abril 18, 2015

"Podemos precisa ir do keynesianismo ao commonfare". Por Raúl Sanchez Cedillo e Toni Negri

PICICA: "A vitória da Syriza nas eleições gregas e a ascensão do Podemos na Espanha abriram um campo de oportunidades para uma nova forma-partido no sul da Europa. Quais agenciamentos, coalizões e relações entre instituição, ativismo cidadão, forças políticas, sindicatos e movimentos são necessários de maneira a propiciar o início de um processo constituinte? Terceiro artigo da série concentrado no Podemos e na Syriza, pelo filósofo italiano Antonio Negri e o pesquisador e tradutor espanhol Raúl Sanchez Cedillo."

Podemos precisa ir do keynesianismo ao commonfare

Por Raúl Sanchez Cedillo e Toni Negri , no Domínio público , em 16/3/15 | Trad. UniNômade

A vitória da Syriza nas eleições gregas e a ascensão do Podemos na Espanha abriram um campo de oportunidades para uma nova forma-partido no sul da Europa. Quais agenciamentos, coalizões e relações entre instituição, ativismo cidadão, forças políticas, sindicatos e movimentos são necessários de maneira a propiciar o início de um processo constituinte? Terceiro artigo da série concentrado no Podemos e na Syriza, pelo filósofo italiano Antonio Negri e o pesquisador e tradutor espanhol Raúl Sanchez Cedillo.


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Na mídia internacional que se ocupa da questão da Syriza, frequentemente aparece certo incômodo: os gregos teriam se apresentado nas negociações de Bruxelas com atitudes informais, pouco adequadas à etiqueta diplomática. Que sensação mais estranha esse juízo provoca, se compararmos a franqueza do comportamento de Yánis Varoufakis, o ministro da economia grego, com a secura de Wolfgang Schäuble, seu colega alemão! Parece uma cena do Avarento de Molière: um gastador presumido de fortunas ao lado de um burguês que defende com os cinco sentidos o dinheiro acumulado! À margem da cena, lemos a peça de outra perspectiva: temos assim Varoufakis, livre representante de uma multidão de trabalhadores que exige, para eles, a possibilidade de produzir valor e criar riqueza — diante de Varoufakis, Schäuble aparece como guardião viciado das finanças dos ricos; Varoufakis como a imagem do trabalho, Schäuble como o agente da extração do valor desse esforço e imaginação.

Durante um longo período na Europa, a variável salarial foi a ponta de lança do desenvolvimento capitalista. Os estados pagavam o estímulo ao desenvolvimento: daí, nasceu o chamado Welfare State e, pela primeira vez na história, se propiciou certo bem estar às classes trabalhadoras. Elas tinham entrado na maioridade de idade, se apresentaram à cena política e traduziram a questão do salário e do Welfare como efeito de uma relação de forças que lhes era favorável. Razão pela qual os estados se endividaram em troca de paz social.

Agora, na crise, a casta patronal e política europeia pede, exige e impõe aos trabalhadores o ressarcimento desse gasto, chamando-o “dívida”. E assim a dominação se reapresenta sob a figura da dívida. Na crise, se repetem as origens do capitalismo. A origem remete à acumulação desenfreada e ao monopólio da distribuição social da riqueza e da moeda. Dessa maneira, nascem a sociedade e o poder da burguesia, que constitucionalizam seus interesses e baseiam a sua própria identidade na exploração de todo esse trabalho social. Assim, pois, o problema não é exatamente a dívida, senão como ela se formou; não a sua quantidade, mas seu aspecto qualitativo, o modo como determina a vida de todos.

Com a mudança das relações de força, a dívida se converteu numa condenação, não para quem a contraiu (i.e., os patrões, com o objetivo de manter a paz social), senão dos trabalhadores, que de boa fé haviam aderido a essa paz que renovava a sua subordinação. Há que se romper essa relação de subordinação. Podemos — assim nos parece — tem a possibilidade de começar a acabar com esse escândalo na Espanha e na Europa. Por quê? Porque a Espanha é a quarta economia da Europa, porque sua consistência demográfica e econômica a coloca a salvo de chantagens e manobras excludentes, porque uma iniciativa democrática que parta de Espanha — com a revisão da dívida pública, a compensação e novo impulso de crescimento na forma de créditos e as ajudas estruturais — não poderá ser tratada com arrogância pela emperiquetada diplomacia de Bruxelas, ao contrário, poderá somar-se ao interesse e ao despertar político e constituinte de outras forças democráticas na Europa.

Agora, certo, uma política econômica de renovação somente pode partir da eliminação da injustiça fiscal. Exige, por conseguinte, a imposição de critérios fortemente progressivos em matéria de impostos, um controle lúcido das atividades bancárias, uma taxa sobre as transações financeiras — tudo isso vinculado a uma política de destruição de paraísos fiscais e rentismo financeiro. A nossa é uma firme chamada ao intervencionismo fiscal. Sabemos muito bem até que ponto o intervencionismo poderia resultar contraproducente e restabelecer as piores versões do jacobinismo, quando se juntam ao sacrossanto sentido de justiça outras tantas doses de sectarismo plebeu: mas no que tange à questão fiscal, isso hoje é necessário. Porém, além de seus excessos, se trata neste caso de uma representação do sentimento de igualdade que a democracia produz, bem como de um aspecto fundamental para uma vontade constituinte renovada. Nesse terreno, é perfeitamente legítimo recorrer àquela vigorosa persuasão moral — a alma do pensamento democrático, segundo Thomas Jefferson — exercida com frequência e eficácia pelos movimentos multitudinários. A reconsideração, a partir dessa experiência de justiça, desse sentido de igualdade, de uma nova experiência constituinte para a União Europeia representa o verdadeiro tema da crítica da economia política de nosso século. Quem paga os impostos, quanto e para que fins? Trata-se de uma questão cuja reinserção é tachada de “vulgar” pela casta, mas que se mostrou fundamental em todas as experiências constituintes da modernidade. E se hoje estamos mais além, se estamos já na pós-modernidade, isto significa que não basta fazer um discurso sobre a distribuição social dos lucros. Hoje é necessário, mais do que isso, desenvolver um discurso econômico que, partindo da reprodução da vida e da riqueza, proporcione acesso aos temas da produção social. A batalha democrática tem de ser travada e ganha no terreno da produção.

Assim, pois, keynesianismo, pós-keynesianismo? Uma vez que tenhamos reconhecido a natureza reacionária do ordoliberalismo e, consequentemente, da constituição mesma do Banco Central Europeu sob a batuta do Bundesbank — que marco econômico e financeiro poderia ser estimulado? e quem deveria ser o ator fundamental desse renascimento ao mesmo tempo econômico e  democrático? O problema é difícil, já que é novo. Velha é, ao contrário, a sagrada história da laboriosidade e austeridade do experimento da República Federativa Alemã (RFA, antiga Alemanha Ocidental). Velho é o credo ordoliberal da “economia social de mercado”, que tem Ludwig Erhard como profeta e a reforma monetária de 1948 como primeiro de seus milagres. Uma vez terminada a sua função anticomunista, promovida e organizada pelos ocupantes anglo-americanos, o evangelho ordoliberal se converteu hoje, paradoxalmente, num instrumento de destruição das defesas erigidas contra um neobismarckianismo alemão — que, outra vez, está se elevando como ameaça contra a paz e a democracia no continente.

Quando dizemos que estamos na pós-modernidade, nos colocamos, para começar, o tema do sujeito econômico como central, capaz de interpretar e guiar a reforma no modo que a produção social exige. Agora sim, ao fazer isso na Espanha de hoje, não podemos deixar de remeter-nos ao povo do 15-M. Precariado, força de trabalho cognitiva, trabalhadores de indústria e serviços, professores e estudantes, trabalhadores do cuidado e da saúde, desempregados que trabalham esporadicamente, imigrantes, mulheres e homens: se trata de um povo explorado pelo capital global, uma multidão social de quem se extrai difusamente o mais-valor.

O capital financeiro extrai valor da sociedade em sua totalidade, em todos os tempos e espaços. Diante disso, o sujeito que atua nessas condições chega ao conhecimento da violência e das dimensões da dominação capitalista, assim como da forma que ela se exerce, para desprender-se da austeridade e eventualmente da miséria, para subtrair-se aos mecanismos de exploração. O que combatemos (e aqui não se trata de desdobrar questões ideológicas) não é apenas o egoísmo e a avidez de dinheiro e poder, nem tampouco o individualismo moral que trazem consigo: é mais do que isso, se não levarmos o discurso de radicalidade democrática ao plano da produção econômica e da vida de todos os dias, nos arriscamos a deixar a nossa ação completamente insuficiente. Então, a nossa tarefa consiste em mover-se para construir, no comum, formas de redistribuição de riqueza e desenvolver um trabalho de libertação da produção social.

O Welfare ou políticas de bem estar são apenas o primeiro terreno da batalha. A renda básica garantida e digna para viver a nossa própria viva é um elemento fundamental para um novo welfare, de modo a exercermos a nossa própria cidadania como iguais e livres, a salvo de chantagens e privilégios, das empresas e da corrupção das máfias de toda espécie. A renda básica deve ser desenvolvida, portanto, como um dos elementos principais do programa econômico. A partir de uma renda básica garantida e digna para todos, podem se desenvolver políticas de gestão e empresariado cooperativo, para abrir-se a novos “serviços humanos para o ser humano”: hospitais, escolas, moradias, transformação ecológica da produção, dos transportes e das cidades, produções baseadas no software e hardware livres (o que os companheiros equatorianos e espanhóis chamaram de FLOK Society). Algo fundamentalmente distinto do neoextrativismo em sua versão espanhola, que consiste em devastação ecológica e social de territórios submetidos a economias de exploração e precariedade desenfreadas. Sim, mas também — apenas para sublinhar momentos com uma importância excepcional — medidas imediatas que tirem os pobres da miséria e uma grande política que propicie às mulheres sentirem-se finalmente cidadãs inter pares, que contribua para que as mulheres se emancipem não apenas do patriarcado e da família, mas ao mesmo tempo lhes dê respaldo para as peripécias de sua libertação; que conceda aos cidadãos migrantes a plena cidadania do trabalho que lhes corresponde in primis, porque a ninguém escapa que os imigrantes têm sido, nos últimos vinte anos, a base humana do crescimento do setor imobiliário e dos serviços às pessoas e, sobretudo, à manutenção do sistema público da previdência.

Trata-se, com isto, de formas de ações produtivas que se inscrevam na construção do comum. Precisamos de “câmeras metropolitanas do trabalho” que preparem instrumentos de luta e figuras para a organização do viver comum. E isto não se aplica apenas ao salário social (renda básica), mas também ao salário dos trabalhadores: a iniciativa sindical tem de medir-se com o campo social, se faz necessário adotar e ampliar as formas de luta já experimentadas nas mareas e, sobretudo, na Plataforma dos atingidos pelas hipotecas (PAH). Trata-se de um grande objetivo: a unificação, num projeto forte e participativo, da iniciativa mutualista e cooperativa com a sindical — voltada para a construção do comum. Sobre isso, não se pode esquecer que a PAH é algo mais que um modelo de referência, é uma máquina de guerra que está devolvendo vida e esperança a milhares de pessoas.

Podemos e seus economistas falam de uma ação inspirada no keynesianismo para voltar a colocar em marcha a máquina produtiva do país. Não falta utilidade à reivindicação keynesiana, para atacar diretamente as medidas ordoliberais de controle social e econômico. Mas reinventar hoje o keynesianismo político não é uma tarefa fácil depois da sua derrota política, depois de Thatcher, Blair e Schröder. Apesar disso, pode começar a se tornar um terreno favorável para a recuperação de iniciativas empresariais e a introdução de políticas redistributivas eficazes, ao se propor um novo âmbito de programas sociais e decisão política, que incidam diretamente na relação entre capital financeiro e sujeito produtivo social. O povo do 15-M de que temos falado pode assumir aqui um papel antagonista. Mas surge a objeção: se trata de uma multidão não organizada, essa é uma acumulação de forças muito distintas. E é verdade, mas ainda pode tornar-se algo muito diferente. Assumindo a divisória, se faz necessário um discurso e uma prática para uma (nova) luta de classe. Na esteira do 15-M, pode dar-se a passagem da defesa e conservação do Welfare à construção europeia de um poderoso Commonfare.

Quando chegou ao governo em 1933 e quis construir um New Deal que reconquistou a classe operária para o desenvolvimento industrial, Roosevelt se propôs acima de tudo a construir um sindicato novo, um sindicato do operário-massa (homem e predominantemente branco). E assim foi feito, com o que funcionou a sua reforma política: quer dizer, isso impulsionou a sindicalização das novas figuras operárias, taylorizadas na grande empresa fordista — e assim nasceu o Congress of Industrial Organizations, antagonista aos capitalistas no interior do terreno do trabalho; à sua hegemonia foram subordinados os velhos sindicatos do operário profissional: que não passavam de empresas frequentemente corruptas e incapazes de construir uma universalidade para toda a classe operária.

Hoje se trata, nas novas condições, de atuar da mesma maneira: construir uma coalizão dos trabalhadores nas redes sociais e digitais que corresponda à nova composição de classe dos trabalhadores; unificar o mutualismo, instituições cooperativas e, sobretudo, construir uma forte sindicalização do social. A renda básica contra a exclusão é fundamental, mas não é suficiente para determinar o êxito do projeto. A revisão da dívida pública, o imposto sobre as grandes fortunas e transações financeiras são elementos igualmente essenciais. O decisivo é construir um sujeito que una interesse civil e econômico, integrando as diferenças da multidão; que possa a partir disso construir de tal maneira uma ação política coerente e contínua, uma agitação que desabroche desde baixo a reforma constituinte.

Na busca dessas novas figuras da democracia econômica — e plasmando-as eventualmente através do governo do país — poderá colocar-se em marcha o empresariado social da multidão. Devemos arrebatar das castas políticas e financeiras o injustificado monopólio ideológico e institucional sobre a capacidade de criar empresas. Quando se atua com sensatez, a crítica econômica e os programas de reforma nascem diretamente da relação entre governo e multidões. Estas não preexistem à ação política desde baixo. Mas quando as iniciativas populares se fazem governo, até a teoria econômica pode ter uma renovação. Precisamos de uma nova ciência do governo econômico para a sociedade pós-moderna. Muitos esperam de Podemos a introdução deste saber, que não apenas consiste na excelência da tática de governo, como também na estratégia das multidões e na proposta de uma democracia.

Fonte: UniNômade

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