compor um livro e um labirinto. Com tal propósito enclausurou-se por treze anos no Pavilhão da Límpida Solidão. Depois de sua morte, no entanto, os herdeiros encontraram apenas escritos caóticos, e nenhum labirinto. O sinólogo Stephen Albert assim resume sua hipótese a respeito: “Ts’ui Pen teria dito uma vez: ‘Retiro-me para escrever um livro’. E outra: ‘Retiro-me para construir um labirinto’. Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que livro e labirinto eram um só objeto” [l]. Tal pista foi-lhe sugerida por um fragmento de carta, em que Ts’ui Pen escrevia:  “Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam”. “Quase de imediato”, refere Albert, “compreendi; o jardim dos caminhos que se bifurcam era o romance caótico; a frase ‘vários futuros (não a todos)’ sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do romance” . As variações a que eram submetidos os relatos de Ts’ui Pen não constituíam o capricho ocioso de um romancista menor, nem um experimento teórico mundano, mas respondiam a uma inquietação metafísica, a uma questão filosófica maior que o ocupara ao longo de toda sua vida: o abismal problema do tempo.

Eis como Albert o explica a um interlocutor ilustre, descendente de Ts’ui Pen: “O jardim dos caminhos que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts’ui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns o senhor existe e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois. […] O tempo se bifurca perpetuamente em inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo”.

Podemos deixar o relato de Borges seguir seu curso para apresentar nossa hipótese descabelada: o metafísico Ts’ui Pen é um precursor do patafísico Gilles Deleuze. Isto no nosso tempo. Num outro tempo é o inverso: Gilles Deleuze é o precursor de Ts’ui Pen.[2] Peço indulgência pelos parcos dados biográficos de que disponho para a comprovação dessa tese, o que, espero, deverá ser compensado pelas provas teóricas ulteriores. Seria preciso lançar mão, inicialmente, dos fragmentos reportados pelo lexicógrafo grego Suidas, do século X, e que alguns modernos chamam de André Bernold. Em sua compilação sobre a vida e doutrina de filósofos ilustres ou esquecidos, duas páginas preciosas, embora obscuras, são dedicadas a Deleuze [3]. Nelas consta que alguns o situavam entre os físicos, outros o consideravam médico, ou geólogo, ou descobridor da pulsação das espirais, ou especialista incompreendido em estratégia etc. O detalhe mais anedótico vem de Ateneu: a voz de Deleuze era comparável a um ralador, ou a uma enxurrada de pedregulhos. Mas o essencial está na conclusão dessa nota biográfica, diante da qual o leitor reage com assombro: “Houve uma multidão de outros Deleuzes”. É grande a tentação de pedir ao doxógrafo tão desprovido de senso crítico algum mínimo esclarecimento: terá havido uma multidão de outros Deleuzes ao mesmo tempo, ou em tempos diferentes e sucessivos? Foram eles contraditórios entre si? Ou apenas incompossíveis, isto é, possíveis porém em mundos distintos? Se eram incompossíveis e não obstante coexistiram, que espécie de mundo aberrante os terá acolhido a todos?

DELEUZE TS’UI PEN

Deleuze Ts’ui Pen trancafiou-se por anos no Pavilhão da Multitudinária Mestiçagem. Teria dito uma vez: “Retiro-me para escrever um livro”. E outra: “Retiro-me para construir um labirinto”. O pouco recuo de que dispomos ainda hoje nos leva a suspeitar, inspirados na perspicácia do sinólogo Albert, que o que o vulgo imagina serem duas obras diferentesc onstitui, de fato, uma só. E, tal como no caso de Ts’ui Pen, a arquitetura labiríntica de alguns dos textos do filósofo parece responder não a um capricho de literato, ou a um experimento mundano, porém, a uma inquietação constante raramente explicitada, como se fosse por demais abismal para poder ser exposta numa forma outra que não a da charada, da alusão ou do anúncio.

Um pouco como Zaratustra, ao anunciar de forma tão alusiva e enviesada sua idéia do eterno retorno, que o próprio Deleuze pretende ter explicitado.


Deleuze Ts’ui Pen, diferentemente de Newton e Schopenhauer, não acreditava num tempo uniforme, absoluto, porém, em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram abrange todas as possibilidades. Cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, ao invés de optar por uma e eliminar as outras, opta por todas – isto é, cria múltiplos futuros, diversos tempos que também proliferam e bifurcam, produzindo essa pululação de vidas disparatadas. O filósofo Deleuze Ts’ui Pen fez ressoarem e igualmente destoarem a multidão dos outros Deleuzes cuja existência o lexicógrafo Suidas reporta. É preciso, dizia Deleuze, recusar a regra de Leibniz segundo a qual os mundos possíveis não podem ser trazidos à existência caso sejam incompossíveis com aquele que Deus escolhe. Cabe afirmar os incompossíveis num mesmo mundo estilhaçados. [4]

Não podemos deixar de ver aí, pressuposta e entrelaçada, uma curiosa tese sobre a multiplicidade temporal. Seu indício primeiro, em Deleuze, são os inúmeros tempos que operam em sua obra, nem sempre compatíveis entre si, como se a inspiração borgeana atravessasse não só esse obscuro objeto filosófico, mas também e sobretudo sua própria elaboração e feitura.

Eis alguns dos fragmentos que compõem o bizarro mosaico deleuzeano do tempo, com suas respectivas colorações: o presente como síntese passiva sub-representativa, ou contemplação contraente (Plotino, Hume); o passado como Memória ontológica, Memória-mundo, Cone Virtual (Bergson); o futuro como retorno seletivo que rejeita Sujeito, Memória, Hábito (Nietzsche); a oposição Aion/Cronos (estóicos); o tempo do Acontecimento (Péguy, Blanchot); o Intempestivo (Nietzsche); o tempo como “defasagem” (Simondon); a Cesura e um tempo que já não “rima” (Hölderlin); o tempo perplicado, o tempo puro ou reencontrado da arte (Plotino, Proust); o tempo liberado de sua subordinação ao movimento (Kant versus Aristóteles); o tempo como Diferença, ou como Outro (Platão contra Platão); o tempo como Potência, não como Finitude (Bergson versus Heidegger); o tempo como Fora (Blanchot, Foucault).

Desses poucos tempos ou conceitos de tempo que se desdobram em cascata vertiginosa ao longo dos livros de Deleuze, irrigando-os de ponta a ponta, algumas incoerências saltam à vista e parecem estilhaçar a obra, que no entanto simultaneamente os afirma. As bifurcações maiores suscitam no leitor a pergunta: mas, afinal, Deleuze concebe o tempo como contração ou como cisão? como dobra ou desdobra? como um transcendental ou como o virtual? Trata-se de um tempo puro e vazio, ou de um tempo ontológico, pleno de pontos singulares? Tempo reto ou rizomático? Tempo como interioridade ou como exterioridade? Tempo como Todo ou como Fora? Tempo como Forma ou como Potência?

A DRAMATIZAÇÃO CINEMATOGRÁFICA

As teses maiores de Deleuze sobre o tempo reaparecem de maneira dramatizada em seus livros de cinema, onde conquistaram uma operacionalidade estética que as ilumina em seu conjunto “encadeado”. Tomemos a idéia mais enigmática que organiza esses livros, o tema da emancipação do tempo. “The time is out of joint”, exclama Hamlet. O tempo está fora dos gonzos! O que significa o tempo saído dos eixos, devolvido a si mesmo, o tempo puro e liberada? Ê um tempo liderado do movimento, isto é, do movimento centrado em torno de seu eixo e encadeado e direcionado conforme a sucessão de seus presentes encaixados. Deleuze alude então a um tempo liberado da tirania do presente que antes o envergava, e disponível, doravante, às mais excêntricas aventuras. Como diz Bruno Schulz em outro contexto, o tempo é um elemento desordenado que só se mantém em disciplina graças a um incessante cultivo, a um cuidado, a um controle, a uma correção dos seus excessos. “Privado dessa assistência, ele fica imediatamente propenso a transgressões, a uma aberração selvagem, a travessuras irresponsáveis, a uma palhaçada amorfa.” [5] Schulz lembra que carregamos uma carga extranumerária que não cabe no trem dos eventos e no tempo de dois trilhos que o suporta. Para esse contrabando precioso, chamado por ele de Acontecimento, existem as tais faixas laterais do tempo, desvios cegos, onde ficam “suspensos no ar, errantes, sem lar”, num entremeado multilinear, sem “antes” nem “depois”, nem “simultaneamente”, nem “por conseguinte”, o mais remoto murmúrio e o mais longínquo futuro comunicando-se num início virginal. Assim, no seio do tempo contínuo dos presentes encadeados (cronos) insinua-se constantemente o tempo amorfo do Acontecimento (aion), na sua lógica não dialética, impessoal, impassível, incorpórea: “a pura reserva”, virtualidade pura que não pára de sobrevir.

A esse propósito Deleuze salienta um procedimento cinematográfico que consiste em desvincular as pontas de presente de sua própria atualidade, subordinando esse presente a um acontecimento que o atravessa e o transborda, no qual justamente não há mais passado, presente, futuro, enrolados que estão no acontecimento “simultâneo, inexplicável”. No Acontecimento coexistem as pontas de presente desatualizadas, ou ainda um mesmo acontecimento se distribui em mundos distintos segundo tempos diferentes, de modo que, o que para um é passado, para outro é presente, para um terceiro é futuro – mas é o mesmo acontecimento (O ano passado em Marienband). Tempo sideral ou sistema da relatividade, diz Deleuze, porque inclui uma cosmologia pluralista, no qual um mesmo acontecimento se distribui, em versões incompatíveis, em uma pluralidade de mundos. Eis não um deus que escolhe o melhor dos mundos possíveis, mas um Processo que passa por todos eles, afirmando-os “simultaneamente”. É um sistema de variação: dado um acontecimento, não rebatê-lo sobre um presente que o atualiza, mas fazê-lo variar em diversos presentes pertencentes a  mundos distintos, embora num certo sentido, mais genérico, eles pertençam a um mesmo mundo estilhaçado. Ou, dado um presente, não esgotá-lo nele mesmo, encontrar nele o acontecimento pelo qual ele
se comunica com outros presentes em outros mundos, mergulhar a montante no acontecimento comum em que estão implicados todos: o Emaranhado Virtual.


Supõe-se aí uma gigantesca Memória ontológica, constituída por lençóis ou jazidas de passado, espécies de estratos, que se comunicam entre si para afunilar-se, exercendo pressão sobre uma ponta de presente. Alguns personagens de Resnais, por exemplo, passando de um estrato a outro, passeando entre os níveis, atravessando idades do mundo, transversalizando o Tempo ou recriando a cada vez as distâncias e proximidades entre os diversos pontos singulares de suas vidas. Para ficar numa imagem cômoda, o tempo como um lenço: a cada vez que assoamos o nariz, nós o enfiamos no bolso, amarrotando-o de maneira distinta, de forma que dois pontos do lenço que antes estavam distantes e não se tocavam (como dois momentos da vida, longínquos segundo uma linha do tempo) agora tornam-se contíguos, ou mesmo coincidem, ou, ao contrário, dois pontos em princípio vizinhos agora se afastam irremediavelmente. Como se o tempo fosse uma grande massa de argila, que a cada modelagem rearranja as distâncias entre os pontos nela assinalados. Curiosa tipologia em que assistimos a uma transformação incessante, modulação, que reinventa e faz variar as relações entre os vários lençóis e seus pontos cintilantes, cada rearranjo criando algo novo, memória plástica, sempre refeita, sempre por vir. Massa do tempo modelável, ou melhor, modulável, e sobre a qual Deleuze chega até a exclamar, como um Cristóvão Colombo: é a Terra, meio vital lamacento! Quando o cinema se embrenha nessa ordem de coexistência virtual ele inventa seus lençóis paradoxais, hipnóticos, alucinatórios, indecidíveis. Nesse filão bergsoniano, a memória deixa dc ser uma faculdade interior ao homem, é o homem que habita o interior de uma vasta Memória, Memória-Mundo, gigantesco cone invertido, multiplicidade virtual da qual somos um grau determinado de distensão ou contração. O filósofo e o porco, como numa metempsicose, retomam o mesmo cone, a mesma vida em níveis distintos, graceja Deleuze.

O tempo passa então a ser concebido não mais como linha, mas como emaranhado, não como rio, mas como terra, não fluxo, e sim massa, não sucessão, porém coexistência, não um círculo, mas turbilhão, não ordem, e sim variação infinita, de modo que não se trata mais de remetê-lo a uma consciência – a consciência do tempo -, mas à alucinação. Enlouquecimento desse tempo fora dos eixos, não sem relação com o tempo daqueles que, fora dos eixos, são ditos loucos.

TEMPO E LOUCURA

Sempre que fala do tempo, Deleuze evoca um desregramento: tempo descentrado, aberrante, selvagem, paradoxal, flutuante, ou mesmo afundado. Não parece abusivo considerar que o enlouquecimento do tempo tal como Deleuze o trabalha comunica-se diretamente com a temporalidade da loucura dita “clínica”. Enquanto isso, em contrapartida, boa parte da literatura sobre as psicoses se vê inteiramente desarmada diante das múltiplas figuras temporais que proliferam a olhos vistos na clínica, e que as teorias “psi” têm dificuldade em abarcar, tendo em vista uma normatividade temporal da qual são necessariamente prisioneiras. É muito raro que se pense a temporalidade da psicose por um viés outro, não sob o modo privativo. Mesmo na abordagem fenomenológica ou existencial das psicoses, desde Minkowski até Maldiney, passando por Binswanger ou Jaspers, apesar do inegável interesse descritivo que ela apresenta, nela a multiplicidade constatada acaba sendo referida a uma modalidade pressuposta como ideal, priorizando-se, por exemplo, certas estruturas de estar-no-mundo, a transcendência, a antecipação, o prometo,a partir de um presente originário etc. Mas também no interior da literatura estritamente psicanalítica, com raras exceções, a não-unicidade da experiência temporal psicótica é subsumida à sua futuração malograda, na forma das representações atemporais. [6] De modo que há uma iminência caótica que é recusada em nome de um alhures significante precisamente não assumível pelo psicótico. Enfim, toda uma apologia da historicização, cujo ponto de apoio é o eu historiador, como diria Piera Aulagnier. Assim, de algum modo a temporalidade acaba sendo identificada à historicização. Com tudo o que essa perspectiva possa apresentar de interessante, ou útil, e até de necessária na clínica, ela tem o inconveniente de dificultar o acolhimento dos devires na psicose. A reflexão de Deleuze e Guattari, ao contrapor os devires à história, poderia ajudar a repensar essa heterogeneidade temporal da psicose que tanto desafia o tempo da razão, mesmo psicanalítica.
Deleuze o diz claramente: a História é um marcador temporal do Poder[7]. As pessoas sonham em começar ou recomeçar do zero, e também temem aonde vão chegar, ou cair. Sempre buscamos a origem ou o desfecho de uma vida, num vício cartográfico, mas desdenhamos o meio, que é uma antimemória, que é onde se atinge a maior velocidade. Esse meio é justamente onde os mais diferentes tempos se comunicam e se cruzam, onde está o movimento, a velocidade, o devir, o turbilhão, diz Deleuze literalmente [8]. E a pergunta que se impõe é simples: de que figura temporal dispomos para pensar esse meio turbilhonar, ou a desterritorialização como primeira, ou a multiplicidade virtual? De qualquer modo, não deveria deixar de intrigar-nos o fato de que certos fenómenos de perturbação psíquica expõem, mais do que quaisquer outros, a virtualidade pura enquanto virtualidade, descolada precisamente de qualquer atualização centrada ou orientada, abrindo-se para incongruências temporais diversas, que também o cinema, a seu modo, não cansou de explorar desde o seu início.

IMAGENS DE TEMPO

O cinema teria servido a Deleuze, como sugerimos acima, para revelar determinadas condutas do tempo, dando delas imagens diversas, evolutivas, circulares, espiraladas, declinantes, quebradas, salvadoras, desembestadas, ilocalizadas, multivetoriais. Tempo como bifurcação, defasagem, jorramento, oscilação, cisão, modulação etc. E plausível presumir que o interesse que Deleuze lhe dedicou venha de uma determinação mais radical que ele mesmo deixou entrever, ao salientar a ambição do cinema de penetrar, apreender e reproduzir o próprio pensamento. O pensamento e o tempo estariam assim, desde logo, numa relação de co-pertinência indissolúvel. Com efeito, o que se depreende dos textos de Deleuze a respeito do tempo é que o próprio pensamento não poderia permanecer alheio ao projeto de liberar-se de uma certa idéia de tempo que o formatou, bem como do eixo que o encurva. Nesse sentido, a exclamação enigmática de  Hamlet sobre o tempo que sai dos eixos vai de par com a exigência de um pensamento fora dos eixos, isto é, de um pensamento que deixasse de girar em torno do Mesmo.

Assim, como critica uma imagem do pensamento dita dogmática, Deleuze fustiga uma imagem de tempo hegemônica. Ao reivindicar um pensamento sem imagem, para que possam advir outras imagens ao pensamento, Deleuze também reclama um tempo sem imagem, para que se liberem outras imagens de tempo. A imagem do pensamento dita dogmática é bem conhecida: ela é explorada desde Nietzsche e a filosofia até O que é a filosofia?. Mas qual seria a imagem de tempo hegemónica recusada por Deleuze? Para irmos rápido, diremos: é a do tempo como círculo. Não se trata propriamente de um tempo circular, mas do círculo como uma estrutura profunda, em que o tempo se reconcilia consigo mesmo, em que começo e fim rimam, como diz Hõlderlin. O que caracteriza o círculo é sua monocentragem em torno do Presente, de seu Movimento encadeado e orientado, bem como sua totalização subjacente. O círculo, com seu centro, metáfora do Mesmo. E, ainda que o Presente se situe num passado remoto e nostálgico, ou num futuro escatológico, nem por isso deixa de continuar funcionando como eixo que encurva o tempo, em torno do qual ele gira, redesenhandoo círculo do qual pensávamos ter escapado. Trata-se aí, em última instância, ainda e sempre, do tempo da Re-presentação.

Ao tempo como Círculo, Deleuze contrapõe o tempo como Rizoma. Não mais Identidade reencontrada, mas Multiplicidade aberta. A lógica da multiplicidade foi exposta e trabalhada, entre outros textos, na descrição do rizoma em Mil Platôs. Num rizoma entra-se por qualquer lado, cada ponto se conecta com qualquero outro, ele é feito de direções móveis, sem início ou fim, tendo apenas um meio, por onde ele cresce e transborda, sem remeter a uma unidade ou dela derivar, sem sujeito nem objeto. O que vem a ser o tempo, quando ele passa a ser pensado enquanto multiplicidade pura ou operando numa multiplicidade pura? O rizoma temporal não tem um sentido (o sentido da flecha do tempo, o bom sentido, o sentido do bom senso, que vai do mais diferenciado ao menos diferenciado), nem reencontra uma totalidade prévia que, abolindo-se, ele se encarregaria de explicitar no Conceito. Ele não possui um sentido e é alheio a qualquer teleologia.

Mas será esta a última palavra de Deleuze a respeito do tempo? Pois essa multiplicidade virtual é como que arada e remexida em todos os seus pontos, em toda sua extensão, não mais por um Círculo, que o autor recusa, mas pelo que se poderia chamar – e a expressão já está no Timeu de Platão – de um Círculo do Outro. Um círculo cujo centro é o Outro, este outro que jamais pode ser centro precisamente porque é sempre outro: círculo descentrado. É a figura que melhor convém à leitura original que Deleuze faz de Nietzsche: na repetição retorna apenas o não-Mesmo, o Desigual, o Outro – Ser do Devir, Eterno Retorno da Diferença.

Pode-se chamar esse Outro de Futuro (a repetição régia é a do futuro, diz Diferença e repetição). Mas, se há em Deleuze, como em Heidegger, um privilégio do futuro, ele não é deduzível de uma problemática da Finitude, e sim da Obra, que rejeita seus andaimes, Hábito, Memória, Agente. O futuro não é, para o homem, uma antecipação de seu próprio fim, de sua própria morte, a possibilidade extrema de seu ser, nada que se aparente a um ser-para-a-morte, já que não é a partir da ipseidade que ele pode ser pensado, mas de um fluxo proto-ôntico. Se na elaboração desse futuro por Deleuze o Aberto é uma referência importante, ela aí remete ao Fora, mais do que ao Ser. Digamos que o Aberto de Deleuze está mais para Blanchot do que para Heidegger. É sob o signo da Exterioridade, portanto, que o pensamento pode ganhar uma determinação de futuro.

Mas seria preciso acolher todas as implicações de uma tal idéia.Poderíamos começar por onde elas aparecem do modo mais palpável, mais imagético, isto é, pelo cinema. Se desde a origem ele promove movimentos aberrantes que descentram a percepção, mudando a escala, a proporção, a aceleração, a direção, tirando o próprio movimento de seu eixo, o cinema também compensa essas aberrações através da montagem, conjurando-as, reabsorvendo-as, amortecendo-as. Mas chega um momento em que essa ordenação e essa normalidade do movimento entram em crise, de modo que o movimento perde seu eixo, seu ponto de gravidade, sua motricidade, e a relação orgânica entre os movimentos se desmancha, o encadeamento sensório-motor se desfaz na crença na continuidade do mundo se perde, porque um certo mundo também desmoronou. O que significa essa crise, mais radicalmente? Não só que a organicidade da ação no mundo desfez-se, mas que o mundo como organicidade e totalidade foram abalados. Na esteira de um tal terremoto, surgem encadeamentos fracos entre as situações, elos frouxos entre os espaços, aumenta a função do acaso, emerge uma realidade dispersiva, os personagens flutuam em meio às situações, desfaz-se a intriga, a história, a ação. Já fica mais difícil dar uma imagem do Todo do tempo, orgânica, dialética, espiralada, porque o que se esboroou foi a representação indireta do tempo que a imagem-movimento fornecia.

O movimento aberrante, em contrapartida, vai apresentar o tempo diretamente, diz Deleuze, do fundo da desproporção das escalas, como em Orson Welles, da dissipação dos centros, dos falsos raccords. O próprio interstício entre as imagens se libera, de modo que o cinema deixará de ser o cinema do Uno, que por associação de imagens (montagem) visa o Todo do Tempo, para instalar-se no interstício, entre as imagens. O Tempo não mais como Ser, mas como Entre, não mais regido pela forma verbal É, mas pela conjunção E, escavação do Fora.

O cinema moderno coloca em xeque constantemente, através de seu regime, o curso empírico do tempo. Na sua busca do transcendental, isto é, da forma do tempo, acaba sendo aspirado pela idéia de um Fora mais exterior que qualquer exterior, mais interior que qualquer interior, matéria-prima do tempo. A chave desse desenlace pode ser resumida pela frase que caracteriza a filosofia de Deleuze como um todo: “0 específico de uma pesquisa transcendental consiste em não podermos detê-la quando queremos. Como é que poderíamos determinar um fundamento, sem sermos precipitados para além, no sem-fundo de que ele emerge?”[9]

IMAGEM DO TEMPO, IMAGEM DO PENSAMENTO

Como já se disse, a crítica de Deleuze a uma imagem do pensamento dita dogmática é feita em nome de um pensamento sem imagem. Ora, isso significa que o pensamento, sem um Modelo prévio do que seja pensar (por exemplo: pensar é buscar a verdade), abre-se a outras aventuras (por exemplo: pensar é criar). Tudo muda de um para outro. Deleuze diz que são dois planos de imanência diferentes, o clássico e o moderno, o da vontade de verdade, por um lado, e o da criação, por outro. [10] E cada um deles é inseparável de um certo conceito de tempo que o preenche. Por exemplo, no plano de imanência clássico, do pensamento como busca da verdade, Deleuze assinala três momentor distintos: tempo como interioridade (na reminiscência platônica, a verdade pressuposta corno imagem virtual de um já pensado que redobra todo conceito), tempo como instantaneidade (no inatismo cartesiano, o tempo é expulso do conceito: entre a ideia e a alma que a forma enquanto sujeito, toda distância temporal é anulada), tempo como forma da interioridade (o tempo reintroduzido por Kant no sujeito, e cindindo-o). Temos assim, em poucas linhas de O que é a filosofia?, uma nova história do tempo – anterioridade, instantaneidade, interioridade, ou melhor, reminiscência, inatismo, a priori, três conceitos de tempo. O tempo posto no conceito, o tempo expulso do Cogito, o tempo reintroduzido no sujeito, mas como fissura ou variação. No contexto em que são retomados, parecem indicar que a idéia de tempo de cada filósofo é índice do plano de imanência que ele erigiu, ou sobre o qual se instalou. Assim, se esses três momentos correspondem ao plano de imanência clássico (o pensamento como busca da verdade), o plano de imanência moderno (o pensamento como criação) pede um outro conceito de tempo, a determinar. Não seria o caso de supor que uma filosofia da diferença, tal como a de Deleuze, deu-se por tarefa preencher esse plano de imanência moderno com um conceito de tempo próprio a um pensamento definido como criação, e não mais como vontade de verdade?

O tempo, então – não mais como anterioridade, instantaneidade, interioridade, mas como exterioridade pura -, é a reversão inaudita a que nos convida Deleuze. O tempo como Fora sob a condição da dobra. E o gesto que Deleuze atribuiu com amizade a Foucault, muito embora deva ser considerado a aposta extrema de seu próprio pensamento: “Durante muito tempo, Foucault pensou o fora como uma última espacialidade mais profunda que o tempo; foram suas últimas obras que lhe permitiram uma possibilidade de colocar o tempo no fora e de pensar o fora como tempo, sob a condição da dobra” [11]. É apenas num tempo saído dos gonzos e assim devolvido ao Fora que as tantas imagens de tempo inassimiláveis, recorrentes ao longo da obra de Deleuze, podem ganhar seu verdadeiro alcance: elas correspondem a outras tantas dobras, Acontecimentos novos e Subjetivações por vir.

A teorização deleuzeana do tempo, apesar de suas inúmeras obscuridades, teria por função, então, pensar um tempo consentâneo à força do novo. Se há aí uma fidelidade profunda ao projeto bergsoniano, ela só pode ser levada a bom termo quando, com Nietzsche, o tempo for alçado à sua potência última, ao fazer retornar… a diferença. Só o eterno retorno seletivo, afetando o novo, igualando-se ao Desigual em si, só o Tempo como Diferença pode inaugurar com o Futuro, descontínuo e disruptivo, uma relação de excesso, a exemplo da Obra ou do Além-do-homem, para o qual nem Z aratustra está maduro e que no entanto ele anuncia. O futuro como o incondicionado que o instante afirma – é o que Nietzsche teria chamado de Intempestivo e cuja importância Deleuze não cessa de ressaltar.

Se Michel Serres tem razão em atribuir à filosofia a função de “inventar as condições da invenção”, é preciso acrescentar que, no contexto que nos ocupa, isso significaria também e sobretudo reinventar as condições da invenção de outros tempos que não os já consagrados pela história. Trata-se, no limite, de desfazer a solidariedade entre Tempo e História, com todas as implicações éticas, políticas e estratégicas de uma tal ambição. Ao pensar as multiplicidades substantivas e os processos que nela operam, aí desentocando temporalidades as mais inusitadas, no arco que vai do Intempestivo até o Acontecimento, não terá Deleuze dado voz àqueles que, como diz ele num eco benjaminiano, “a História não leva em conta”[12]? Não se trata, evidentemente, só dos oprimidos ou das minorias, embora sempre se trate deles também, mas dos devires-minoritários de todos e de cada um: não exatamente o povo, mas “o povo que falta”, o povo por vir.

Notas.

1. J. L. Borges, “0 jardim dos caminhos que se bifurcam”, Ficções, trad. Carlos Negar, Porto Alegre, Globo, 1970, p. 78.

2. Paráfrase de nota de rodapé de José Gil, em seu Fernando Pessoa ou La métaphysique des sensations: “Tendo a leitura de Pessoa feito surgir, uns depois dos outros, os temas deleuzeanos […] uma convicção inabalável se formou: Fernando Pessoa leu Deleuze! O inverso não se verificou [….]”. Paris, La Différence,
1988, P. 73.


3. Philosophie, nº 47, 1995, pp. 8-9.

4. G. Deleuze, A Dobra, trad. Luiz B. L. Orlandi, Campinas, Papirus, 1991, p. 105 [no original, p. 90].

5. Schulz, O Sanatório, ad. H. Siewierski, Rio de Janeiro, Imago, 1994, p. 172.

6. Seria preciso citar uma exceção recente e notável, de Sylvie Le Poulichet, L’oeuvre du temps en pysichanalyse, Paris, Payot &: Rivages, 1994.

7. G. Deleuze e C. Bene, Superposittions, Paras, Minuit, 1980, p. 103.

8. Idem, pp. 95-6.

9. G. Deleuze, Apresentação de Sacher-Masoch, trad. José Martins Garcia, como Sacher-Masoch, Lisboa, Assírio & Alvim, 1973, p. 124 [p. 98].

10. G . Deleuze e F. Guattari, O que é a filosofia?,t rad. Bento Prado Jr. e Alberto Afonso Muñoz, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 55 [p. 73].

11. G. Deleuze, Foucault, trad. Cláudia Sant’Anna Martins, São Pauta, Brasiliense, 1988, p. 115 [p. 115].

12. Deleuze, Superposittions, p. 127.

*Originalmente publicado em: PELBART, Peter Pál. O Tempo Não-Reconciliado. in: ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze: Uma Vida Filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000.

Fonte: Territórios de Filosofia

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