PICICA: "Esse é o tipo de livro que é impossível
entender como pode estar fora de catálogo. E pior: como não está sendo
indicado nas escolas para que os estudantes conheçam a história da
Revolução Russa contada –surpresa!– por um de nossos maiores poetas, o
curitibano Paulo Leminski (1944-1989). Leminski admirava Trotski e
escreveu alguns poemas e textos sobre o revolucionário russo e também
sobre a Libelu (Liberdade e Luta), tendência trotskista do movimento
estudantil nos anos 1970.
Mas o que pouca gente sabe é que Leminski é o autor de uma biografia de Leon Trotski em português, A Paixão Segundo a Revolução, publicada pela editora Brasiliense em 1988. Dois anos depois, em 1990, o texto sairia postumamente em Vida (editora
Sulina), uma coletânea dos perfis de Leminski, que retratou, além de
Trotski, o mestre dos haicais Basho, Jesus e o poeta Cruz e Sousa,
raridade que hoje não sai por menos de 100 reais se você encontrar num
sebo."
Trotski/Leminski: o revolucionário e o poeta
Por Cynara Menezes, publicado originalmente no excelente blog Socialista Morena.
Esse é o tipo de livro que é impossível
entender como pode estar fora de catálogo. E pior: como não está sendo
indicado nas escolas para que os estudantes conheçam a história da
Revolução Russa contada –surpresa!– por um de nossos maiores poetas, o
curitibano Paulo Leminski (1944-1989). Leminski admirava Trotski e
escreveu alguns poemas e textos sobre o revolucionário russo e também
sobre a Libelu (Liberdade e Luta), tendência trotskista do movimento
estudantil nos anos 1970.
Mas o que pouca gente sabe é que Leminski é o autor de uma biografia de Leon Trotski em português, A Paixão Segundo a Revolução, publicada pela editora Brasiliense em 1988. Dois anos depois, em 1990, o texto sairia postumamente em Vida (editora
Sulina), uma coletânea dos perfis de Leminski, que retratou, além de
Trotski, o mestre dos haicais Basho, Jesus e o poeta Cruz e Sousa,
raridade que hoje não sai por menos de 100 reais se você encontrar num
sebo.
A biografia de Trotski que Leminski escreveu é
saborosíssima porque, para começar, é feita para iniciados. Qualquer
jovem entenderia – o poeta, aliás, revela nas dedicatórias que escreveu
inspirado por uma pergunta da filha de 15 anos sobre o que tinha sido a
Revolução Russa. Leminski não se atém ao biografado, remonta às origens
da Rússia desde a invasão pelos mongóis, no século 13. Irônico,
divertido, o livro captura o leitor imediatamente.
De modo fascinante, Leminski compara o que aconteceu em outubro de 1917 ao enredo de Irmãos Karamazov,
o clássico de Dostoievski. O pai castrador é a Rússia e seu czar
“cretino e irresponsável, tão incapaz quanto Luís 16, decapitado na
Revolução Francesa”. Seus filhos Dmitri, Aliocha e Ivan são os
revolucionários. Mesmo sendo um admirador, Leminski mantém o
distanciamento crítico e aponta o excesso de vaidade como o principal
defeito de Trotski. Entusiasta da revolução, também enxerga suas
fraquezas, sobretudo nas artes. E não esconde o desprezo por Stalin.
É uma pena que Leminski não esteja mais entre
nós para continuar o livro após a Perestroika e a Glasnost na União
Soviética e a queda do muro de Berlim… Mas é urgente que, revisto, volte
às livrarias. É genial. Não pode continuar esquecido.
Abaixo, um trecho do capítulo Dmitri da biografia de Trotski por Leminski.
Leon Trotski: a Paixão Segundo a Revolução
Por Paulo Leminski
Na estratégia e na tática de ação política, a
inteligência de Lenin supera em muito a de Trotski, mais hesitante,
mais sujeita a erros e leituras equivocadas dos fatos.
Mas a máquina mental e intelectual de Trotski
era mais complexa que a de Lenin. Seus interesses eram mais plurais.
Suas leituras, mais diversificadas. Seu horizonte, muito mais amplo.
Leia-se, por exemplo, o vôo utópico do final do ensaio Arte
Revolucionária e Arte Socialista, capítulo oitavo do seu livro Literatura e Revolução.
Lenin jamais poderia ter escrito essas
páginas de um sopro verdadeiramente épico-utópico, sobre o novo homem
que o socialismo poderia criar. Nem poderia dizer, como diz Trotski,
nesse mesmo livro: “a arte se fundirá com a vida, quando a vida
enriquecerá em proporções tais que se modelará, inteiramente, na arte”.
Lenin sempre olhou meio de lado, desconfiado,
para as manifestações de vanguarda artística que marcaram o início do
comunismo na Rússia (futurismo, suprematismo, Eisenstein, Maiakovski,
Meyerhold, Tatlin). Seus gostos em matéria de arte eram bem
conservadores. Há testemunhos de que chorava ao ouvir oPour Élise, de Beethoven. E sua visão de cinema era pedagógica e doutrinária: bom para educar as massas.
Dessa vanguarda, Trotski, agudíssimo crítico literário, fez leituras mais ricas, como nos ensaios O Futurismo, de 1922, e O Suicídio de Maiakovski, de 1930, incluídos em Literatura e Revolução, o mais extraordinário livro sobre literatura que um político jamais escreveu.
Quando, já exilado no México, nos anos 30,
Trotski assina um manifesto surrealista com André Breton, vindo da
França para conhecê-lo, o velho leão está apenas sendo fiel a algumas
das suas riquezas da juventude.
A robustez e saúde de pensamento, Trotski
deve ter herdado do pai. Mas a sofisticação intelectual, que sempre o
distinguiu entre os bolcheviques e lhe atraiu invejas e ódios surdos, só
pode ter vindo da mãe, que era assinante de uma biblioteca de livros de
empréstimo, e lia em mais de uma língua.
O que importa guardar dos primórdios de Lev
Davidovitch é que Trotski teve uma infância e adolescência sem penúria,
como, aliás, Lenin, filho de um funcionário público, de alguma graduação
na máquina burocrática. Diverso é o caso de Stalin, filho de um pobre
sapateiro do Cáucaso, o único dos chefes da Revolução de Outubro a ter
origens realmente populares.
Aos sete anos, os pais de Lev Davidovitch o
enviaram para uma escola judaico-alemã, a quilômetros de distância da
fazenda Yanovka. Não se adaptou, e os pais o trouxeram de volta, sem que
tivesse chegado a aprender nem o iídiche nem o hebraico das Escrituras.
Em compensação, tinha aprendido bem o russo, ele que só falava o
ucraniano dos camponeses. Ao voltar, já escrevia bem em russo, e
começava a ler avidamente livros na língua oficial.
Pouco depois, pelas mãos de um parente mais
velho, de nome Spentzer, vai estudar em Odessa, o maior porto do Mar
Negro, uma cidade de clima quente, fervilhante de vida cosmopolita.
Na casa dos Spentzer, Lev iniciou-se numa
vida intelectual muito cuidada, música clássica, hábitos polidos,
leituras de clássicos russos e europeus em geral (Goethe, Pushkin,
Tolstoi, Dickens).
O jovem camponês ucraniano transforma-se num judeu urbano de classe média, um europeu culto e educado.
Em Odessa, frequentou uma escola alemã,
ligada à Igreja Luterana, onde estudou, entre as matérias do currículo,
francês e alemão. Nessa escola, a Realschule, parece ter sido aluno
excepcionalmente sério, sempre o primeiro da classe.
Já podemos ver aí os germes da vaidade
intelectual que sua figura sempre irradiou, a certeza de ser mais
inteligente do que os outros, de ver mais longe ou pensar mais fundo,
vaidade que só se transformava em modéstia diante da figura
superlativamente carismática de Lenin (e isso só depois de muita briga
entre os dois…).
Em Odessa, cidade esfuziante de atrações,
frequenta a ópera, como os outros estudantes, veste-se com elegância
(traço que sempre o distinguiu) e apaixona-se, platonicamente, por
cantoras líricas, como um poeta romântico do século 19.
Aos 17 anos, o futuro chefe da Revolução de
Outubro ainda não ouviu falar de marxismo. E seu talento para a
matemática o inclina a sonhar com uma carreira universitária dedicada à
matemática pura.
Tais eram seus dons nesse terreno que,
consta, eminentes matemáticos lamentariam depois que tamanho talento se
perdesse na mediocridade da vida política: que grande talento a
matemática estava perdendo…
A atividade política de Trotski, percebe-se já, não vai nascer de uma revolta contra um estado pessoal de carência.
Como em Lenin, outro bem-nascido (como Mao e Fidel), em Trotski, a revolução vai ser uma paixão intelectual,
uma certeza lógica, uma convicção feita de ferro em brasa. Uma das
cruéis ironias da vida: só os bem alimentados podem lutar pelos
famintos. Os muito miseráveis nem sequer se revoltam: deixam-se morrer à
míngua. É preciso muita proteína para fazer uma revolução.
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