abril 10, 2015

"Fugir, fugir, fugir". Por Silvio Pedrosa (UniNômade)

PICICA: "Entre 2013 e 2015, saímos da euforia assustada para a melancolia desesperada. A situação é tão grave que não temos sequer formulados diagnósticos coletivos sobre o que deu errado. Pior ainda, diante da gravidade da situação, enfrentamos um impasse subjetivo generalizado, uma hesitação horrorizada diante da pergunta leninista ampliada e atualizada ao século 21: como fazer o que fazer?"

Fugir, fugir, fugir

Por Silvio Pedrosa, UniNômade

Beckett

Tentei. Falhei. Sem problema. Tento de novo. Erro de novo. Erro melhor.



Entre 2013 e 2015, saímos da euforia assustada para a melancolia desesperada. A situação é tão grave que não temos sequer formulados diagnósticos coletivos sobre o que deu errado. Pior ainda, diante da gravidade da situação, enfrentamos um impasse subjetivo generalizado, uma hesitação horrorizada diante da pergunta leninista ampliada e atualizada ao século 21: como fazer o que fazer?

Diante da esfinge que a orfandade das velhas organizações e dos velhos modos de fazer política nos impuseram, há os que se refugiem na negação da pergunta e se tornem guardiões da muralha onde, lá das alturas, se resistiria às hordas fascistas. É o caso seja dos que se entrincheiram nas organizações pró-governo, sustentando sinceramente símbolos totalmente esvaziados de qualquer significado, seja daqueles que sucumbem diante do esquerdismo fácil que denuncia todos os males do mundo sem ter olhos para ver suas contradições assustadoramente reais e, portanto, potentes.

Ambas as atitudes se revelam idênticas naquele ponto onde se torna impossível não notar que o adesismo e o esquerdismo são contrapartes de uma mesma radicalidade identitária vazia, espécie de boa consciência que apazigua psicologicamente sem sequer tocar o turbilhão do mundo (do qual se quer distância, seja nos atos pré-aprovados desde os gabinetes, seja nas vanguardas sem povo). Nesse caso, a resposta é: continuaremos a fazer o que sempre estivemos a fazer.

Do outro lado, há quem desabe diante do conformismo, descobrindo, tarde demais para si mesmo, que não se entra nessa pelo entusiasmo e que a paciência e a resiliência, qualidades estratégicas, são o que pode sustentar as virtudes táticas da coragem e da ousadia. Torna-se tentador reintegrar-se totalmente às engrenagens da megamáquina do mundo, ir cuidar da própria vida, da carreira e dos filhos. A resposta é a aquiescência da impotência (combinada a nostalgia de quando vencíamos, vivenciada vez por outra por ímpetos de retorno): não há como fazer o que fazer.

E esses diagnósticos separados das tendências não esgotam sequer a complexidade do quadro, pois a relação entre esses sujeitos persiste e na sua interação emerge uma paranoia generalizada diante do outro: todos têm medo de ser usados numa época em que a própria luta política e social foi reduzida à equivalente geral nos circuitos (de editais) do semiocapitalismo. A pergunta dos advogados se multiplica e vemos transcendências por todos os lados, exceto naquele ponto cego que somos nós mesmos. Somos arrebatados pelo desejo de pureza e coerência nos outros e só restam espelhos à nossa volta. Não queremos ou admitimos ser capturados e construímos uma jaula prévia, a do imobilismo.

Como destravar uma tal situação? Como vencer a hesitação diante da pergunta fatal, evitando a tagarelice da neurose obsessiva que fala de tudo para que não se fale do quê interessa? Arrisco uma ou duas intuições.

A primeira delas é voltar a tornar substanciais, encarnadas e concretas as nossas bandeiras e nossos símbolos. Respondamos à tagarelice em silêncio, ouvindo os rangidos das engrenagens, auscultando o pulsar das lutas que a nova composição (técnica, política e social) do trabalho já travam nos limites cotidianos do funcionamento da maquinaria de comando. Forjemos novos símbolos no movimento vivo da sociedade, essa grande fornalha na qual podemos fazer uma arma enquanto fugimos, pois a fuga é mesmo a segunda intuição.

Fujamos, não como escapistas, mas como sujeitos em constituição permanente. Assumamos o refugiado como figura central da política contemporânea e para a qual resta por criar seu próprio estatuto. Pois nossa saída é a criação de um novo estatuto, de um novo pacto comum cuja produção depende de rejeitarmos os conceitos através dos quais o nosso tempo (em suas de significações de tempo mensurável e época) é gerido, rejeitando as temporalidades que nos administram seja no curto prazo (presentismo), seja nos longos e médios “para trás” ou “para frente” (a defesa-nostalgia e o ataque-repúdio do não-vivido e seus efeitos – tanto aquele que não podemos perder, quanto aquele que não devemos deixar repetir – e a utopística que se torna a imagem do inalcançável), a fim de desenvolvermos outras relações com o tempo, numa mudança qualitativa que exige aquela fidelidade ao evento que, em que pese sua dissolução cada dia mais acentuada do horizonte, foi junho de 2013.

Para que se possa passar ao ponto que nos tornamos fiéis à própria fidelidade ao evento, perseverando na interrupção, como afirmou Badiou, da ordem das coisas que ele foi através do traçado material de linhas que possam nos recompor, para que voltemos a exceder o nosso próprio ser no devir. O S. Beckett d’O inominável, citado em dois livros que li essa semana, fornece o lema:

“É preciso continuar. Eu não posso continuar, eu vou continuar”.


Silvio Pedrosa, historiador, é professor da rede pública do Rio de Janeiro, e participa da rede Universidade Nômade.

Fonte: UniNômade

Nenhum comentário: