PICICA: "E se o “golpe” supostamente tão temido
pela ex-querda (um temor que tem forte apelo em amplos setores
democrático-progressistas, com naturalmente profundo impacto nos
sobreviventes dos Anos de Chumbo) já tiver acontecido? Ou melhor, se for
um golpe de novo tipo, um “work in progress” em fase já bem adiantada?
A imposição,
à falta de um nome “de marca”, de um “genérico” disponível como Levy,
por parte da “mão invisível do mercado”; a instauração do Consulado
Cunha-Calheiros e sua agenda trevosa anti-direitos individuais
(maioridade penal, questões de gênero e família etc), políticos
(distritão, restauração do modelo representativo da República Velha),
econômicos (autonomia do Banco Central) e sociais (“pacto de maldades” +
liberação absoluta da terceirização, com a siamesa denegação de
direitos trabalhistas); a liberação total da matança de jovens pobres
pelo Estado; a revisão do modelo de partilha do Pré-Sal; e o sequestro
da “opinião pública” por parte do oligopólio midiático com relação a
todos esses temas – tudo isso é “normalidade democrática”?"
Os Príncipes São Mais Sábios que o Povo? Atualidade da questão maquiaveliana – Por Adriano Pilatti
Por Adriano Pilatti – 08/04/2015
E se o “golpe” supostamente tão temido
pela ex-querda (um temor que tem forte apelo em amplos setores
democrático-progressistas, com naturalmente profundo impacto nos
sobreviventes dos Anos de Chumbo) já tiver acontecido? Ou melhor, se for
um golpe de novo tipo, um “work in progress” em fase já bem adiantada?
A imposição,
à falta de um nome “de marca”, de um “genérico” disponível como Levy,
por parte da “mão invisível do mercado”; a instauração do Consulado
Cunha-Calheiros e sua agenda trevosa anti-direitos individuais
(maioridade penal, questões de gênero e família etc), políticos
(distritão, restauração do modelo representativo da República Velha),
econômicos (autonomia do Banco Central) e sociais (“pacto de maldades” +
liberação absoluta da terceirização, com a siamesa denegação de
direitos trabalhistas); a liberação total da matança de jovens pobres
pelo Estado; a revisão do modelo de partilha do Pré-Sal; e o sequestro
da “opinião pública” por parte do oligopólio midiático com relação a
todos esses temas – tudo isso é “normalidade democrática”?
Numa fase do capitalismo e numa
configuração do poder mundial que fogem completamente ao modelo
correspondente à Guerra Fria, é de se esperar que os golpes correspondam
ao figurino do velho tipo? Assim como “a próxima revolução não será
televisionada”, talvez o “próximo” golpe não seja fardado: isso já se
tornou obsoleto, o Capital se escaldou com o alto custo das caixinhas
castrenses e suporta bem o custo atual, o Departamento de Estado dos EUA
tem mais o que fazer, e sem eles as Forças Armadas em frangalhos não
conseguem bancar ações old fashion. Bolsonaros são coisas obsoletas, aí
remanescem como espantalhos tão somente – figuras mais bem trajadas e
menos deselegantes os tornam dispensáveis.
O golpe contra o povo, o golpe contra @s
pobres é, além da matança, a agenda legislativa em curso que, por
enquanto, tem “apoio da opinião pública” às custas do discurso único
(com pequenas exceções pontuais) dos “formadores de opinião”, propagado
nos grandes meios de comunicação de massa. Se Dilma fica ou não, isso
dificulta mais ou menos sua consumação, conforme o ponto da agenda.
Não por acaso, os movimentos que,
propostos e iniciados à direita, se alimentam do discurso
“anti-corrupção” não “focam” nos cônsules congressuais que, com todo
merecimento, deveriam estar bem à frente daquela senhora na lista de
prioridades desse item, se ele fosse mesmo o prioritário. Nem cogitam de
se opor à redução da maioridade, à matança etc. A função sistêmica
desses movimentos pode, malgrado o desejo de muit@s que deles participam
e até dos que o iniciaram, ser apenas a de manter o nível adequado de
pressão para que o Planalto nem pense em se opor à agenda reacionária
nos pontos em que o próprio Executivo não é cúmplice.
Os dois passos mais graves dessa agenda
legislativa anti-direitos (golpista contra o poder constituinte,
portanto) já em curso são a redução da maioridade penal e a
terceirização. Deixo pra outro momento a terceirização, até porque aí
ainda se pode sonhar com o veto presidencial, que inexiste para emendas à
Constituição. Quanto à redução, só uma “batalha de opinião”
bem-sucedida o suficiente para promover uma reviravolta na maioria
congressual poderia dete-la – e é vão esperar que Dilma tenha coragem e
condição de se meter nela do lado certo. Ou que isso faça diferença –
quem, depois do estelionato eleitoral, compraria um carro usado dela?
Num certo sentido, Dilma tornou-se irrelevante.
Neste momento essa batalha é
absolutamente desigual, o discurso anti-obscurantista confinado a
pequenos circuitos das redes, universidades, advogad@s, ainda que em
ampliação, mas nada indica que venha a ocorrer a reviravolta necessária,
preservadas as condições atuais de ausência de debate. Com isso, a
maioria reacionária do Congresso pode alegar que tem amplo apoio popular
para consumar o golpe contra a Carta de Direitos da Constituição de
1988 – contra ela porque “abrirá a porteira” para a supressão de outros
direitos e garantias. Se o quadro não se reverter rapidamente, parece
inevitável que a proposta seja aprovada lá.
Resta esperar pela coerência do STF?
Pela preservação de sua jurisprudência quanto às cláusulas pétreas? Dá
pra confiar? Numa concepção recuada, seria a única coisa a fazer, o que
também torna indispensável a continuidade da luta argumentativa pelas
redes, foros pró-democráticos, universidades, etc. Mas esse seria o
único caminho para deter a sandice macabra?
Sem prejuízo de endossar e estar
participando do esforço de argumentação em curso, permito-me a “heresia”
de pensar que, se a batalha se confirmar como perdida no Congresso,
talvez seja o caso de cogitar a reivindicação de um referendo popular
revogatório, antes ou depois da eventual manifestação do STF. Loucura? A
“opinião pública” não é esmagadoramente favorável à medida? É, mas nas
condições atuais do “debate”: uma única tese veiculada fartamente pelos
meios de comunicação de massa há mais de 20 anos.
Se houver um debate realmente público,
sob a tutela da Justiça Eleitoral, com tempos iguais, com as mesmas
exigências de isenção estabelecidas em período eleitoral para os
programas jornalísticos etc, num período de campanha suficientemente
longo para permitir que o livre debate se propague em todos os estratos
sociais, essa maioria esmagadora subsistirá? Dá pra confiar mais, e
unicamente, na deliberação dos onze (quer dizer, dez) poderos@s de capa
preta do que numa deliberação popular precedida de amplo e exaustivo
debate? Seria todo o povo tão irreversivelmente “infanticida” assim?
É claro que isso também teria de passar
pelo Congresso. Mas colocaria a maioria numa sinuca (e uma maioria
meramente relativa é necessária nesse caso, nem todos os que votarem
“sim” à emenda precisariam votar “sim” ao referendo). Afinal a maioria
atual não está embarcando nessa para demagogicamente capturar a
boa-vontade do mesmo povo, hoje engabelado pela mídia e demais arautos
do obscurantismo, em próprio proveito eleitoral, inclusive? Como recusar
que o povo supostamente confirme sua posição? Ou devemos entregar tudo
nas mãos do STF, passar-lhes um cheque em branco numa questão de tão
elevado valor?
Essa dúvida não surgiu na minha cabeça.
Uma sagaz senhorinha do Morro da Serrinha foi quem me contagiou com ela
há dias atrás, quando, enquanto assistíamos ao noticiário sobre a
decisão da CCJ da Câmara, ela me disse, literalmente: “Engraçado, eles
decidem tudo pela gente, né? Por que não fazem programas com os dois
lados pra gente saber mais, e depois decidir a gente mesmo?” Subscrevo a
provocação, sem nenhuma certeza, mas penso que, encaminhando-se as
coisas para onde se encaminham, não seria o caso de excluir essa
alternativa liminarmente. Até porque ela tanto pode ser cogitada depois
de uma decisão eventualmente desastrosa do Congresso como depois de uma
decisão eventualmente também desastrosa do Supremo. E então não haveria
nada a perder, a não ser, talvez, ilusões.
Adriano Pilatti é Professor de Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio Facebook https://www.facebook.com/adriano.pilatti
Imagem Ilustrativa do Post: Al mal tiempo buena espalda // Foto de: Luis Hernandez // Sem alterações
Fonte: empóriododireito.com.br
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