abril 23, 2015

"Faltou sal a O sal da terra", por José Geraldo Couto (Blog do IMS)

PICICA: "Um grande fotógrafo, filmado por um grande cineasta. Disso só poderia resultar um grande filme, certo? Errado. O documentário sobre Sebastião Salgado assinado por Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado (filho do fotógrafo) é, no mínimo, frustrante. Faltou sal a O sal da terra. Vou tentar explicar por quê."


Faltou sal a O sal da terra


Um grande fotógrafo, filmado por um grande cineasta. Disso só poderia resultar um grande filme, certo? Errado. O documentário sobre Sebastião Salgado assinado por Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado (filho do fotógrafo) é, no mínimo, frustrante. Faltou sal a O sal da terra. Vou tentar explicar por quê.


Todo documentário centrado num personagem (vivo ou morto), se não quiser ser um mero registro chapa-branca ou uma hagiografia, deve buscar, a meu ver, contradições, tensões, pontos de atrito nas relações desse personagem com o mundo que o cerca e, talvez, consigo mesmo. Se o biografado for autor de uma obra importante, será interessante discutir essa obra em alguma medida: sua ambição, sua linguagem, sua recepção, sua dimensão ética.


Imagem de O sal da terra
Quando se fala seriamente sobre Sebastião Salgado, dois pontos de controvérsia sobressaem de modo agudo: sua apurada técnica no uso do preto e branco, que leva a uma acentuada estetização da imagem; e a absorção perversa desses registros da desgraça humana (fome, doença, exílio, desastres naturais) pelo mercado de bens sofisticados – a miséria do mundo transformada em luxuosos livros de arte, em coffee table books para adornar mesas e estantes dos abastados.

Ética e estética

São questões interligadas, claro, e ambas situadas na confluência entre a ética e a estética. Não se trata aqui de “atacar” ou “culpar” Sebastião Salgado, mas apenas de lamentar a absoluta ausência dessas preocupações no documentário de Wenders e Ribeiro Salgado. Contagiado pelo tom um tanto new age de seu epílogo – a louvabilíssima iniciativa do fotógrafo de reflorestar e transformar em parque público as terras de sua família, em Minas –, o filme parece surfar despreocupadamente sobre os traumas morais, políticos e profissionais que certamente compõem a trajetória de um artista como o biografado.

Apenas a título de contraste incômodo (o sal que falta a O sal da terra), cabe lembrar, por exemplo, o destino do fotógrafo sul-africano Kevin Carter (1960-94), que ganhou o prêmio Pulitzer por uma imagem que correu o mundo: um abutre rondando uma criança famélica no Sudão. Semanas depois de conquistar repentina fama e fortuna, Carter sucumbiu a seus fantasmas e se suicidou aos 34 anos.


A famosa fotografia do abutre rondando uma criança, de Kevin Carter
Quanto às técnicas de Sebastião Salgado, até mesmo um documentário mais modesto, como Revelando Sebastião Salgado (2012), de Betse de Paula, traz mais informações. (Ele diz, entre outras coisas, que seu pendor pela contraluz veio principalmente de sua necessidade de proteger do sol a pele muito branca.)


O sal da terra, a rigor, poderia ser assinado pelo próprio Sebastião Salgado. Pois não se vê nele nenhuma marca autoral de Wim Wenders, e menos ainda de Juliano Ribeiro Salgado. Os diretores apenas seguram a câmera para o fotógrafo construir diante dela sua autoimagem edificante. Repito: não se trata de querer atacar essa imagem, mas de problematizá-la, aprofundá-la, enriquecê-la.

Homens e ursos

O crítico Carlos Alberto Mattos comentou acertadamente que o tema de O sal da terra conviria mais a Werner Herzog do que a seu colega Wim Wenders – e essa ideia vem à mente na passagem em que Salgado e seu filho veem-se às voltas com um urso, que remete inevitavelmente ao Homem-urso (2005) de Herzog.

Lembrei mais ainda de Herzog no momento em que Salgado exibe e comenta as fotos que fez de um gorila supostamente encantado e envaidecido ao ver-se refletido na lente da câmera. Há ali uma atribuição de características humanas ao animal, uma projeção antropomórfica que seria no mínimo posta sob desconfiança por Herzog. Para este, à diferença de Wenders, a natureza não é mãe, é madrasta, e o animal selvagem não vê o homem como “amigo”, mas como um estranho estorvo – e possível ameaça.

Wenders, aqui, empresta pouco mais que sua voz (em uma parte da locução) e sua grife a essa autoconstrução de Salgado como um artista-ecologista iluminado e em harmonia com o mundo. Para quem não exige muito, é o que basta: um documentário agradável de ver, que não causa demasiada inquietação e que termina com uma nota otimista – sem falar, claro, das imagens impressionantes, acachapantes, extraordinárias, produzidas pelo fotógrafo ao redor do planeta. O filme ganhou prêmios, foi indicado ao Oscar, tudo meio por inércia: afinal, o binômio Salgado + Wenders é meio caminho andado. Faltou a outra metade.


José Geraldo Couto

José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.

Fonte: Blog do IMS

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