abril 10, 2015

"Os Príncipes São Mais Sábios que o Povo? Atualidade da questão maquiaveliana" – Por Adriano Pilatti (empóriodoreito.com.br)

PICICA: "E se o “golpe” supostamente tão temido pela ex-querda (um temor que tem forte apelo em amplos setores democrático-progressistas, com naturalmente profundo impacto nos sobreviventes dos Anos de Chumbo) já tiver acontecido? Ou melhor, se for um golpe de novo tipo, um “work in progress” em fase já bem adiantada?

A imposição, à falta de um nome “de marca”, de um “genérico” disponível como Levy, por parte da “mão invisível do mercado”; a instauração do Consulado Cunha-Calheiros e sua agenda trevosa anti-direitos individuais (maioridade penal, questões de gênero e família etc), políticos (distritão, restauração do modelo representativo da República Velha), econômicos (autonomia do Banco Central) e sociais (“pacto de maldades” + liberação absoluta da terceirização, com a siamesa denegação de direitos trabalhistas); a liberação total da matança de jovens pobres pelo Estado; a revisão do modelo de partilha do Pré-Sal; e o sequestro da “opinião pública” por parte do oligopólio midiático com relação a todos esses temas – tudo isso é “normalidade democrática”?"

Os Príncipes São Mais Sábios que o Povo? Atualidade da questão maquiaveliana – Por Adriano Pilatti




Por Adriano Pilatti – 08/04/2015

E se o “golpe” supostamente tão temido pela ex-querda (um temor que tem forte apelo em amplos setores democrático-progressistas, com naturalmente profundo impacto nos sobreviventes dos Anos de Chumbo) já tiver acontecido? Ou melhor, se for um golpe de novo tipo, um “work in progress” em fase já bem adiantada?

A imposição, à falta de um nome “de marca”, de um “genérico” disponível como Levy, por parte da “mão invisível do mercado”; a instauração do Consulado Cunha-Calheiros e sua agenda trevosa anti-direitos individuais (maioridade penal, questões de gênero e família etc), políticos (distritão, restauração do modelo representativo da República Velha), econômicos (autonomia do Banco Central) e sociais (“pacto de maldades” + liberação absoluta da terceirização, com a siamesa denegação de direitos trabalhistas); a liberação total da matança de jovens pobres pelo Estado; a revisão do modelo de partilha do Pré-Sal; e o sequestro da “opinião pública” por parte do oligopólio midiático com relação a todos esses temas – tudo isso é “normalidade democrática”?

Numa fase do capitalismo e numa configuração do poder mundial que fogem completamente ao modelo correspondente à Guerra Fria, é de se esperar que os golpes correspondam ao figurino do velho tipo? Assim como “a próxima revolução não será televisionada”, talvez o “próximo” golpe não seja fardado: isso já se tornou obsoleto, o Capital se escaldou com o alto custo das caixinhas castrenses e suporta bem o custo atual, o Departamento de Estado dos EUA tem mais o que fazer, e sem eles as Forças Armadas em frangalhos não conseguem bancar ações old fashion. Bolsonaros são coisas obsoletas, aí remanescem como espantalhos tão somente – figuras mais bem trajadas e menos deselegantes os tornam dispensáveis.

O golpe contra o povo, o golpe contra @s pobres é, além da matança, a agenda legislativa em curso que, por enquanto, tem “apoio da opinião pública” às custas do discurso único (com pequenas exceções pontuais) dos “formadores de opinião”, propagado nos grandes meios de comunicação de massa. Se Dilma fica ou não, isso dificulta mais ou menos sua consumação, conforme o ponto da agenda.

Não por acaso, os movimentos que, propostos e iniciados à direita, se alimentam do discurso “anti-corrupção” não “focam” nos cônsules congressuais que, com todo merecimento, deveriam estar bem à frente daquela senhora na lista de prioridades desse item, se ele fosse mesmo o prioritário. Nem cogitam de se opor à redução da maioridade, à matança etc. A função sistêmica desses movimentos pode, malgrado o desejo de muit@s que deles participam e até dos que o iniciaram, ser apenas a de manter o nível adequado de pressão para que o Planalto nem pense em se opor à agenda reacionária nos pontos em que o próprio Executivo não é cúmplice.

Os dois passos mais graves dessa agenda legislativa anti-direitos (golpista contra o poder constituinte, portanto) já em curso são a redução da maioridade penal e a terceirização. Deixo pra outro momento a terceirização, até porque aí ainda se pode sonhar com o veto presidencial, que inexiste para emendas à Constituição. Quanto à redução, só uma “batalha de opinião” bem-sucedida o suficiente para promover uma reviravolta na maioria congressual poderia dete-la – e é vão esperar que Dilma tenha coragem e condição de se meter nela do lado certo. Ou que isso faça diferença – quem, depois do estelionato eleitoral, compraria um carro usado dela? Num certo sentido, Dilma tornou-se irrelevante.

Neste momento essa batalha é absolutamente desigual, o discurso anti-obscurantista confinado a pequenos circuitos das redes, universidades, advogad@s, ainda que em ampliação, mas nada indica que venha a ocorrer a reviravolta necessária, preservadas as condições atuais de ausência de debate. Com isso, a maioria reacionária do Congresso pode alegar que tem amplo apoio popular para consumar o golpe contra a Carta de Direitos da Constituição de 1988 – contra ela porque “abrirá a porteira” para a supressão de outros direitos e garantias. Se o quadro não se reverter rapidamente, parece inevitável que a proposta seja aprovada lá.

Resta esperar pela coerência do STF? Pela preservação de sua jurisprudência quanto às cláusulas pétreas? Dá pra confiar? Numa concepção recuada, seria a única coisa a fazer, o que também torna indispensável a continuidade da luta argumentativa pelas redes, foros pró-democráticos, universidades, etc. Mas esse seria o único caminho para deter a sandice macabra?

Sem prejuízo de endossar e estar participando do esforço de argumentação em curso, permito-me a “heresia” de pensar que, se a batalha se confirmar como perdida no Congresso, talvez seja o caso de cogitar a reivindicação de um referendo popular revogatório, antes ou depois da eventual manifestação do STF. Loucura? A “opinião pública” não é esmagadoramente favorável à medida? É, mas nas condições atuais do “debate”: uma única tese veiculada fartamente pelos meios de comunicação de massa há mais de 20 anos.

Se houver um debate realmente público, sob a tutela da Justiça Eleitoral, com tempos iguais, com as mesmas exigências de isenção estabelecidas em período eleitoral para os programas jornalísticos etc, num período de campanha suficientemente longo para permitir que o livre debate se propague em todos os estratos sociais, essa maioria esmagadora subsistirá? Dá pra confiar mais, e unicamente, na deliberação dos onze (quer dizer, dez) poderos@s de capa preta do que numa deliberação popular precedida de amplo e exaustivo debate? Seria todo o povo tão irreversivelmente “infanticida” assim?
É claro que isso também teria de passar pelo Congresso. Mas colocaria a maioria numa sinuca (e uma maioria meramente relativa é necessária nesse caso, nem todos os que votarem “sim” à emenda precisariam votar “sim” ao referendo). Afinal a maioria atual não está embarcando nessa para demagogicamente capturar a boa-vontade do mesmo povo, hoje engabelado pela mídia e demais arautos do obscurantismo, em próprio proveito eleitoral, inclusive? Como recusar que o povo supostamente confirme sua posição? Ou devemos entregar tudo nas mãos do STF, passar-lhes um cheque em branco numa questão de tão elevado valor?

Essa dúvida não surgiu na minha cabeça. Uma sagaz senhorinha do Morro da Serrinha foi quem me contagiou com ela há dias atrás, quando, enquanto assistíamos ao noticiário sobre a decisão da CCJ da Câmara, ela me disse, literalmente: “Engraçado, eles decidem tudo pela gente, né? Por que não fazem programas com os dois lados pra gente saber mais, e depois decidir a gente mesmo?” Subscrevo a provocação, sem nenhuma certeza, mas penso que, encaminhando-se as coisas para onde se encaminham, não seria o caso de excluir essa alternativa liminarmente. Até porque ela tanto pode ser cogitada depois de uma decisão eventualmente desastrosa do Congresso como depois de uma decisão eventualmente também desastrosa do Supremo. E então não haveria nada a perder, a não ser, talvez, ilusões.



Adriano Pilatti é Professor de Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio Facebook https://www.facebook.com/adriano.pilatti                                               

                                             


Imagem Ilustrativa do Post: Al mal tiempo buena espalda // Foto de: Luis Hernandez // Sem alterações

Fonte: empóriododireito.com.br

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