PICICA: "Pensem no filme “A Onda” (2008), em que
um professor promove um experimento tendente a ativar mecanismos do
fascismo, de modo que, rapidamente, estudantes começam a exercer o poder
da unidade forjada, alimentada com simbologias arbitrárias e
excludentes do alheio à dita unidade, apelando para violências
simbólicas e reais pela manutenção do conteúdo resguardado, incorporado e
interiorizado como referencial semântico na (re)produção de sentidos.
Os relatos dos estudantes demonstravam o
vislumbre de algo incrível, extraordinário; perpetravam os envolvidos
uma explosão de sentidos; elementos identificadores constitutivos,
vínculos poderosos, propósitos estabelecidos, união, coesão, interação,
proteção, gozo, pertencimento, coragem, confiança, amor ao poder
exercido, amor à unidade, amor à causa e aos novos significados
sacrificais do conteúdo alheio à unidade. “A Onda” varreria os elementos
alheios que lhe negassem e ameaçassem, sustentavam (praticamente)
todos; em outras palavras, o que não podia ser monopolizado merecia ser
destruído.
Nesse prisma, quase todos os alunos
cedem gradativamente, adentrando-se mais e mais no interior dos núcleos
de poder instituídos, irradiando e influindo nas relações e espaços, em
todos os níveis e âmbitos; os mais suscetíveis mostravam-se fascinados e
encantados com tudo isso, engolindo qualquer discurso emanado no seio
da unidade, especialmente por lideranças carismáticas que inspirem
coesão e ativem esse vínculo subjetivo de identificação, respeito,
confiança, ressonância e poder.
No início do filme, em uma festa, antes
de encontrarem todos esses poderosos elementos energizadores de desejos,
gozos e propósitos, estudantes conversavam sobre não existir nada que
“valesse a pena”, nenhum objetivo para unir; referiam-se a uma geração
perdida, a uma crise de sentidos, apresentavam a famosa
insatisfação-contra-tudo, vazia, rasteira, carente de conteúdo
substancial. Portas abertas para os micro-fascismos, que encontram nesse
vazio de sentidos o território perfeito para a explosão de sentidos
precursores de barbáries."
Símbolos, linguagem e poder: análise da coesão forjada a partir de uma perspectiva anarquista (e abolicionista) – Por Guilherme Moreira Pires
Por Guilherme Moreira Pires – 28/04/2015
Mostra-se ancestral a preocupação em
oferecer respostas a conflitos; respostas que nem sempre respondem, e
não raro são apenas decisões arbitrárias retoricamente intituladas
“soluções” pelos opera-dores, maneja-dores e produtores das respostas
oficiais, não sendo os “atores jurídicos” exceção.
O Cárcere, massificado e planetarizado,
tortura institucionalizada enquanto poderosa técnica de controle social
(que tem data e história), nos remete a uma dessas bisonhas produções,
mas que não deve exaurir nossas reflexões.
Todos os arquétipos de Estado são
alimentados pela noção de coesão, pela ideia de que a proteção de um
determinado conteúdo (nunca tudo ou todos), através de um aparato
organizado, suprimirá os elementos alheios à unidade, os que não se
encaixam em seu caldo estrutural-estruturante, indesejáveis não
vislumbrados enquanto máximo referencial sistêmico de proteção, mas
peças defeituosas que não se encaixam muito bem no que verdadeiramente
se pretende salvaguardar.
Nenhum Estado no mundo protege a tudo e a
todos, de modo que, teoricamente, sem dúvidas emergiriam oposições
radicais desencadeadas pela crescente insatisfação derivada do conteúdo
excluído e (resquícios do) destruído.
Todo Estado gira em torno da ideia de
segurança, mas não a segurança de todos, sempre de um conteúdo que não
abrange a totalidade dos elementos da complexa realidade; pressupõe o
sacrifício de algo, sendo necessário analisar, em cada arquétipo
concreto ou hipotético, que “algo” é esse.
Não se sustenta tal projeto sem enorme
poder; não sem a sistêmica contenção e destruição de qualquer fagulha
que ameace as lógicas principais, com seus conjuntos de tendências e
denominadores comuns.
Descritivamente, existem formas de
apaziguar interações problemáticas nesse caldeirão sistêmico, meios de
anular, conter ou mesmo destroçar relações que representem fissuras às
suas mecânicas e operacionalidades, o que abrange um amplo leque de
estratégias de ação.
Nem sempre um processo visivelmente
destrutivo e espúrio de contenção/destruição, sendo certo que, muitas
vezes, o maior controle é sutil, invisível, detentor de roupagens
legitimantes (gloriosas e honráveis), inclusive no ensino (nada
libertário).
A instituição de símbolos carregados de
significações, aptos a ativar um imaginário forjado, constitui uma
dessas estratégias de ação: instituir elementos identificadores aptos a
artificialmente promover uma coesão, uma percepção, um sentimento de
pertencimento, o estabelecer de um vínculo incutido em nossos
pensamentos.
Pensem no filme “A Onda” (2008), em que
um professor promove um experimento tendente a ativar mecanismos do
fascismo, de modo que, rapidamente, estudantes começam a exercer o poder
da unidade forjada, alimentada com simbologias arbitrárias e
excludentes do alheio à dita unidade, apelando para violências
simbólicas e reais pela manutenção do conteúdo resguardado, incorporado e
interiorizado como referencial semântico na (re)produção de sentidos.
Os relatos dos estudantes demonstravam o
vislumbre de algo incrível, extraordinário; perpetravam os envolvidos
uma explosão de sentidos; elementos identificadores constitutivos,
vínculos poderosos, propósitos estabelecidos, união, coesão, interação,
proteção, gozo, pertencimento, coragem, confiança, amor ao poder
exercido, amor à unidade, amor à causa e aos novos significados
sacrificais do conteúdo alheio à unidade. “A Onda” varreria os elementos
alheios que lhe negassem e ameaçassem, sustentavam (praticamente)
todos; em outras palavras, o que não podia ser monopolizado merecia ser
destruído.
Nesse prisma, quase todos os alunos
cedem gradativamente, adentrando-se mais e mais no interior dos núcleos
de poder instituídos, irradiando e influindo nas relações e espaços, em
todos os níveis e âmbitos; os mais suscetíveis mostravam-se fascinados e
encantados com tudo isso, engolindo qualquer discurso emanado no seio
da unidade, especialmente por lideranças carismáticas que inspirem
coesão e ativem esse vínculo subjetivo de identificação, respeito,
confiança, ressonância e poder.
No início do filme, em uma festa, antes
de encontrarem todos esses poderosos elementos energizadores de desejos,
gozos e propósitos, estudantes conversavam sobre não existir nada que
“valesse a pena”, nenhum objetivo para unir; referiam-se a uma geração
perdida, a uma crise de sentidos, apresentavam a famosa
insatisfação-contra-tudo, vazia, rasteira, carente de conteúdo
substancial. Portas abertas para os micro-fascismos, que encontram nesse
vazio de sentidos o território perfeito para a explosão de sentidos
precursores de barbáries.
Notem que, historicamente, as
aglomerações precursoras de barbáries compartilham elos instituídos,
identificam-se com um conteúdo arbitrário incutido e o (re)produzem
considerando-o como suprassumo dos sentidos; existe um gozo nesse
caráter transcendente promovedor de massacres do outro, do que não está
representado, dos que “não estão conosco” nessa produção de sentidos,
dos que são “opositores”, dos que são desviantes adotando-se o
referencial do conteúdo sustentado com status de verdade.
Podem ser estátuas, títulos, honrarias,
bandeiras, códigos, amuletos, medalhas, leis, cumprimentos, saudações,
trajes, balanças, espadas, crucifixos, uniformes, hinos, gestos,
rituais, livros, qualquer recipiente (macro ou micro) apto a ativar a
sensação de pertencimento em algo, especialmente dos que não pertencem
de fato à luz do referencial estatal, um rol de sub-cidadãos (ou como
desejem chamar).
“Vivemos em sociedades burocráticas,
porque nelas se encontram afirmadas as texturas de uma disciplina
simbólica que fundamenta os jogos políticos da dominação. Seria ingênuo
demais acreditar que a burocracia está formada exclusivamente por formas
que te carimbam se te descuidas, até as pudendas. Essas sociedades
burocráticas afirmam-se através de certas supressões simbólicas, de um
destino finalmente petrificado para a intertextualidade. A transformação
da intertextualidade de uma atmosfera pétrea de significações serve de
suporte para os efeitos políticos dos complexos burocráticos que tecem
nosso social. As sociedades burocráticas dependem de um totalitarismo
que não está fundado exclusivamente na unidade burocrática da tomada de
decisões. Ela promove-se principalmente pelo apelo a uma certa unidade
do campo simbólico (isto é, a ideologia definida a partir da noção de
intertextualidade). Divisão do social e dissimulação desse divisão em
nome de múltiplas unidades que por sua vez resultam eufemisticamente
unificadas na forma de uma história. Simular a unidade é o segredo da
dominação.” A ciência Jurídica e seus dois maridos (WARAT, Luis Alberto,
1985 p. 60).
Lembre-se que símbolo é fogo forjador de
verdades e sentidos por excelência, (de)formando, nutrindo, ativando e
conectando palavras e pensamentos; ademais, é a cerâmica simbólica
edificadora das Excelências, enquanto pessoas, enquanto instituições,
enquanto significações, enquanto discursos, enquanto ideologias,
enquanto (des)controle, enquanto poder.
Aqui consiste uma das sacadas:
observadas determinadas condições de possibilidade, os símbolos podem
ser lidos como um termômetro do esforço necessário para se
(arbitrariamente) manter uma determinada coesão (que jamais poderia se
sustentar sem manipulação, tamanhas suas incongruências e contradições,
violências simbólicas, recusas e supressões existenciais).
Em outras palavras, um termômetro de
poder, que (não por acaso) praticamente explode quando incumbido de
aferir espaços extremamente arbitrários, repletos de símbolos, como
tribunais e templos de adoração (quase um pleonasmo); da arquitetura aos
mínimos detalhes: sempre existe algo, eis que precisa existir algo para validar tamanha mentira, ou melhor, para se cobrir o conteúdo sacrificado, não incorporado ou mesmo ejetado.
Também, não por acaso, mostra-se comum
que estruturas de pensamento, ideologias e edificações profundamente
arbitrárias tenham belas roupagens legitimadoras, simulacros retóricos
sobremaneira atraentes, direta ou indiretamente apostando em símbolos
como justiça e liberdade, manuseando suas indignações seletivas para
seus próprios interesses mesquinhos.
É sistemicamente compreensível que
tantos grupos fascistas instrumentalizem essas palavras para
seletivamente atacarem seus alvos e ao mesmo tempo se protegerem: tal
roupagem opera simultaneamente enquanto armadura e convite permissivo ao
ataque; confere um discurso de auto-legitimação defensivo (e
consequentemente ofensivo), na medida em que cria a ficção de
legitimidade instituída inclusive para destruir.
Quanto menor a lógica apresentada em
cada parte do todo, maior a necessidade de se instituir tantos símbolos,
elementos aptos a exercer, injetar, energizar e ativar poderes
(re)produtores de saberes, e, claro, forjadores de sentidos; o poder do
discurso raramente se desvencilha do discurso do poder, não sendo essa a
tendência, mas ínfima possibilidade de resistência sistêmica, refém de
lindes discursivos e presa em uma determinada linguagem.
No escrito “Toda prisão no Brasil é
ilegal. Porque se a prisão que está na lei não existe, a que aplicamos
na realidade é ilegal”, Luis Carlos Valois (2013a) ilustra:
“Eu sou o juiz da vara de execução e acho que toda prisão é ilegal. Mas se eu chego em minha comarca e solto todos os presos quem vai ser preso sou eu.
Teve um juiz em Minas Gerais que soltou todos os presos, porque a
prisão estava lotada e era inviável, isso tudo comprovado por perícia;
ele foi afastado do cargo. Eu sou juiz, mas tenho filho para
criar, não posso perder meu emprego. Sei que a prisão onde mantenho os
condenados é ilegal, mas o sistema não aceita que eu diga ou aja de
acordo com o meu pensamento.“
Mesmo tentativas internas de resistência
e discursos libertários são limitados quando deparamo-nos com o
discurso e as engrenagens do poder; sendo certo que não podemos esperar
suicídio do poder, a tendência é outra; além de se perpetuar, o poder
alcança consciências, moldando-as e (de)formando-as, construindo
sociedades adestradas e fluentes nessa linguagem.
Toda linguagem estabelece um corte de
sentidos, fatiando e (de)limitando, moldando e ativando nosso
pensamento; estabelecendo (seus) limites.
É também pelo poder que se validam
discursos; nosso fascínio por símbolos possibilita não só o emergir e
validação de deuses com pés de barro (leia-se discursos rasteiros e
inconsistentes), mas traz em si a resposta para suas limitações e
contradições inclusive semânticas: mais símbolos.
Uma lógica circular (in)falível (basta
elegermos um referencial), que persiste operando graças ao fascínio pelo
símbolo, que, em verdade, é integrante do fascínio pelo poder.
Nesse sentido, quando os símbolos
notoriamente fracassam, quando não mais se acredita neles, quando não
mais preenchem os objetivos desejados, injetam-se mais símbolos para
manter a coesão fabricada, e as pessoas de fato cobram mais símbolos,
foram adestradas nessa linguagem e pensam a partir dela.
E assim seguimos, cegamente depositando
nossas esperanças no que deveria ser interpretado não como máxima
libertação, mas dominação (analisada num determinado contexto, nunca
dissociada da realidade).
(Lembram-se das prisões? Bem, continuemos.)
Observe-se que a própria lei fora acima
elencada como (e enquanto) símbolo, quer isto dizer, ela faz parte dessa
demanda, desse imaginário, dessa coesão artificialmente fabricada,
manipulada, incutida. Faz parte da dominação.
Especialmente no Direito Penal, a fé
cega no simbolismo da lei constitui (e assegura) o enfraquecimento da
oposição radical ao sistema prisional.
Curiosamente, Luis Carlos Valois (2013b) também escreveu sobre a lei como símbolo em “Por que tanta lei?”, pontuando:
“Quanto mais o Estado deixa de
fazer de fato aquilo que realmente é sua obrigação como instituição
ideologicamente forjada para o bem do povo, mais é necessário que haja
símbolos com os quais possamos nos apegar. Há lei disso e lei daquilo, lei para lá e lei para cá, sonha-se com a lei de amanhã e com o cumprimento da lei de hoje. A lei se tornou o verdadeiro deus do Estado laico. A
lei resolve tudo e não resolve nada, porque a vida real continua como
ela é apesar das leis aos milhares todos os dias promulgadas pelas
diversas câmaras de vereadores, de deputados etc. Na segurança
pública é pior, porque basta uma lei para que o indivíduo ache que o
Estado, com isso, está zelando pela sua segurança. […] A fé
incondicional na lei é a fé na nossa própria apatia, na nossa
imobilidade política. E é isso que o poder político quer, já que é
natural de todo poder o desejo de se perpetuar e, para tanto, já basta a
lei e o nada que ela significa, por ser simplesmente um papel.”
Chamemos de armadilha neokantiana,
panpenalismo, direito penal disruptivo ou qualquer outro nome pomposo,
fato é que nos afundamos cada vez mais em símbolos; e, quando percebemos
o fracasso de nossas apostas ingênuas, fascinados por símbolos,
clamamos por mais símbolos, que nos são parcialmente concedidos
retoricamente, de sorte a apaziguar oposições enérgicas e radicais.
Como escrevi no livro “Brasil em Crise”
(2015), é bonito afirmar que não são concessões, mas conquistas
(extremamente árduas e não raro sangrentas).
Isso é verdadeiro a depender do
referencial: é dizer, de fato, se pensarmos em muitos trabalhadores, em
regra nada lhes foi dado, fora necessário “arrancar” essas conquistas de
um conjunto de estruturas direcionadas precisamente à negação de
direitos; é verdadeiro esse campo de conquistas mediante lutas
históricas e não raro sangrentas, essa perspectiva é possível e
coerente; de uma conquista que colide com mecânicas de funcionamento e
operacionalidades tendentes a anulá-las.
Seu grande defeito é ignorar que,
adotando como referencial o Estado e sistemas que pretendem se perpetuar
para manter suas operacionalidades (e quem sabe banquetes), se trata
mais de uma concessão, para não ruir o que se tem, do que efetivamente
qualquer outra coisa. Entregar um anel para preservar a mão, assim
dissolvendo a oposição radical e fortalecendo perspectivas reformistas
incapazes de transcender as regras estabelecidas em cada campo de jogo,
embate cujas disputas interpretativas jamais cessam as colisões no tecer
das relações simbólicas de poder; fluem energizando toda a dimensão
política da sociedade.
Isso dito, num Estado como o nosso, em
que o não-funcionamento do Direito Penal enquanto igualitário e justo
não é uma falha, é o próprio funcionamento do arquétipo; o
não-funcionamento é precisamente o funcionamento; o sistema penal é
fatalmente influenciado pelo conteúdo iluminado, daí que a seletividade é
um dado da realidade. O Direito – e especialmente o Direito Penal -,
passa muito longe de uma técnica neutra e ingênua, inclusive porque a
mecânica de funcionamento do Estado tampouco é neutra e ingênua, como
sua linguagem, o que é refletido na operacionalidade real do sistema
penal.
É bom lembrar que, por mais discrepantes
que alguns Estados sejam, algumas peculiaridades permanecem idênticas,
inclusive pelo enorme poder emanado por essa entidade retórica, que
seqüestra o conflito e mesmo o tempo, substituindo a vítima real,
reduzido a dado político-sacrificial, e massacrando seu suposto ofensor.
Algumas implicações e peculiaridades são vislumbradas na realidade de
praticamente qualquer Estado.
Assim, igualmente se mostra um
denominador comum instituir símbolos e elementos identificadores aptos a
conferir uma atmosfera de coerência e mesmo Justiça, especialmente nos
cenários mais degradantes, que comumente carecem de maior manipulação
para serem mantidos dentro do campo comunicativo de controle sistêmico,
sem oposições radicais do conteúdo não abrangido nos projetos e
arquétipos de racionalidade, nas estruturas de pensamento fundantes,
estruturais e estruturantes, nas ideologias-chave para se entender a
formação da realidade política.
E, quanto mais arbitrário, injusto e
brutalizante se mostra um ambiente, maior essa necessidade de cobri-lo
com tantos elementos validadores de poder e ativadores de coesão, de
racionalidade e sentido; cobri-lo com tudo isso para que não se possa
descobri-lo como o é: arbitrário, injusto e brutalizante!
No documentário “O Guia Pervertido da
Ideologia”, Slavoj Žižek (2012) desenha como o conteúdo ideológico não é
simplesmente (im)posto destrutivamente de modo cristalino, a
obscuridade e a sutileza são bem-vindos nas estratégias de ação para se
incutir algo, inclusive instrumentalizando o gozo e o fascínio por esse
algo; a ideologia é também uma relação com o mundo, sendo possível
incorporarmos elementos arbitrários que nos deixam aparentemente
felizes, ao menos num primeiro nível.
Žižek também questiona o conteúdo não
abrangido, a relação do que é verdadeiramente protegido e do que não é,
indagando se quando falamos “todos”, realmente incluímos todos.
Quando um Estado diz que protege a
todos, quando um texto ideológico se coloca a favor de toda a
humanidade, quando se brada pela liberdade e felicidade para todos,
devemos sempre nos perguntar: esse “todos” significa realmente “todos”?
Ou alguém fica de fora? O que e quem fica de fora, restando excluído,
não incorporado ou mesmo ejetado? Existe espaço para todas as “peças”
(referencial do Estado, que fatalmente incorpora essa palavra para se
auto-preservar). Por quê?
Diga-se de passagem, e desculpem o
comentário: mas já que o Estado nutre um discurso paternalista para se
legitimar – sob a estrela de proteger os súditos-filhos nas asas do
soberano-pai – por que raios não os protege verdadeiramente ao invés de
pretender encarcerá-los e exterminá-los!? Posso responder com
sinceridade? Querem ouvir com sinceridade? Bem, retornemos à
instrumentalização dos símbolos para se manter a coesão.
Quanto mais ilógico e desprovido de
sentido, maior a necessidade de se instituir tantos símbolos, de se
apelar para os discursos de autoridade em nome de Deus, do bom, do
justo, da verdade, da liberdade, da segurança de “todos”; maior a
necessidade de se manusear e exercer tanto poder, sempre
instrumentalizando um fascínio energizador de mitos e desejos.
Em “Humanizar as penas. Eles não sabem o
que fazem?” de Alexandre Morais da Rosa (2015), mostra-se possível
realizar um diálogo com muito do que fora abordado até aqui, senão
vejamos:
“Paradoxalmente, mas não sem razão,
historicamente o homem foi colocado no centro do discurso. As
justificações do poder, então religiosas, foram substituídas por outros
mitos: legitimidade, poder constituinte, contrato social, pai da horda.
[…] Neste campo é o poder que precisa ser trazido para o centro da
discussão, principalmente a maneira pela qual a grande parcela dos
atores sociais encontra-se obliteradas de qualquer dimensão crítica de
seus atos, embalados ainda pelo imperativo categórico Kantiano,
acreditando, ilusoriamente, que a lei deve ser cumprida, sem reflexão
crítica. Hannah Arendt demonstrou, com Eichmann, os perigos de se
cumprir alienadamente as leis, porque existe um limite para além do
jurídico, o qual tenta cercar, mas não consegue, que é o poder, agravado
em tempos Neoliberais, em que o Mercado não consegue dar conta da
estrutura.[…]”
Inclusive, especialmente o início desse
fragmento rende um ótimo diálogo com (também) o início do escrito de
Luis Carlos Valois (2013b):
“Desde que o mundo é mundo o ser humano
tem precisado de símbolos para depositar suas angústias e medos.
Passando dos Totens aos símbolos religiosos da idade média, os objetos
têm sido os repositórios de algumas de nossas esperanças. Com a divisão
do interesse da sociedade entre a Igreja e o Estado, os símbolos se
dividiram, ficando aquela com os crucifixos e imagens de santos, e este
com as figuras da balança e da justiça, mas principalmente com o
simbolismo da lei.”
É passada a hora de (re)pensarmos o
papel dos símbolos, do visível e do invisível, para que(m) servem; que
efeitos (não) provocam na realidade; limitações, usos e desusos, para,
quem sabe, cessarmos de apostar em armas para nossa segurança.
Para que possamos desvelar e dilacerar as mentiras que nos regem,
Destronar discursos alçados à condição de deuses,
Estancarmos nosso imaginário punitivo,
Alimentarmos e energizarmos nossa imaginação não punitiva,
Não refém de símbolos, não acorrentada por leis,
Para que possamos, então, expandir nossa linguagem.
Para que possamos expandir nossos mundos!!
Notas e Referências:
[1] ROSA, Alexandre Morais da.
Humanizar as penas. Eles não sabem o que fazem? Empório do Direito,
2015. Disponível em:
http://emporiododireito.com.br/humanizar-as-penas-eles-nao-sabem-o-que-fazem-por-alexandre-morais-da-rosa/
[2] VALOIS, Luis Carlos. Toda prisão no
Brasil é ilegal. Porque se a prisão que está na lei não existe, a que
aplicamos na realidade é ilegal. Causa Operária, 2013. Disponível em:
http://www.pco.org.br/nacional/toda-prisao-no-brasil-e-ilegal-porque-se-a-prisao-que-esta-na-lei-nao-existe-a-que-aplicamos-na-realidade-e-ilegal-/epbz,y.html
“
[3] VALOIS, Luis Carlos. Por que tanta
lei? Causa Operária, 2013. Disponível em:
http://www.pco.org.br/nacional/por-que-tanta-lei/aiib,i.html
[4] WARAT, Luis Alberto. A ciência
jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Faculdade Integradas de
Santa Cruz do Sul, 1985.
[5] ŽIŽEK, Slavoj. O Guia Pervertido da Ideologia, Documentário, 2012.
[6] FILME – A ONDA, 2008.
Guilherme Moreira Pires é
Advogado, doutorando em Direito Penal. Abolicionista e anarquista.
Autor dos livros: “Desconstrutivismo Penal: uma análise crítica da
expansão punitiva e dos mutantes rumos do direito penal” (2013); “O
Estado e seus inimigos: Multiplicidade e alteridade em chamas” (2014) e
“Os amigos do Poder: ensaios sobre o Estado e o Delito a partir da
Filosofia da Linguagem”(2014). Grupo Abolicionismo Penal – América
Latina – https://www.facebook.com/groups/ 673508846078451/?fref=ts
Imagem Ilustrativa do Post: Ritual // Foto de: Paul Stevenson // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/pss/6348061387/
Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/
Fonte: Empório do Direito
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