abril 21, 2015

"O dia em que Don Helio chegou", por Henrique Wagner (Gazeta dos Búzios)

PICICA: "Conheci Hélio Pólvora pessoalmente em 2011. Sua antologia de contos pela Global Editora havia acabado de ser lançada, consagrando o contista baiano, tantas vezes consagrado, uma vez que são famosas as antologias da Global por contemplarem apenas os grandes, sem nepotismo, correntes religiosas, partidos de futebol.
         Nossa primeira conversa face to face se deu num dos pavilhões da Bienal de Livros da Bahia, evento acontecido em meados de 2013. Antes disso, nos falávamos ocasionalmente por e-mails, e fomos apresentados algumas vezes, sem que a amizade engatasse, sabe-se lá por quê – a vida é sequelada e comete diversos equívocos comportamentais, sobretudo de natureza mnemônica.
         Mas quando engatou, a amizade foi intensa. Hélio sentia imensa falta de interlocutores na Bahia de hoje, e ficou espantado (palavra dele) com a gama de interesses intelectuais e conhecimento, em mim, que iam da literatura à astronomia, passando por teatro, filosofia, psicanálise, ciência política, cinema, etc. De seu entusiasmo quanto a manter contato comigo, penso que viu em mim o interlocutor que lhe faltava e que, numa atitude extrema de otimismo, ainda esperava encontrar. Passamos a nos encontrar às sextas-feiras, em geral em seu apartamento no Corredor da Vitória. Trocamos (por empréstimo) filmes e livros, e eventualmente revistas. Íamos, a meu convite, a concertos no Teatro Castro Alves, conversávamos muito no caminho de volta a seu apartamento e ainda na prorrogação, por e-mails. E muito falamos sobre uma grande paixão que tínhamos em comum: Carson McCullers.

O DIA EM QUE DON HELIO CHEGOU
Henrique Wagner
      
   1 – Conheci Hélio Pólvora pessoalmente em 2011. Sua antologia de contos pela Global Editora havia acabado de ser lançada, consagrando o contista baiano, tantas vezes consagrado, uma vez que são famosas as antologias da Global por contemplarem apenas os grandes, sem nepotismo, correntes religiosas, partidos de futebol.

         Nossa primeira conversa face to face se deu num dos pavilhões da Bienal de Livros da Bahia, evento acontecido em meados de 2013. Antes disso, nos falávamos ocasionalmente por e-mails, e fomos apresentados algumas vezes, sem que a amizade engatasse, sabe-se lá por quê – a vida é sequelada e comete diversos equívocos comportamentais, sobretudo de natureza mnemônica.


         Mas quando engatou, a amizade foi intensa. Hélio sentia imensa falta de interlocutores na Bahia de hoje, e ficou espantado (palavra dele) com a gama de interesses intelectuais e conhecimento, em mim, que iam da literatura à astronomia, passando por teatro, filosofia, psicanálise, ciência política, cinema, etc. De seu entusiasmo quanto a manter contato comigo, penso que viu em mim o interlocutor que lhe faltava e que, numa atitude extrema de otimismo, ainda esperava encontrar. Passamos a nos encontrar às sextas-feiras, em geral em seu apartamento no Corredor da Vitória. Trocamos (por empréstimo) filmes e livros, e eventualmente revistas. Íamos, a meu convite, a concertos no Teatro Castro Alves, conversávamos muito no caminho de volta a seu apartamento e ainda na prorrogação, por e-mails. E muito falamos sobre uma grande paixão que tínhamos em comum: Carson McCullers.
         Ele me presenteou com seu segundo romance, “Don Solidón”, e, depois de lido, passei a chamar o amigo de Don Hélio – o protagonista é nitidamente uma personificação do autor, num quase roman a clef – e o amigo, para não ficar por baixo, achou por bem me dar o status de “Sir” ao se referir a mim como um “Sir Henry” que me causara a sensação de pilhéria, bem intencionada – isso é possível –, dado que sou um notório integrante da plebe ignara.


         Àquela época eu já havia lido todos os livros de contos do autor de “Os galos da aurora” – leria os dois romances justamente depois do encontro físico – e me senti completamente à vontade para resenhar a retromencionada antologia da Global Editora. Don Hélio gostou imensamente do texto e estou certo de que a resenha reforçou seu desejo de me decifrar, conhecendo minhas leituras – segundo ele eu era espantosamente “vasto” – e minhas platitudes, que nem só de pão com mortadela vive o homem.


         Como Don Hélio era um grande informante no que diz respeito à cultura brasileira da década de 60 para cá, uma vez que participou ativamente de grandes acontecimentos no país na segunda metade do século XX, e porque estava entre os meus contistas brasileiros prediletos, cedi ao canto da sereia. Mas cedi demais: sem coragem para dizer que não bebia – jamais havia ingerido bebida alcoólica até então –, aceitei as grandes doses de uísque que ele, generoso etílico, me servia à sala de estar. Faz parte do ritual de quem passou três décadas trabalhando nas maiores redações de jornais do país fechar a noite com um bom papo regado a álcool em algum botequim carioca. Ultimamente caseiro e soteropolitano, Don Hélio farreava onde dormia, perto de sua amada e amável esposa, a simpaticíssima Maria, mãe de dois filhos com o escritor grapiuna. Eu morava no 2 de julho e passei a voltar bêbado para casa às sextas-feiras.

         2 – Don Hélio era apaixonado por cinema. Fez crítica de cinema no Jornal do Brasil, à década de 1960. Apresentei-lhe a “Arca Russa”, de Sokurov, e ele gostou tanto que, assim que chegou aos cinemas baianos o “Fausto” do cineasta russo, meu amigo velho comprou ingresso. Viu e reviu e gostou muito. Emprestei a ele um livro com textos do genial crítico de cinema Antonio Moniz Vianna, e ele se refestelou. Deu-me filmes de presente, me emprestou outros tantos e assistiu a filmes que eu deixava em sua portaria. Eu pensava em seus olhos miúdos e buliçosos e voluntariosos – de quando em vez eram azuis – esmiuçando as cenas de algum filme com intricada e engenhosa montagem. Lúcido aos 84 anos, e com extrema habilidade, não deixava passar nada, de um grandiloquente movimento de câmera de Max Ophüls a uma intenção velada do roteirista. Em cinema sua grande paixão era Bergman, logo seguido de John Ford.


         Com a mesma perspicácia consumia os acordes que ouvíamos em concertos no TCA. Saía de casa vestido a rigor, falava baixo e pontuava tudo com observações precisas e elegantes. Gostava das suítes para cello, de Bach – ele ficou encantado com o CD duplo que emprestei a ele contendo a interpretação de Yo-Yo Ma para as seis suítes do compositor alemão –, das sonatas de Beethoven, dos études de Chopin e de certos intérpretes do Leste Europeu. Nós dois adorávamos a tcheca Valentina Lisitsa, e ela veio a Salvador em 2013, para nossa estranha aflição.


Eu havia conseguido os convites meses antes, e Don Hélio contava os dias – certamente as horas, nos momentos finais – a fim de ver aquela a quem ele considerava uma deusa – em todos os sentidos.


         Como todo dia chega, lá estávamos diante das mãos grandes e muito brancas – mais que brancas, pálidas – de Valentina. Don Hélio parecia ter perdido as pálpebras, pois não piscava os olhos e até mesmo projetava o corpo para frente, como a exigir mais de sua constituição física e de seus cinco sentidos. Sentamos à esquerda do palco, a fim de ver as mãos da deusa nórdica – era o que nos ocorria, em se tratando de fetiche – trabalhando, ora delicadas e ternas, ora resolutas, e mesmo violentas. Depois do último bis, lá estava Don Hélio, feito um beatlemaníaco, indo em direção ao camarim da pianista para pegar um autógrafo – fluente em inglês, conversou com Valentina, que vive há alguns anos nos EUA, sobre Rachmaninov e suas mãos imensas, entre outros assuntos, e ganhou autógrafo escrito em português. Passamos um mês falando do concerto, da pianista, do inoportuno marido dela, sem arredar pé do camarim, metido em nossa íntima conversa.

         3 – Don Hélio relia seus autores e livros prediletos: Faulkner, Hemingway, Tchekhov, Rulfo, etc. Dizia não ter mais tempo para aventurar-se com autores novos. Emprestei-lhe o John Banville de “O mar”. Ele ficou tão impressionado que foi diretamente comprar e leu o livro “Os infinitos”, do premiado autor irlandês. Leu ainda, na base do empurrão, Ismail Kadaré, Sándor Márai (causou-lhe grande impressão o romance “As brasas”), Sebald, Richard Yates e outros, e não se arrependeu. Nada, no entanto, que interditasse seu constante interesse pela releitura – releu as novas traduções de Faulkner, publicadas pela Cosac & Naify, revisou velhas traduções suas de Hemingway, notadamente as de histórias protagonizadas por Nick Adams, releu Stevenson.


         Um dia perguntei a Don Hélio qual era o livro de Stevenson de sua predileção. Ele me disse que era “Raptado”, e por motivos pessoais. Afetivos.

         4 – O contista consagrado, vencedor de dois prêmios Nestlé (“Mar de Azov” e “O grito da perdiz”), o ensaísta e crítico respeitado, o tradutor elogiadíssimo (são históricas suas traduções de Faulkner, Penn Warren e Dylan Thomas, dentre outros) não deixava de ler um texto meu sequer. Do que não é capaz uma amizade... Lia e comentava todos os meus textos, publicados em mídia impressa e virtual, e me pedia sugestões disso e daquilo, também dava sugestões. Diante deste escriba, Don Hélio exercitava uma de suas mais louváveis características: a humildade. Não andava se divulgando – nem precisava –, não falava de si mesmo, não fazia propaganda de seus próprios livros – ele achava patética a turma que vivia usando o facebook para falar de si mesma, postando fotos com as capas de todos os livros publicados, como numa espécie de balaio da Barroquinha etc. – e evitava falar em público. Literatura, também para ele – porque sempre foi para mim –, era uma atividade solitária. No máximo, poucos encontros entre poucos amigos, para trocar impressões que logo estimulam a volta ao quarto, num renovado isolamento. Profundo conhecedor do gênero “conto”, não gostava de nada ou quase nada que vinha sendo publicado na Bahia, e sua misantropia era alimentada pela vaidade dos autores sem talento que tanto apareciam, feito modelos da Versace. Don Hélio estava cansado.

         5 – Nossos encontros foram rareando. Ele falava em uma doença que o consumia. Não desejei ser invasivo e segui sem saber o nome da doença, divulgada publicamente quando de sua morte.


         Passava finais de semana em Praia do Forte e Praia de Imbassaí, e sobrevivia heroicamente aos carnavais do centro da cidade.


Cada vez mais recluso – para a sorte do meu fígado –, um dia me mandou um e-mail dizendo que não passaria deste ano. Eu sequer toquei no assunto: não conseguiria. Mandou-me outro e-mail pedindo que indicasse um livreiro para comprar parte da sua biblioteca. Indiquei-lhe Eduardo Sarno, criador e dono do lendário Graúna, não só livreiro: leitor, pesquisador, colecionador. Poucos dias depois, Don Hélio me manda um e-mail em que pede que eu passe em seu apartamento para pegar “minhas coisas”. Tudo que eu havia lhe emprestado e de que eu nem tinha mais lembrança.


         O sinal de alerta acendeu e eu marquei o encontro. Dessa vez, no entanto, o dia chegou antes – não sei se até hoje se para ele ou para mim – e os noticiosos de todo o Brasil me falavam do câncer no pulmão e da última idade do homem que, em três anos, tornou-me pelo menos uma década mais maduro.


         Sentindo-me um homem, tomei um porre como jamais havia tomado no Corredor da Vitória, um porre num boteco do bairro 2 de julho.


         Aparentemente sozinho. 


Fonte: Gazeta dos Búzios

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