abril 24, 2015

"A tentação dionisíaca", por Roberto Machado (Territórios de Filosofia)

PICICA: "Certamente, já na época de O nascimento da tragédia Nietzsche faz várias críticas a Schopenhauer, por exemplo à idéia de que a arte seja negação da vontade. Não penso, porém, que a leitura do livro e dos escritos que lhe deram origem permita concluir que a pluralidade ou a multiplicidade já se encontra na vontade ou que a vontade nada mais é do que a aparência. Parece-me, ao contrário, que o uno originário nietzschiano, quando pensado em O nascimento da tragédia como um princípio ontológico oposto à aparência fenomenal, é como a vontade schopenhaueriana: único, eterno, incondicionado. É esse sentido da expressão “uno originário” que permite, por exemplo, compreender a caracterização do dionisíaco bárbaro no §1 do livro: “Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente não só unificado, conciliado, fundido com o seu próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e, reduzido a tiras, esvoaçasse diante do misterioso uno originário.” Ou mesmo a concepção da tragédia no §7: “O efeito mais imediato da tragédia é que o Estado e a sociedade, tudo o que constitui um abismo, uma separação entre homem e homem, dão lugar a um sentimento todo-poder-oso de unidade que reconduz ao âmago da natureza.” O que me faz con-cluir que o dionisíaco é fundado metafisicamente no uno originário, que é uma retomada da vontade universal de Schopenhauer, isto é, da vontade considerada como núcleo do mundo, essência das coisas, “força que eternamente quer, deseja e aspira”. Acredito que só interpretando a vontade desse modo é possível dar conta da tese do livro sobre a tragédia como relação entre o apolíneo e o dionisíaco."

A tentação dionisíaca – Roberto Machado


 A tentação dionisíaca.

Roberto Machado.*
Há em Nietzsche um evidente elogio da epopéia como modo artístico de dar sentido à vida pela expressão de uma superabundância de forças própria do indivíduo heróico. Mas essas análises são bastante reduzidas, como se só existissem para esclarecer um saber bem mais importante e profundo do que o apolíneo: o saber trágico. De fato, se Nietzsche nunca se denominou um filósofo apolíneo é porque sempre esteve atento aos limites de uma visão apolínea do mundo. Esses limites são de dois tipos.

O primeiro consiste na impossibilidade de o apolíneo se apresentar como alternativa à racionalidade. O tema não é muito explicitado por Nietzsche, mas é possível encontrar no período inicial de sua obra algumas passagens que constatam a apropriação de Apolo pelo saber racional. É as- sim que o fragmento póstumo 3[36], de 1869-70, aproxima Platão de Apolo, dizendo que em Platão o mundo é visto do ponto de vista de Apolo, ou do ponto de vista do olho: sua filosofia é uma “glorificação suprema das coisas como imagens originárias”. O fragmento 7[102], escrito entre o final de 1870 e abril de 1871, ao mesmo tempo que diz, na linha de O nascimento da tragédia — pois se trata de uma de suas teses centrais —, que Sócrates recusa os mistérios dionisíacos, também enuncia a tese, muito menos explicitada no livro, de que Sócrates se apega a Apolo. O fragmento 8[13], do período de 1870-71 ao outono de 1872, caracteriza Sócrates como “mestre apolíneo”, indicando que sua serenidade de artista se manifesta na maiêutica. “Sócrates e a tragédia”, uma das conferências que estão na origem do livro, pronunciada na Basiléia em 1º de fevereiro de 1870, diz que em Sócrates encarnou-se um aspecto do elemento grego, a clareza (Klarheit) apolínea. Idéia que reaparece no §14 de O nascimento da tragédia, que, ao se perguntar se entre o socratismo e a arte há necessariamente uma relação antagônica, lembra que na prisão Sócrates compôs um hino em homenagem a Apolo e versificou algumas fábulas de Esopo, referindo-se então à sua lucidez (Einsicht) apolínea. E, nesse mesmo item, Nietzsche refere-se a Platão, dizendo que a tendência apolínea mumificou- se em esquematismo lógico. Além disso, a relação entre o apolíneo e a racionalidade se evidencia mais uma vez quando Nietzsche chama a nova comédia, de inspiração socrática, de “serenidade do escravo” e “serenidade alexandrina”.[1] Ou quando retoma essa idéia na “Tentativa de auto- crítica”, ao ver continuidade entre serenidade e ciência, ao falar de “serenidade do homem teórico” ou dizer que os gregos nos tempos de sua dissolução e fraqueza se tornaram mais otimistas, mais lógicos, mais serenos e mais científicos.[2] Todas essas indicações evidenciam portanto que, se Nietzsche não se denomina um filósofo apolíneo, é porque vê nisso uma limitação ou uma insuficiência, no sentido de que, abandonado a si mesmo, o saber apolíneo transforma-se em saber racional.

O segundo limite da visão apolínea tal como aparece na epopéia é o fato de ela não ser uma afirmação integral da vida. Como uma proteção contra o terrível da dor, do sofrimento, da morte, que funciona como encobrimento, o saber apolíneo evidencia-se parcial, ao deixar de lado algo que não pode ser ignorado e fatalmente se impõe: a outra força artística da natureza, o dionisíaco. “Só consigo pois explicar o Estado dórico e a arte dórica como um contínuo acampamento de guerra da força apolínea: só em uma incessante resistência contra o caráter titânico-bárbaro do dionisíaco podia perdurar uma arte tão desafiadoramente austera, circundada de baluartes, uma educação tão belicosa e áspera, um Estado de natureza tão cruel e brutal”, diz o §4 de O nascimento da tragédia. Deste modo, ao analisar a epopéia, Nietzsche o faz por oposição ao saber dionisíaco, a “sabedoria popular” que grita “infelicidade, infelicidade” na cara da serenidade apolínea, ou que, na boca de Sileno, o companheiro de Dioniso, revela rindo que o bem supremo, impossível ao homem, é não ter nascido, e o segundo dos bens, ainda acessível, é morrer o quanto antes.[3] A Grécia ensinou a Nietzsche — ensinamento que lhe foi útil inclusive na composição do seu Zaratustra — que uma cultura apolínea, ao pretender negar o lado sombrio, tenebroso, da vida pela criação da ilusão do indivíduo heróico é impotente contra um saber aniquilador da vida, tal como o que se manifesta no culto a Dioniso. Em tudo que o dionisíaco penetrou, o apolíneo foi suspenso e aniquilado.[4]

O que é, então, o dionisíaco nietzschiano? Fundamentalmente, o culto das bacantes. Isto é, o culto manifestado nos cortejos orgiásticos de mulheres que, em transe coletivo, dançando, cantando e tocando tamborins em honra de Dioniso, invadiram a Grécia vindas da Ásia, para fazer seu deus ser reconhecido, glorificado pelos gregos.

É bem possível que Nietzsche tenha aprendido com Jacob Burckhardt, seu colega na Basiléia, a caracterização de Dioniso como um deus semigrego. Eis o que escreve Burkhardt em sua História da cultura grega: “Por trás da máscara do deus da fertilidade se oculta um ser meio estrangeiro. Uma das personificações do deus em paixão (que acreditamos ser um deus camita) adquiriu no extremo oriental da Ásia menor, entre os frígios como também entre os trácios, um ritmo selvagem e embriagador e em repetidas invasões conseguiu reimplantar na Grécia o culto de Dioniso”d. Também Erwin Rohde, amigo de Nietzsche e autor de Psyche, livro publicado em 1893, defende que o dionisíaco representa um corpo estranho na cultura grega homérica, o que o leva a situar a origem de Dioniso fora das fronteiras da Grécia, na Trácia, e a explicar sua expansão à maneira de epidemias de danças convulsivas.[5] Inclusive, ao comentar O nascimento da tragédia em sua resenha — publicada em maio de 1872, poucos meses portanto depois da publicação do livro — Rohde já defende que o entusiasmo panteísta, vindo do Oriente, espalhou-se em ondas possantes pela Grécia. Mas é preciso assinalar que já Hölderlin chama Dioniso um “deus estrangeiro”[6], considera-o “deus dos elementos ‘asiáticos’”.[7] Essa idéia parece ser inquestionável para os pensadores, filólogos ou não, do século XIX.

Seja ou não correta a idéia de um Dioniso estrangeiro, no sentido de nascido fora da Grécia, interpretação hoje negada pelos filólogos,e o im-portante é que o culto místico a Dioniso, um “estrangeiro terrível”[8], significa, para Nietzsche, a negação dos valores principais da cultura apolínea. Em vez de um processo de individuação, é uma experiência de reconciliação entre as pessoas e das pessoas com a natureza, uma harmonia universal e um sentimento místico de unidade. “Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa da reconciliação com seu filho perdido, o homem”, diz o §1 de O nascimento da tragédia.

A experiência dionisíaca é a possibilidade de escapar da divisão, da multiplicidade individual e se fundir ao uno, ao ser; é a possibilidade de integração da parte na totalidade. Nietzsche enuncia isso em linguagem entusiasmada: “Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento. Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele se sente deus, caminha tão extasiado e enlevado como vira em sonho os deuses caminharem.”[9] Aliás, em sua resenha recusada pelo editor, Rohde salienta esse aspecto da experiência dionisíaca, ao escrever que, no encantamento ardente proporcionado pelo dionisíaco, o homem “sente-se, assim como Prometeu libertado, livre de todas as amarras da individualidade, movido por uma liberdade poderosa e ilimitada, transportado pela tempestade de uma alegria e de uma dor nunca antes experimentada”[10].

Essa reconciliação com a natureza aparece com toda a pujança no texto que, a meu ver, mais inspirou Nietzsche na caracterização do culto dionisíaco: As bacantes, de Eurípides. Pois é importante não esquecer que, embora Nietzsche critique a tendência socrática de Eurípides e lhe impute a morte da tragédia, ele considera As bacantes — obra escrita um ano antes da morte de seu autor — um arrependimento. Eis como esse Eurípides tardiamente dionisíaco canta a união das bacantes com a natureza: “O chão regurgita de leite, de vinho, do néctar das abelhas.”[11] Umas bacantes usam, “em vez de cinto, serpentes que lhes lambem o rosto. Outras, segurando filhotes de corças e de lobos selvagens, dão-lhes os seios ainda túrgidos, mães que abandonaram os filhos recém-nascidos. Todas elas coroam-se de hera, de carvalho ou de flores silvestres. Uma delas bate com o tirso numa rocha e faz jorrar água pura. Outra, fere o chão com sua haste e o deus faz brotar uma fonte de vinho. As que desejam o alvo leite esfregam o solo com os dedos e o recolhem em abundância. Da hera dos tirsos escorre o doce mel”.[12] No júbilo místico, as fronteiras da individuação desaparecem. “Todas as fronteiras de castas que a necessidade ou o capricho estabeleceram entre os homens desaparecem: o escravo e o homem livre, o nobre e o plebeu se unem nos mesmos coros báquicos”, diz Nietzsche.[13] E pode-se acrescentar, no mesmo espírito, que desaparecem ou se atenuam ao máximo as diferenças entre masculino-feminino, bárbaro-civilizado, velhojovem, louco-sábio…

Isso quanto à substituição da individualização pela reconciliação. Em segundo lugar, o culto dionisíaco também significa o abandono dos preceitos apolíneos da medida e da consciência de si. Em vez de medida, o que se manifesta na celebração das bacantes é a hybris, com a música ex- tática, mágica, enfeitiçadora, apresentando a desmedida, a desmesura da natureza exultante na alegria, no sofrimento e no conhecimento.[14] A desmesura se revela como verdade, no sentido de que à beleza da medida se opõe a verdade da desmesura ou de que à mentira da civilização se opõe a verdade da natureza. Na peça de Eurípides, é Penteu, o rei de Tebas, principal representante da repressão ao instinto, à força dionisíaca, quem denuncia que as mulheres de Tebas abandonaram seus lares pelas bacanais, permanecendo nas florestas sombrias, dançando em honra de uma nova divindade, um impostor, um encantador vindo da Lídia que as está iniciando nos mistérios báquicos.[15] O culto dionisíaco, em vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade apolíneas, impõe um comportamento marcado por um êxtase, um entusiasmo, um enfeitiçamento, um frenesi sexual, uma bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade, de força grotesca e cruel.
Do mesmo modo, em vez da consciência de si apolínea, o culto dionisíaco produz uma desintegração do eu, uma abolição da subjetividade até o total esquecimento de si: um desprendimento de si próprio, a dissolução do eu no mundo, um abandono ao êxtase divino, à loucura mística do deus da possessão.[16] No prólogo das Bacantes, Dioniso esclarece que, pelo fato de suas tias, as irmãs de sua mãe Semele, o terem insultado declarando não ser ele filho de Zeus, negando, portanto, sua condição divina, ele compeliu as mulheres de Tebas a deixar seus lares e a morar nos altos montes, usando apenas a roupagem orgiástica. E logo a seguir o coro das bacantes, em sua primeira intervenção, enaltece sua orgia sagrada: “Feliz daquele que se inicia nos mistérios divinos, lhes consagra sua vida e santifica sua alma purificada nas bacanais da montanha.”[17]

Mas a melhor ilustração da perda da consciência característica do êxtase, do entusiasmo, do enfeitiçamento dionisíaco é o comportamento de Agave — filha de Cadmo, fundador de Tebas, e irmã de Semele, mãe de Dioniso — quando seu filho Penteu, culpado por querer contemplar aquilo que não é permitido ver quando não se é bacante, vai observar as bacantes sem que elas notem, mas o deus as faz descobri-lo e enfurecer-se contra ele. Penteu, acariciando o rosto de sua mãe, pede-lhe que se apiede dele e não o sacrifique. Agave, em delírio, “pondo muita espuma pela boca e revirando os olhos desvairadamente, como se Baco a possuísse”[18], não o ouve, esquarteja-o, ajudada por suas duas irmãs, e lança os restos de seu corpo em todas as direções. Depois, toma a cabeça, que ela imagina ser a cabeça de um leão, e a leva em procissão para Tebas, espetada em seu tirso, mostrando-a pelo caminho. Em Tebas, ela a entrega a seu pai, Cadmo, que se lamenta com essas palavras bem elucidativas da antinomia entre a consciência apolínea e o delírio dionisíaco: “Quando recuperardes vossa lucidez sofrereis atrozmente vendo o vosso feito! E se deveis permanecer até o fim nesse estado, se a felicidade vos abandonou, ao menos ignorais vossa desventura!”.

Como se vê, apesar da originalidade na determinação dessas duas forças — o apolíneo e o dionisíaco —, a tese de Nietzsche a respeito da existência de uma oposição entre elas se insere perfeitamente no tipo de pensamento característico da filosofia do trágico, desde o final do século XVIII, que postula a divisão entre uma Grécia marcada pela serenidade, ou simplicidade, característica que lhe dá Winckelmann, e uma Grécia arcaica, sombria, violenta, selvagem, mística, extática, como aparece bem claramente em Hölderlin. Em O nascimento da tragédia, possivelmente pensando em Winckelmann, Nietzsche se insurge contra a idéia de que a arte grega possa ser explicada por um único princípio. Mas não se pode esquecer que isso não é uma novidade de sua filosofia, pois para toda a filosofia do trágico não se trata mais de interpretar a arte grega como “nobre simplicidade e serena grandeza”. A tal ponto que, mesmo quando os pensadores do trágico postulam, em sua reflexão sobre a tragédia, uma harmonia, ela é o produto de uma oposição de princípios.

É interessante observar que O nascimento da tragédia retoma a distinção de Schiller entre o ingênuo e o sentimental, formulada em seu livro Poesia ingênua e sentimental, para pensar o apolíneo e o dionisíaco. Partindo da idéia do ingênuo como harmonia ou unidade do homem com a natureza, Nietzsche apropria-se, a seu modo, da distinção de Schiller, considerando o ingênuo, no §3 de O nascimento da tragédia, “o efeito su- premo da civilização apolínea”, “o total engolfamento na beleza da aparência”. No fundo, o que O nascimento da tragédia faz é explicar o ingênuo pelo apolíneo. Assim, se Homero é um poeta ingênuo, como o considerava Schiller,[19] é que “a ‘ingenuidade’ homérica só pode ser compreendida como uma vitória total da ilusão apolínea”. E se Nietzsche não é muito explícito no livro sobre a utilização desses conceitos de Schiller, principalmente o de sentimental, o fragmento póstumo 7[126], escrito entre o final de 1870 e abril de 1871, vai mais longe quando afirma: “Penso interpretar ‘ingênuo’ corretamente por ‘puramente apolíneo’, ‘aparência da aparência’, e ‘sentimental’, em compensação, por ‘nascido da luta do conhecimento trágico e da mística’.” E, vendo dificuldades no conceito de sentimental, o jovem Nietzsche torna mais preciso o seu pensamento dizendo: “Compreendo como o oposto absoluto do ‘ingênuo’ e do apolíneo o ‘dionisíaco’, isto é, tudo o que não é ‘aparência de aparência’, mas ‘aparência do ser’, reflexo da eterna unidade originária.”

Mas a referência essencial de Nietzsche para interpretar a mitologia e a arte gregas é, como sempre nessa época, Schopenhauer. E, se O nascimento da tragédia se baseia em O mundo como vontade e representação, isso significa principalmente que os conceitos mais abrangentes da análise nietzschiana da tragédia, o dionisíaco e o apolíneo, são pensados a partir dos conceitos schopenhauerianos de vontade e representação, transformados, na linguagem nietzschiana, em uno originário e aparência.

Já me referi à relação entre a aparência nietzschiana e a representação schopenhaueriana ao estudar o apolíneo como o domínio do princípio de individuação, do ser fenomenal, da aparência. Mas também me parece evidente que o conceito de dionisíaco é fundado metafisicamente no uno originário, unidade existente além ou aquém da representação, que, por sua vez, é uma retomada da vontade universal de Schopenhauer. O que há, então, de comum entre a concepção de vontade em Nietzsche e Schopenhauer?

Se é evidente, como me parece, que a estrutura da argumentação de O nascimento da tragédia parte de uma separação radical entre o apolíneo pensado como individuação e o dionisíaco pensado como totalidade, os dois filósofos têm em comum a interpretação da vontade como única, universal. Pode parecer difícil defender essa posição, pois se encontram em Nietzsche afirmações que vão em sentido diferente. Penso em fragmentos da época, como “a vontade é a forma mais geral do fenômeno…” Ou o que diz: “A vontade pertence à aparência…. A vontade é já uma forma de fenômeno…”. Ou ainda o que diz: “Toda a vida pulsional … só nos é conhecida — devo acrescentar contra Schopenhauer — … como representação e não segundo sua essência; e pode-se mesmo dizer que a própria ‘vontade’ de Schopenhauer é apenas a forma mais geral de algo que permanece inteiramente indecifrável … essa forma original da manifestação, a ‘vontade’ … consegue, no entanto, uma expressão simbólica sempre mais adequada no desenvolvimento da música.”[20]
Apontar tais afirmações não me parece, no entanto, uma objeção importante. Primeiro porque encontramos fragmentos da mesma época que enunciam outra posição. Por exemplo: “Na vontade só há pluralidade, movimento, pela representação…”, “a vontade é universal, a representação, o que diferencia”, ou aquele que opõe a noção épica de agon à de “regime trágico”, esclarecendo que esta última faz frente ao egoísmo da individual- idade e dele se protege, colocando-o a serviço da totalidade.[21]

Segundo porque, quando me pergunto qual dessas interpretações privilegiar, parece-me evidente que os fragmentos póstumos devem ser interpretados a partir das obras publicadas na época pelo próprio autor, pois são essas obras que expressam com mais clareza e sistematicidade a direção que ele dá aos pensamentos que lhe surgem enquanto investiga de- terminado tema. Assim, a meu ver, no caso preciso de saber qual a posição de Nietzsche sobre a vontade, é preciso se voltar para O nascimento da tragédia. E a esse respeito não acho que haja no livro uma crítica a Schopenhauer que, por razões “diplomáticas”, isto é, pelo fato de seus maiores amigos, como Rohde, Overbeck ou Wagner, serem schopenhauerianos, Nietzsche teria escondido. Ou que, ainda usando uma terminologia schopenhaueriana, Nietzsche já apresente um pensamento total- mente diferente daquele que encontrou no filósofo que considerava seu mestre.

Certamente, já na época de O nascimento da tragédia Nietzsche faz várias críticas a Schopenhauer, por exemplo à idéia de que a arte seja negação da vontade. Não penso, porém, que a leitura do livro e dos escritos que lhe deram origem permita concluir que a pluralidade ou a multiplicidade já se encontra na vontade ou que a vontade nada mais é do que a aparência. Parece-me, ao contrário, que o uno originário nietzschiano, quando pensado em O nascimento da tragédia como um princípio ontológico oposto à aparência fenomenal, é como a vontade schopenhaueriana: único, eterno, incondicionado. É esse sentido da expressão “uno originário” que permite, por exemplo, compreender a caracterização do dionisíaco bárbaro no §1 do livro: “Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente não só unificado, conciliado, fundido com o seu próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e, reduzido a tiras, esvoaçasse diante do misterioso uno originário.” Ou mesmo a concepção da tragédia no §7: “O efeito mais imediato da tragédia é que o Estado e a sociedade, tudo o que constitui um abismo, uma separação entre homem e homem, dão lugar a um sentimento todo-poder-oso de unidade que reconduz ao âmago da natureza.” O que me faz con-cluir que o dionisíaco é fundado metafisicamente no uno originário, que é uma retomada da vontade universal de Schopenhauer, isto é, da vontade considerada como núcleo do mundo, essência das coisas, “força que eternamente quer, deseja e aspira”. Acredito que só interpretando a vontade desse modo é possível dar conta da tese do livro sobre a tragédia como relação entre o apolíneo e o dionisíaco.

Notas.

1. Ibid., §11 e 17, respectivamente.
 

2. Nietzsche, “Tentativa de autocrítica”, §1 e 4, respectivamente.
 

3. Essa idéia aparece enunciada em Édipo em Colono, de Sófocles, versos
1.223-7. Antes de Nietzsche, ela é retomada, por exemplo, como epígrafe do Livro
II do Hipérion, de Hölderlin.
 

4. Cf., sobre o assunto, Nietzsche, Nascimento, §3 e 4.
 

5. Cf. Jeanmaire, Dionysos. Histoire du culte de Bachus, p.85-8. Cf. também
Vernant, “O Dioniso mascarado das ‘Bacantes’ de Eurípides”, in Mito e tragédia
na Grécia antiga, II, p.249. Marcel Detienne diz que “foi lendo a história das
Prétidas que Erwin Rohde pôde imaginar a expansão do dionisismo à maneira de
uma epidemia de danças convulsivas (Cf. Dioniso a céu aberto, p.12).
 

6. Cf. Habermas, O discurso filosófico da modernidade, p.96.
 

7. Cf. Steiner, Antígonas, p.125.
 

8. Nietzsche, “A visão dionisíaca do mundo”, §2.
 

9. Nietzsche, Nascimento, §1.
 

10. Machado, Nietzsche e a polêmica sobre “O nascimento da tragédia”, p.37.
 

11. Eurípides, As bacantes, 143-4.
 

12. Ibid., 697-705. Nietzsche parafraseia a descrição de Eurípides no final do §1
de “A visão dionisíaca do mundo”.
 

13. Nietzsche, Nascimento, §16.
 

14. Ibid., §4.
 

15. Cf. Eurípides, As bacantes, 217-38.
 

16. Cf. Nietzsche, Nascimento, §1 e 2.
 

17. Eurípides, As bacantes, 78-88.
 

18. Ibid., 1120-3.
 

19. Cf. Schiller, Poesia ingênua e sentimental, p.57-60.
 

20. Os fragmentos póstumos citados são os seguintes: final 1870 – abr 1871,
7[165] e 7[167]; início 1971, 12[1].
 

21. Os fragmentos póstumos citados são os seguintes: set 1870 – jan 1871,
5[80]; 1871, 9[105-10]; inverno 1870 – out 1872, 8[68].


*Escrito originalmente publicado em: MACHADO, Roberto. O Nascimento do Trágico: De Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

Fonte: Territórios de Filosofia

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