abril 29, 2015

Símbolos, linguagem e poder: análise da coesão forjada a partir de uma perspectiva anarquista (e abolicionista) – Por Guilherme Moreira Pires (Empório do Direito)

PICICA: "Pensem no filme “A Onda” (2008), em que um professor promove um experimento tendente a ativar mecanismos do fascismo, de modo que, rapidamente, estudantes começam a exercer o poder da unidade forjada, alimentada com simbologias arbitrárias e excludentes do alheio à dita unidade, apelando para violências simbólicas e reais pela manutenção do conteúdo resguardado, incorporado e interiorizado como referencial semântico na (re)produção de sentidos.

Os relatos dos estudantes demonstravam o vislumbre de algo incrível, extraordinário; perpetravam os envolvidos uma explosão de sentidos; elementos identificadores constitutivos, vínculos poderosos, propósitos estabelecidos, união, coesão, interação, proteção, gozo, pertencimento, coragem, confiança, amor ao poder exercido, amor à unidade, amor à causa e aos novos significados sacrificais do conteúdo alheio à unidade. “A Onda” varreria os elementos alheios que lhe negassem e ameaçassem, sustentavam (praticamente) todos; em outras palavras, o que não podia ser monopolizado merecia ser destruído.

Nesse prisma, quase todos os alunos cedem gradativamente, adentrando-se mais e mais no interior dos núcleos de poder instituídos, irradiando e influindo nas relações e espaços, em todos os níveis e âmbitos; os mais suscetíveis mostravam-se fascinados e encantados com tudo isso, engolindo qualquer discurso emanado no seio da unidade, especialmente por lideranças carismáticas que inspirem coesão e ativem esse vínculo subjetivo de identificação, respeito, confiança, ressonância e poder.

No início do filme, em uma festa, antes de encontrarem todos esses poderosos elementos energizadores de desejos, gozos e propósitos, estudantes conversavam sobre não existir nada que “valesse a pena”, nenhum objetivo para unir; referiam-se a uma geração perdida, a uma crise de sentidos, apresentavam a famosa insatisfação-contra-tudo, vazia, rasteira, carente de conteúdo substancial. Portas abertas para os micro-fascismos, que encontram nesse vazio de sentidos o território perfeito para a explosão de sentidos precursores de barbáries."

Símbolos, linguagem e poder: análise da coesão forjada a partir de uma perspectiva anarquista (e abolicionista) – Por Guilherme Moreira Pires


Por Guilherme Moreira Pires – 28/04/2015

Mostra-se ancestral a preocupação em oferecer respostas a conflitos;  respostas que nem sempre respondem, e não raro são apenas decisões arbitrárias retoricamente intituladas “soluções” pelos opera-dores, maneja-dores e produtores das respostas oficiais, não sendo os “atores jurídicos” exceção.

O Cárcere, massificado e planetarizado, tortura institucionalizada enquanto poderosa técnica de controle social (que tem data e história), nos remete a uma dessas bisonhas produções, mas que não deve exaurir nossas reflexões.

Todos os arquétipos de Estado são alimentados pela noção de coesão, pela ideia de que a proteção de um determinado conteúdo (nunca tudo ou todos), através de um aparato organizado, suprimirá os elementos alheios à unidade, os que não se encaixam em seu caldo estrutural-estruturante, indesejáveis não vislumbrados enquanto máximo referencial sistêmico de proteção, mas peças defeituosas que não se encaixam muito bem no que verdadeiramente se pretende salvaguardar.

Nenhum Estado no mundo protege a tudo e a todos, de modo que, teoricamente, sem dúvidas emergiriam oposições radicais desencadeadas pela crescente insatisfação derivada do conteúdo excluído e (resquícios do) destruído.

Todo Estado gira em torno da ideia de segurança, mas não a segurança de todos, sempre de um conteúdo que não abrange a totalidade dos elementos da complexa realidade; pressupõe o sacrifício de algo, sendo necessário analisar, em cada arquétipo concreto ou hipotético, que “algo” é esse.
Não se sustenta tal projeto sem enorme poder; não sem a sistêmica contenção e destruição de qualquer fagulha que ameace as lógicas principais, com seus conjuntos de tendências e denominadores comuns.

Descritivamente, existem formas de apaziguar interações problemáticas nesse caldeirão sistêmico, meios de anular, conter ou mesmo destroçar relações que representem fissuras às suas mecânicas e operacionalidades, o que abrange um amplo leque de estratégias de ação.

Nem sempre um processo visivelmente destrutivo e espúrio de contenção/destruição, sendo certo que, muitas vezes, o maior controle é sutil, invisível, detentor de roupagens legitimantes (gloriosas e honráveis), inclusive no ensino (nada libertário).

A instituição de símbolos carregados de significações, aptos a ativar um  imaginário forjado, constitui uma dessas estratégias de ação: instituir elementos identificadores aptos a artificialmente promover uma coesão, uma percepção, um sentimento de pertencimento, o estabelecer de um vínculo incutido em nossos pensamentos.

Pensem no filme “A Onda” (2008), em que um professor promove um experimento tendente a ativar mecanismos do fascismo, de modo que, rapidamente, estudantes começam a exercer o poder da unidade forjada, alimentada com simbologias arbitrárias e excludentes do alheio à dita unidade, apelando para violências simbólicas e reais pela manutenção do conteúdo resguardado, incorporado e interiorizado como referencial semântico na (re)produção de sentidos.

Os relatos dos estudantes demonstravam o vislumbre de algo incrível, extraordinário; perpetravam os envolvidos uma explosão de sentidos; elementos identificadores constitutivos, vínculos poderosos, propósitos estabelecidos, união, coesão, interação, proteção, gozo, pertencimento, coragem, confiança, amor ao poder exercido, amor à unidade, amor à causa e aos novos significados sacrificais do conteúdo alheio à unidade. “A Onda” varreria os elementos alheios que lhe negassem e ameaçassem, sustentavam (praticamente) todos; em outras palavras, o que não podia ser monopolizado merecia ser destruído.

Nesse prisma, quase todos os alunos cedem gradativamente, adentrando-se mais e mais no interior dos núcleos de poder instituídos, irradiando e influindo nas relações e espaços, em todos os níveis e âmbitos; os mais suscetíveis mostravam-se fascinados e encantados com tudo isso, engolindo qualquer discurso emanado no seio da unidade, especialmente por lideranças carismáticas que inspirem coesão e ativem esse vínculo subjetivo de identificação, respeito, confiança, ressonância e poder.

No início do filme, em uma festa, antes de encontrarem todos esses poderosos elementos energizadores de desejos, gozos e propósitos, estudantes conversavam sobre não existir nada que “valesse a pena”, nenhum objetivo para unir; referiam-se a uma geração perdida, a uma crise de sentidos, apresentavam a famosa insatisfação-contra-tudo, vazia, rasteira, carente de conteúdo substancial. Portas abertas para os micro-fascismos, que encontram nesse vazio de sentidos o território perfeito para a explosão de sentidos precursores de barbáries.

Notem que, historicamente, as aglomerações precursoras de barbáries compartilham elos instituídos, identificam-se com um conteúdo arbitrário incutido e o (re)produzem considerando-o como suprassumo dos sentidos; existe um gozo nesse caráter transcendente promovedor de massacres do outro, do que não está representado, dos que “não estão conosco” nessa produção de sentidos, dos que são “opositores”, dos que são desviantes adotando-se o referencial do conteúdo sustentado com status de verdade.

Podem ser estátuas, títulos, honrarias, bandeiras, códigos, amuletos, medalhas, leis, cumprimentos, saudações, trajes, balanças, espadas, crucifixos, uniformes, hinos, gestos, rituais, livros, qualquer recipiente (macro ou micro) apto a ativar a sensação de pertencimento em algo, especialmente dos que não pertencem de fato à luz do referencial estatal, um rol de sub-cidadãos (ou como desejem chamar).

“Vivemos em sociedades burocráticas, porque nelas se encontram afirmadas as texturas de uma disciplina simbólica que fundamenta os jogos políticos da dominação. Seria ingênuo demais acreditar que a burocracia está formada exclusivamente por formas que te carimbam se te descuidas, até as pudendas. Essas sociedades burocráticas afirmam-se através de certas supressões simbólicas, de um destino finalmente petrificado para a intertextualidade. A transformação da intertextualidade de uma atmosfera pétrea de significações serve de suporte para os efeitos políticos dos complexos burocráticos que tecem nosso social. As sociedades burocráticas dependem de um totalitarismo que não está fundado exclusivamente na unidade burocrática da tomada de decisões. Ela promove-se principalmente pelo apelo a uma certa unidade do campo simbólico (isto é, a ideologia definida a partir da noção de intertextualidade). Divisão do social e dissimulação desse divisão em nome de múltiplas unidades que por sua vez resultam eufemisticamente unificadas na forma de uma história. Simular a unidade é o segredo da dominação.” A ciência Jurídica e seus dois maridos (WARAT, Luis Alberto, 1985 p. 60).

Lembre-se que símbolo é fogo forjador de verdades e sentidos por excelência, (de)formando, nutrindo, ativando e conectando palavras e pensamentos; ademais, é a cerâmica simbólica edificadora das Excelências, enquanto pessoas, enquanto instituições, enquanto significações, enquanto discursos, enquanto ideologias, enquanto (des)controle, enquanto poder.

Aqui consiste uma das sacadas: observadas determinadas condições de possibilidade, os símbolos podem ser lidos como um termômetro do esforço necessário para se (arbitrariamente) manter uma determinada coesão (que jamais poderia se sustentar sem manipulação, tamanhas suas incongruências e contradições, violências simbólicas, recusas e supressões existenciais).

Em outras palavras, um termômetro de poder, que (não por acaso) praticamente explode quando incumbido de aferir espaços extremamente arbitrários, repletos de símbolos, como tribunais e templos de adoração (quase um pleonasmo); da arquitetura aos mínimos detalhes: sempre existe algo, eis que precisa existir algo para validar tamanha mentira, ou melhor, para se cobrir o conteúdo sacrificado, não incorporado ou mesmo ejetado.

Também, não por acaso, mostra-se comum que estruturas de pensamento, ideologias e edificações profundamente arbitrárias tenham belas roupagens legitimadoras, simulacros retóricos sobremaneira atraentes, direta ou indiretamente apostando em símbolos como justiça e liberdade, manuseando suas indignações seletivas para seus próprios interesses mesquinhos.

É sistemicamente compreensível que tantos grupos fascistas instrumentalizem essas palavras para seletivamente atacarem seus alvos e ao mesmo tempo se protegerem: tal roupagem opera simultaneamente enquanto armadura e convite permissivo ao ataque; confere um discurso de auto-legitimação defensivo (e consequentemente ofensivo), na medida em que cria a ficção de legitimidade instituída inclusive para destruir.

Quanto menor a lógica apresentada em cada parte do todo, maior a necessidade de se instituir tantos símbolos, elementos aptos a exercer, injetar, energizar e ativar poderes (re)produtores de saberes,  e, claro, forjadores de sentidos; o poder do discurso raramente se desvencilha do discurso do poder, não sendo essa a tendência, mas ínfima possibilidade de resistência sistêmica, refém de lindes discursivos e presa em uma determinada linguagem.

No escrito “Toda prisão no Brasil é ilegal. Porque se a prisão que está na lei não existe, a que aplicamos na realidade é ilegal”, Luis Carlos Valois (2013a) ilustra:

“Eu sou o juiz da vara de execução e acho que toda prisão é ilegal. Mas se eu chego em minha comarca e solto todos os presos quem vai ser preso sou eu. Teve um juiz em Minas Gerais que soltou todos os presos, porque a prisão estava lotada e era inviável, isso tudo comprovado por perícia; ele foi afastado do cargo. Eu sou juiz, mas tenho filho para criar, não posso perder meu emprego. Sei que a prisão onde mantenho os condenados é ilegal, mas o sistema não aceita que eu diga ou aja de acordo com o meu pensamento.

Mesmo tentativas internas de resistência e discursos libertários são limitados quando deparamo-nos com o discurso e as engrenagens do poder; sendo certo que não podemos esperar suicídio do poder, a tendência é outra; além de se perpetuar, o poder alcança consciências, moldando-as e (de)formando-as, construindo sociedades adestradas e fluentes nessa linguagem.

Toda linguagem estabelece um corte de sentidos, fatiando e (de)limitando, moldando e ativando nosso pensamento; estabelecendo (seus) limites.

É também pelo poder que se validam discursos; nosso fascínio por símbolos possibilita não só o emergir e validação de deuses com pés de barro (leia-se discursos rasteiros e inconsistentes), mas traz em si a resposta para suas limitações e contradições inclusive semânticas: mais símbolos.

Uma lógica circular (in)falível (basta elegermos um referencial), que persiste operando graças ao fascínio pelo símbolo, que, em verdade, é integrante do fascínio pelo poder.

Nesse sentido, quando os símbolos notoriamente fracassam, quando não mais se acredita neles, quando não mais preenchem os objetivos desejados, injetam-se mais símbolos para manter a coesão fabricada, e as pessoas de fato cobram mais símbolos, foram adestradas nessa linguagem e pensam a partir dela.

E assim seguimos, cegamente depositando nossas esperanças no que deveria ser interpretado não como máxima libertação, mas dominação (analisada num determinado contexto, nunca dissociada da realidade).

(Lembram-se das prisões? Bem, continuemos.)

Observe-se que a própria lei fora acima elencada como (e enquanto) símbolo, quer isto dizer, ela faz parte dessa demanda, desse imaginário, dessa coesão artificialmente fabricada, manipulada, incutida. Faz parte da dominação.

Especialmente no Direito Penal, a fé cega no simbolismo da lei constitui (e assegura) o enfraquecimento da oposição radical ao sistema prisional.

 Curiosamente, Luis Carlos Valois  (2013b) também escreveu sobre a lei como símbolo em “Por que tanta lei?”, pontuando:

Quanto mais o Estado deixa de fazer de fato aquilo que realmente é sua obrigação como instituição ideologicamente forjada para o bem do povo, mais é necessário que haja símbolos com os quais possamos nos apegar. Há lei disso e lei daquilo, lei para lá e lei para cá, sonha-se com a lei de amanhã e com o cumprimento da lei de hoje. A lei se tornou o verdadeiro deus do Estado laico. A lei resolve tudo e não resolve nada, porque a vida real continua como ela é apesar das leis aos milhares todos os dias promulgadas pelas diversas câmaras de vereadores, de deputados etc.  Na segurança pública é pior, porque basta uma lei para que o indivíduo ache que o Estado, com isso, está zelando pela sua segurança. […] A fé incondicional na lei é a fé na nossa própria apatia, na nossa imobilidade política. E é isso que o poder político quer, já que é natural de todo poder o desejo de se perpetuar e, para tanto, já basta a lei e o nada que ela significa, por ser simplesmente um papel.”

Chamemos de armadilha neokantiana, panpenalismo, direito penal disruptivo ou qualquer outro nome pomposo, fato é que nos afundamos cada vez mais em símbolos; e, quando percebemos o fracasso de nossas apostas ingênuas, fascinados por símbolos, clamamos por mais símbolos, que nos são parcialmente concedidos retoricamente, de sorte a apaziguar oposições enérgicas e radicais.

Como escrevi no livro “Brasil em Crise” (2015), é bonito afirmar que não são concessões, mas conquistas (extremamente árduas e não raro sangrentas).

Isso é verdadeiro a depender do referencial: é dizer, de fato, se pensarmos em muitos trabalhadores, em regra nada lhes foi dado, fora necessário “arrancar” essas conquistas de um conjunto de estruturas direcionadas precisamente à negação de direitos; é verdadeiro esse campo de conquistas mediante lutas históricas e não raro sangrentas, essa perspectiva é possível e coerente; de uma conquista que colide com mecânicas de funcionamento e operacionalidades tendentes a anulá-las.

Seu grande defeito é ignorar que, adotando como referencial o Estado e sistemas que pretendem se perpetuar para manter suas operacionalidades (e quem sabe banquetes), se trata mais de uma concessão, para não ruir o que se tem, do que efetivamente qualquer outra coisa. Entregar um anel para preservar a mão, assim dissolvendo a oposição radical e fortalecendo perspectivas reformistas incapazes de transcender as regras estabelecidas em cada campo de jogo, embate cujas disputas interpretativas jamais cessam as colisões no tecer das relações simbólicas de poder; fluem energizando toda a dimensão política da sociedade.

Isso dito, num Estado como o nosso, em que o não-funcionamento do Direito Penal enquanto igualitário e justo não é uma falha, é o próprio funcionamento do arquétipo; o não-funcionamento é precisamente o funcionamento; o sistema penal é fatalmente influenciado pelo conteúdo iluminado, daí que a seletividade é um dado da realidade. O Direito – e especialmente o Direito Penal -, passa muito longe de uma técnica neutra e ingênua, inclusive porque a mecânica de funcionamento do Estado tampouco é neutra e ingênua, como sua linguagem, o que é refletido na operacionalidade real do sistema penal.

É bom lembrar que, por mais discrepantes que alguns Estados sejam, algumas peculiaridades permanecem idênticas, inclusive pelo enorme poder emanado por essa entidade retórica, que seqüestra o conflito e mesmo o tempo, substituindo a vítima real, reduzido a dado político-sacrificial, e massacrando seu suposto ofensor. Algumas implicações e peculiaridades são vislumbradas na realidade de praticamente qualquer Estado.

Assim, igualmente se mostra um denominador comum  instituir símbolos e elementos identificadores aptos a conferir uma atmosfera de coerência e mesmo Justiça, especialmente nos cenários mais degradantes, que comumente carecem de maior manipulação para serem mantidos dentro do campo comunicativo de controle sistêmico, sem oposições radicais do conteúdo não abrangido nos projetos e arquétipos de racionalidade, nas estruturas de pensamento fundantes, estruturais e estruturantes, nas ideologias-chave para se entender a formação da realidade política.

E, quanto mais arbitrário, injusto e brutalizante se mostra um ambiente, maior essa necessidade de cobri-lo com tantos elementos validadores de poder e ativadores de coesão, de racionalidade e sentido; cobri-lo com tudo isso para que não se possa descobri-lo como o é: arbitrário, injusto e brutalizante!

No documentário “O Guia Pervertido da Ideologia”, Slavoj Žižek (2012) desenha como o conteúdo ideológico não é simplesmente (im)posto destrutivamente de modo cristalino, a obscuridade e a sutileza são bem-vindos nas estratégias de ação para se incutir algo, inclusive instrumentalizando o gozo e o fascínio por esse algo; a ideologia é também uma relação com o mundo, sendo possível incorporarmos elementos arbitrários que nos deixam aparentemente felizes, ao menos num primeiro nível.

Žižek também questiona o conteúdo não abrangido, a relação do que é verdadeiramente protegido e do que não é, indagando se quando falamos “todos”, realmente incluímos todos.

Quando um Estado diz que protege a todos, quando um texto ideológico se coloca a favor de toda a humanidade, quando se brada pela liberdade e felicidade para todos, devemos sempre nos perguntar: esse “todos” significa realmente “todos”? Ou alguém fica de fora? O que e quem fica de fora, restando excluído, não incorporado ou mesmo ejetado? Existe espaço para todas as “peças” (referencial do Estado, que fatalmente incorpora essa palavra para se auto-preservar). Por quê?

Diga-se de passagem, e desculpem o comentário: mas já que o Estado nutre um discurso paternalista para se legitimar – sob a estrela de proteger os súditos-filhos nas asas do soberano-pai – por que raios não os protege verdadeiramente ao invés de pretender encarcerá-los e exterminá-los!? Posso responder com sinceridade? Querem ouvir com sinceridade? Bem, retornemos à instrumentalização dos símbolos para se manter a coesão.

Quanto mais ilógico e desprovido de sentido, maior a necessidade de se instituir tantos símbolos, de se apelar para os discursos de autoridade em nome de Deus, do bom, do justo, da verdade, da liberdade, da segurança de “todos”; maior a necessidade de se manusear e exercer tanto poder, sempre instrumentalizando um fascínio energizador de mitos e desejos.

Em “Humanizar as penas. Eles não sabem o que fazem?” de Alexandre Morais da Rosa (2015), mostra-se possível realizar um diálogo com muito do que fora abordado até aqui, senão vejamos:

“Paradoxalmente, mas não sem razão, historicamente o homem foi colocado no centro do discurso. As justificações do poder, então religiosas, foram substituídas por outros mitos: legitimidade, poder constituinte, contrato social, pai da horda. […] Neste campo é o poder que precisa ser trazido para o centro da discussão, principalmente a maneira pela qual a grande parcela dos atores sociais encontra-se obliteradas de qualquer dimensão crítica de seus atos, embalados ainda pelo imperativo categórico Kantiano, acreditando, ilusoriamente, que a lei deve ser cumprida, sem reflexão crítica. Hannah Arendt demonstrou, com Eichmann, os perigos de se cumprir alienadamente as leis, porque existe um limite para além do jurídico, o qual tenta cercar, mas não consegue, que é o poder, agravado em tempos Neoliberais, em que o Mercado não consegue dar conta da estrutura.[…]”

Inclusive, especialmente o início desse fragmento rende um ótimo diálogo com (também) o início do escrito de Luis Carlos Valois  (2013b):

“Desde que o mundo é mundo o ser humano tem precisado de símbolos para depositar suas angústias e medos. Passando dos Totens aos símbolos religiosos da idade média, os objetos têm sido os repositórios de algumas de nossas esperanças. Com a divisão do interesse da sociedade entre a Igreja e o Estado, os símbolos se dividiram, ficando aquela com os crucifixos e imagens de santos, e este com as figuras da balança e da justiça, mas principalmente com o simbolismo da lei.”

É passada a hora de (re)pensarmos o papel dos símbolos, do visível e do invisível, para que(m) servem; que efeitos (não) provocam na realidade; limitações, usos e desusos, para, quem sabe, cessarmos de apostar em armas para nossa segurança.

Para que possamos desvelar e dilacerar as mentiras que nos regem,
Destronar discursos alçados à condição de deuses,
Estancarmos nosso imaginário punitivo,
Alimentarmos e energizarmos nossa imaginação não punitiva,
Não refém de símbolos, não acorrentada por leis,
Para que possamos, então, expandir nossa linguagem.
Para que possamos expandir nossos mundos!!



Notas e Referências:

[1] ROSA, Alexandre Morais da.  Humanizar as penas. Eles não sabem o que fazem? Empório do Direito, 2015. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/humanizar-as-penas-eles-nao-sabem-o-que-fazem-por-alexandre-morais-da-rosa/

[2] VALOIS, Luis Carlos. Toda prisão no Brasil é ilegal. Porque se a prisão que está na lei não existe, a que aplicamos na realidade é ilegal. Causa Operária, 2013. Disponível em: http://www.pco.org.br/nacional/toda-prisao-no-brasil-e-ilegal-porque-se-a-prisao-que-esta-na-lei-nao-existe-a-que-aplicamos-na-realidade-e-ilegal-/epbz,y.html “

[3] VALOIS, Luis Carlos. Por que tanta lei? Causa Operária, 2013. Disponível em: http://www.pco.org.br/nacional/por-que-tanta-lei/aiib,i.html

[4] WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Faculdade Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985.

[5] ŽIŽEK, Slavoj. O Guia Pervertido da Ideologia, Documentário, 2012.

[6] FILME – A ONDA, 2008.


GUILHERME MOREIRA

Guilherme Moreira Pires é Advogado, doutorando em Direito Penal. Abolicionista e anarquista.  Autor dos livros: “Desconstrutivismo Penal: uma análise crítica da expansão punitiva e dos mutantes rumos do direito penal” (2013); “O Estado e seus inimigos: Multiplicidade e alteridade em chamas” (2014) e “Os amigos do Poder: ensaios sobre o Estado e o Delito a partir da Filosofia da Linguagem”(2014). Grupo Abolicionismo Penal – América Latina – https://www.facebook.com/groups/ 673508846078451/?fref=ts   


Imagem Ilustrativa do Post: Ritual // Foto de: Paul Stevenson // Sem alterações

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