PICICA: "Nestes tempos em que nunca se falou
tanto em crise política, com análises e opiniões conjunturais pipocando
por toda parte, o filósofo Giorgio Agamben insiste que a única forma de
compreender as raízes da profunda crise de legitimidade pela qual
passamos hoje é através de uma rigorosa arqueologia das raízes nossa
modernidade – uma arqueologia que passa a um só tempo pela política,
pela teologia, pela história e pela escatologia."
Agamben: Crise de legitimidade
[A destruição do Leviatã, de Gustave Doré, 1865; da capa de O mistério do mal, de Giorgio Agamben]
Por Giorgio Agamben.*
Nestes tempos em que nunca se falou
tanto em crise política, com análises e opiniões conjunturais pipocando
por toda parte, o filósofo Giorgio Agamben insiste que a única forma de
compreender as raízes da profunda crise de legitimidade pela qual
passamos hoje é através de uma rigorosa arqueologia das raízes nossa
modernidade – uma arqueologia que passa a um só tempo pela política,
pela teologia, pela história e pela escatologia.
No contexto da publicação de seu novo livro O mistério do mal: Bento XVI e o fim dos tempos, o Blog da Boitempo
publica um breve ensaio de Agamben, que demonstra que uma
cuidadosa reflexão sobre a aparentemente inaudita renúncia do Papa Bento
XVI talvez tenha muito mais a dizer sobre a situação e as
possibilidades de superação da crise dos próprios poderes laicos das
nossas democracias liberais. Para Agamben, a decadência das nossas
instituições democráticas atesta o fracasso da tentativa da modernidade
de fazer coincidir legalidade e legitimidade. E pontua: “É inútil
acreditar que se possa enfrentar a crise das nossas sociedades por meio
da ação – certamente necessária – do poder judiciário: uma crise que
investe contra a legitimidade não pode ser resolvida apenas no plano do
direito. A hipertrofia do direito, que pretende legislar sobre tudo, ao
invés, trai, através de um excesso de legalidade formal, a perda de toda
legitimidade substancial”.
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A renúncia
de Bento XVI deve ser considerada com extrema atenção por quem quer que
traga no coração o destino político da humanidade. Realizando a “grande
recusa”, ele deu provas não de covardia, como Dante escreveu talvez
injustamente sobre Celestino V, mas de uma coragem que adquire hoje um
sentido e um valor exemplares.
Deve ser
evidente para todos, de fato, que as razões invocadas pelo pontífice
para motivar a sua decisão, certamente em parte verdadeiras, não podem,
de forma alguma, explicar um gesto que, na história da Igreja, tem um
significado totalmente particular. E esse gesto adquire todo o seu peso
se lembrarmos que, no dia 4 de julho de 2009, Bento XVI havia deposto
justamente sobre o túmulo de Celestino V, em Sulmona, o pálio que ele
havia recebido no momento da investidura, provando que a decisão havia
sido meditada.
Por que essa
decisão nos parece exemplar hoje? Porque ela chama novamente com força a
atenção para a distinção entre dois princípios essenciais da nossa
tradição ético-política, dos quais as nossas sociedades parecem ter
perdido toda consciência: a legitimidade e a legalidade. Se a crise que a
nossa sociedade está passando é tão profunda e grave é porque ela não
põe em questão apenas a legalidade das instituições, mas também a sua
legitimidade; não apenas, como se repete frequentemente, as regras e as
modalidades do exercício do poder, mas também o princípio mesmo que o
fundamenta e legitima.
Os poderes e
as instituições não estão hoje deslegitimados porque caíram na
ilegalidade; ao invés, o contrário é verdade, ou seja, que a ilegalidade
é tão difundida e generalizada porque os poderes perderam toda
consciência da sua legitimidade. Por isso, é inútil acreditar que se
possa enfrentar a crise das nossas sociedades por meio da ação –
certamente necessária – do poder judiciário: uma crise que investe
contra a legitimidade não pode ser resolvida apenas no plano do direito.
A hipertrofia do direito, que pretende legislar sobre tudo, ao invés,
trai, através de um excesso de legalidade formal, a perda de toda
legitimidade substancial. A tentativa da modernidade de fazer coincidir
legalidade e legitimidade, buscando assegurar através do direito
positivo a legitimidade de um poder, é, como fica claro pelo irrefreável
processo de decadência em que as nossas instituições democráticas
entraram, totalmente insuficiente.
As
instituições de uma sociedade permanecem vivas somente se ambos os
princípios (que, na nossa tradição, também receberam o nome de direito
natural e direito positivo, de poder espiritual e poder temporal)
permanecem presentes e agem nela sem nunca pretender coincidir.
Por isso, o
gesto de Bento XVI é tão importante. Esse homem, que estava à frente da
instituição que exibe o mais antigo e significativo título de
legitimidade, revogou em questão com o seu gesto o próprio sentido desse
título. Diante de uma cúria que se esquece totalmente da própria
legitimidade e persegue obstinadamente as razões da economia e do poder
temporal, Bento XVI escolheu usar apenas o poder espiritual, do único
modo que lhe pareceu possível: isto é, renunciando ao exercício do
vicariato de Cristo.
Desse modo, a
própria Igreja foi posta em questão desde a sua raiz. Não sabemos se a
Igreja será capaz de tirar proveito dessa lição: mas certamente seria
importante que os poderes laicos aproveitassem a oportunidade para se
interrogarem novamente sobre a sua própria legitimidade.
* Publicado originalmente no jornal La Repubblica, em 16.02.2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto, para o IHU-Unisinos.
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A Boitempo acaba de lançar O mistério do mal: Bento XVI e o fim dos tempos, de Giorgio Agamben, uma curta e afiada análise da situação política das democracias em que vivemos a partir da renúncia do Papa Bento XVI, que extrai o “significado político do tema messiânico do fim dos tempos, tanto hoje como há vinte séculos”. Sabia mais sobre o livro aqui.
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Todos os títulos de Giorgio Agamben publicados no Brasil pela Boitempo já estão disponíveis em ebooks, com preços até metade do preço do livro impresso. Confira: Estado de exceção [Homo Sacer, II, 1] * PDF (Travessa | Google) O reino e a glória [Homo Sacer, II, 2] * ePub (Amazon | Travessa) Opus Dei [Homo Sacer, II, 5] * epub (Amazon | Travessa | Google) O que resta de Auschwitz [Homo Sacer, III] * PDF (Travessa | Google) Profanações * PDF (Travessa | Google)(Travessa | Google) Pilatos e Jesus
(Travessa | Google) O mistério do mal
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Giorgio Agamben nasceu
em Roma em 1942. Considerado um dos principais intelectuais de sua
geração, deu cursos em várias universidades europeias e
norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York
University em protesto à política de segurança dos Estados Unidos.
Responsável pela edição italiana das obras de Walter Benjamin, é
autor, entre outros, de Estado de exceção (2005), Profanações (2007), O que resta de Auschwitz (2008), O reino e a glória (2011), Opus dei (2013), Altíssima pobreza (2014) e o mais novo Pilatos e Jesus. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Fonte: Blog da Boitempo
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