abril 28, 2015

"Devir criança, malandro, bicha." Félix Guattari (Territórios de Filosofia)

PICICA: "Permanece na ordem do dia tanto do capitalismo quanto do socialismo burocrático a busca, a experimentação de um sistema autoritário fascista. Muitas forças tendem hoje à liberação das energias populares e do desejo próprio de toda espécie de minorias oprimidas, e para enfrentar essa situação os poderes vigentes não param de reforçar as estruturas repressivas. Mas não necessariamente de maneira massiva. A repressão é adaptada de modo que possa ser interiorizada mais facilmente. O que não significa que ela tenha sido suavizada. Suas formas muito óbvias são hoje mal toleradas e por isso o que se busca é uma espécie de miniaturização do fascismo. Não se usam mais, necessariamente, cassetetes ou campos de extermínio: procura-se de preferência controlar as pessoas com laços quase invisíveis que as prendem mais eficientemente ao modo de produção capitalista (ou socialista­burocrática) na medida em que elas o investem de modo inconsciente.

Toda uma série de dispositivos sociais trabalham na produção destes laços que constituem, por assim dizer, a textura das relações de produção. Louis Althusser os definiu como Aparelhos Ideológicos de Estado. Mas creio que ele se engana quando os define como sendo da ordem das superestruturas. A meu ver deveríamos acabar o mais rápido possível com este maniqueísmo de superestruturas ideológicas e infra-estruturas econômicas, que introduz causalidades em sentido único e cujas simplificações só servem para confundir as coisas. Mas não deixa de ser interessante agrupar, como o fez Louis Althusser, equipamentos como a escola, a prisão, a justiça, e instituições como a família, os sindicatos, etc. No continuum constituído por estes equipamentos e instituições é que se opera a formação coletiva da força de trabalho, ela própria inseparável das “infra-estruturas” econômicas. Com efeito o que é trabalhado pelas forças produtivas não são apenas fluxos de matéria-prima, fluxos de eletricidade, fluxos de trabalho humano, mas também fluxos de saber, fluxos semióticos reproduzindo atitudes coletivas, comportamentos de submissão às hierarquias, etc. Por exemplo, o trabalho de semiotização que é feito com a formação profissional não pode ser dissociado do trabalho de modelagem e de adaptação dos trabalhadores às relações existentes na oficina e na fábrica. Neste sentido, é precisamente a própria condição da reprodução das forças produtivas que se passa nos ditos Aparelhos Ideológicos de Estado, que poderiam ser chamados, mais simplesmente, de equipamentos coletivos, entendidos em sentido lato. Não se trata aqui de reprodução uma Ideologia, mas de reproduzir meios de produção e relações de produção."
 
Devir criança, malandro, bicha.
Félix Guattari.*
Permanece na ordem do dia tanto do capitalismo quanto do socialismo burocrático a busca, a experimentação de um sistema autoritário fascista. Muitas forças tendem hoje à liberação das energias populares e do desejo próprio de toda espécie de minorias oprimidas, e para enfrentar essa situação os poderes vigentes não param de reforçar as estruturas repressivas. Mas não necessariamente de maneira massiva. A repressão é adaptada de modo que possa ser interiorizada mais facilmente. O que não significa que ela tenha sido suavizada. Suas formas muito óbvias são hoje mal toleradas e por isso o que se busca é uma espécie de miniaturização do fascismo. Não se usam mais, necessariamente, cassetetes ou campos de extermínio: procura-se de preferência controlar as pessoas com laços quase invisíveis que as prendem mais eficientemente ao modo de produção capitalista (ou socialista­burocrática) na medida em que elas o investem de modo inconsciente.

Toda uma série de dispositivos sociais trabalham na produção destes laços que constituem, por assim dizer, a textura das relações de produção. Louis Althusser os definiu como Aparelhos Ideológicos de Estado. Mas creio que ele se engana quando os define como sendo da ordem das superestruturas. A meu ver deveríamos acabar o mais rápido possível com este maniqueísmo de superestruturas ideológicas e infra-estruturas econômicas, que introduz causalidades em sentido único e cujas simplificações só servem para confundir as coisas. Mas não deixa de ser interessante agrupar, como o fez Louis Althusser, equipamentos como a escola, a prisão, a justiça, e instituições como a família, os sindicatos, etc. No continuum constituído por estes equipamentos e instituições é que se opera a formação coletiva da força de trabalho, ela própria inseparável das “infra-estruturas” econômicas. Com efeito o que é trabalhado pelas forças produtivas não são apenas fluxos de matéria-prima, fluxos de eletricidade, fluxos de trabalho humano, mas também fluxos de saber, fluxos semióticos reproduzindo atitudes coletivas, comportamentos de submissão às hierarquias, etc. Por exemplo, o trabalho de semiotização que é feito com a formação profissional não pode ser dissociado do trabalho de modelagem e de adaptação dos trabalhadores às relações existentes na oficina e na fábrica. Neste sentido, é precisamente a própria condição da reprodução das forças produtivas que se passa nos ditos Aparelhos Ideológicos de Estado, que poderiam ser chamados, mais simplesmente, de equipamentos coletivos, entendidos em sentido lato. Não se trata aqui de reprodução uma Ideologia, mas de reproduzir meios de produção e relações de produção.

Deste ponto de vista, o que se passa na escola e na família pode ser relacionado. Com efeito, ambas contribuem para esta mesma “função de equipamento coletivo” da força de trabalho, modelando e adaptando crianças às relações de poder dominante. Os papéis dos protagonistas tornam-se às vezes até mesmo intercambiáveis. Espera-se do professor primário que ele desempenhe uma função parental, enquanto que os pais são convidados a serem bons “pais de alunos” ou professores em casa. As pessoas, de fato, só servem aqui para enquadrar, “canalizar” – no sentido da teoria da informação – um trabalho de semiotização que passa cada vez mais pela televisão, pelo cinema, pelos discos, pelas histórias em quadrinhos, etc. Por não agenciar tais processos maquínicos segundo finalidades assumidas coletivamente, chegamos a uma espécie de intoxicação semiótica generalizada. Quando todas as antigas territorialidades – o corpo, a família, o espaço doméstico, as relações de vizinhança, de faixa etária, etc. – são ameaçadas por um movimento geral de desterritorialização, procedemos à recriação artificial destas mesmas territorialidades, e nos enroscamos nelas ainda por cima quando sabemos que não as encontraremos mais e sua forma “original”. Daí as modas nostálgicas, que parecem depender menos de um fenômeno de moda do que de uma inquietação geral diante da aceleração da história.
Liberar uma energia de desejo…

Não apenas somos equipados semioticamente para ir à fábrica ou ao escritório, como somos injetados, além disso, de uma série de representações inconscientes, tendendo a moldar nosso ego. Nosso inconsciente é equipado para assegurar a sua cumplicidade com as formações repressivas dominantes. A esta função generalizada de equipamentos, que estratifica os papéis, hierarquiza a sociedade, codifica os destinos, oporemos uma função de agenciamento coletivo do sócius que não procura mais fazer com que as pessoas entrem os quadros preestabelecidos para adaptá-los a finalidades universais e eternas, mas sim que aceita o caráter finito e delimitado historicamente do empreendimentos humanos. É sob esta condição que as singularidades do desejo poderão ser respeitadas. Tomemos o exemplo de Femand Deligny [1] em Cevennes. Ele não criou ali uma instituição para crianças autistas. Ele tomou possível que um grupo de adultos e de crianças autistas pudessem viver juntos segundo seus próprios desejos. Ele agenciou uma economia coletiva de desejo articulando pessoas, gestos, circuitos econômicos e relacionais, etc. É muito diferente   o que fazem geralmente os psicólogos e os educadores que tem, a priori, uma idéia a respeito das diversas categorias de “inválidos”. O saber, aqui, não se constitui mais no poder que se apoia em todas as outras formações repressivas. A única maneira de “percurtir” o inconsciente, de fazê-lo sair de sua rotina, é dando ao desejo o meio de se exprimir no campo social. Manifestamente, Deligny gosta das pessoas chamadas de autistas E estas sabem disso. Assim como aqueles que trabalham com ele. Tudo parte daí. E é para ai que tudo volta. Desde que somo obrigados por função, a cuidar dos outros, a “assisti-los”, uma espécie de relação ascética sadomasoquista se institui, poluindo em profundidade as iniciativas aparentemente mais inocentes e mais desinteressadas. Imaginemos que “profissionais de autista”, como as pessoas do AMIPI, [2] se proponham a fazer “como Deligny” imitando seus gestos, organizando nas mesmas condições. O que é que aconteceria? Eles não fariam mais do que “aprimorar” sua tecnologia microfascista, que até agora não tinha encontrado nada melhor do que se enfeitar com o prestígio “cientifico” do neobehaviorismo anglo-saxão. Não     ao nível dos gestos, dos equipamentos, das instituições, que o verdadeiro metabolismo do desejo – por exemplo, o desejo de viver – encontrara se caminho, mas sim no agenciamento de pessoas, de funções, de relações econômicas e sociais, voltado para uma política global de libertação.

Quando lancei a idéia, há uns quinze anos atrás, de uma análise institucional [3] para se opor à psicanálise, e de analisadores coletivos para desespecializar a abordagem do inconsciente queria marcar a necessidade de uma abertura dos problemas da vida cotidiana nas instituições em direção a toda uma micropolítica, todo um militismo de um novo tipo. Infelizmente, fizeram da análise institucional e dos analisadores a última palavra em técnicas psicossociológicas, e conseguiram colocá-los a serviço de uma melhoria geral das relações humanas, isto é, em última instância, de uma adaptação às diversas situações de alienação.

Mas, hoje, as estratificações mentais e profissionais, neste domínio das “coisas sociais”, tendem talvez a tomar-se menos óbvias. Começa-se a pressentir vias de passagem – uma “transversalidade” – entre problema de urbanismo, de burocratização, de neurose, de micropolítica no seio da família com as crianças, no seio do casal com o falocratismo, de vida coletiva, de ecologia, etc. Estamos na presença, a meu ver, de uma espécie de processo de pesquisa de massa. Não são mais os especialistas do pensamento ou do militantismo que propõem novos modelos, mas pessoas diretamente interessadas que experimentam novas maneiras de viver. O que, a meu ver, estarão cada vez mais em causa, por exemplo, no domínio da educação, não será a aplicação de métodos pedagógicos no sentido em que se fala dos “métodos Freinet”, [4] mas de microagenciamentos analítico-militantes suscetíveis de se cristalizar em tomo de uma classe, de uma escola, de um grupo de crianças, etc. Em que direção se procura um desejo coletivo? Quais intervenções poderiam ajudá-lo a sair das territorialidades que o cercam? O que é poderia fazer, não enquanto professor, mas enquanto sinto que aquilo que acontece na classe me diz respeito? E exatamente o contrário das perspectivas do psicologismo, e do “psicanalismo”. [5] Não se trata mais de restringir o inconsciente, de reduzi-lo a complexos universais, a transferências personalizadas, de deitá-lo sobre divãs especializados, de submetê-lo ao pretenso saber do analista… mas de abri-lo de tudo quanto é jeito para novas vias – por vezes linhas de fuga minúsculas, e outras vezes possibilidades de trabalhar em escala maior, pela transformação da sociedade.

Construir sua própria vida, construir algo de vivo, não somente com os próximos, com as crianças- seja numa escola ou não – com amigos, com militantes, mas também consigo mesmo, para modificar, por exemplo, sua própria relação com o corpo, com a percepção das coisas: isso não seria, como diriam alguns, desviar-se das causas revolucionárias mais fundamentais e mais urgentes? Toda questão está em saber de que revolução se trata! Trata-se, sim ou não, de acabar com todas as relações de alienação – não somente as que pesam sobre os trabalhadores, mas também as que pesam sobre as mulheres, as crianças, as minorias sexuais, etc., as que pesam sobre sensibilidades atípicas, as que pesam sobre o amor aos sons, às cores, às idéias… Uma revolução, em qualquer domínio que seja, passa por uma libertação prévia de uma energia de desejo. E, manifestamente, só uma em cadeia, atravessando as estratificações existentes, poderá catalisar um processo irreversível de questionamento das formações de poder às quais está acorrentada a sociedade atual.
Notas.
1. N. do Trad.: Deligny é o criador de uma comunidade agrária na região de Cevennes, para crianças autistas, distante dos estabelecimentos especializados ou das experiências da antipsiquiatria. Viver com crianças autistas sem, por isso, “trata-las” ou transformar-se em especialista. Os membros da comunidade não são n necessariamente psicólogos, médicos ou enfermeiros. O próprio Deligny é professor primário. Esta experiência está documentada na revista Recherches, nº 18, Cahiers de I’mmuable, 1 e 2, abril de 1975, CERFI, e num filme de longa-metragem intitulado de Cegamin Ià.

2. Association d’Aide Maternelle et lntellectuelle pour les Personnes lnadaptées (Associação de Ajuda Materna e Intelectual para Pessoas Desadaptadas). Ver a este propósito a nota de Charles Brisset, na revista Autrement, nº 4, p. 180.

3. N. do Trad.: O termo “Análise Institucional” foi criado por Guattari, para nomear uma tendência na ação teórica e prática que se tomou movimento a década de 60 na França. Numa sociedade modernizada e bem sucedida do ponto de vista técnico e econômico e muito defasada nas formas de sociabilidade e nas estruturas psicossociais, um intenso movimento de abalos microssociais percorria todo o seu corpo. Questionava-se todas as formas de existência, inclusive a do pesquisador. Fazia-se necessária a construção de uma ponte conceitual entre os universos heterogêneos das ciências humanas, para captar o movimento de produção da realidade e despistar falsos problemas. Neste contexto fundou-se o FGERI, em 1966, agrupando psiquiatras vindo dos movimentos de psicoterapia institucional (cf. nota 1 de “A Transversalidade”), e profissionais de movimentos semelhantes em outras áreas – professores, arquitetos, urbanitas, militantes do movimento estudantil, psicanalistas, sociólogos, antropólogos, psicossociólogos, etc. -, tendo participado destas discussões, entre ou, Dolto, Mannoni, Lacan, Laing, Cooper e vários líderes políticos. O grupo viveu um acirrado processo de reflexão crítica, não só acerca da atividade de cada um como pesquisador, mas de todas as suas outras atividades sociais, inclusive a amorosa. A reflexão sob seus projetos, seus problemas de vida cotidiana e de desejo, tornava-se condição indispensável para captar seu objeto de pesquisa. Trabalho analítico do qual cada um tirava proveito não só conceitual, mas também pessoal. Vai-se constituindo assim um método e análise institucional válido para a pesquisa teórica, nas ciências humanas, para a intervenção psicossocial e para a experimentação social em geral. Método de análise em situação. Seu objeto se define como sendo a problemática social real, isto é, o lugar do sujeito inconsciente do grupo-suporte dos investimentos de desejo de seus membros – que não se confunde com as leis objetivas que definem as relações que os indivíduos estabelecem entre si e com a instituição. Toda intervenção criadora tem como condição o acesso à “transversalidade”, lugar do sujeito inconsciente do grupo, lugar do poder real. A análise, instaurando o espaço de uma formulação permanente da demanda inconsciente e a possibilidade de sua leitura através da interpretação da transversalidade, cria condições para que o grupo assuma o sentido de sua práxis. Recupera-se a dimensão analítica da instituição e no mesmo gesto recupera-se a dimensão histórica da psicanálise – toda análise é institucional. O termo “psicanálise aplicada” deixa de ter sentido. Trata-se sempre de uma intervenção micropolítica abrindo a possibilidade de uma prática ao mesmo tempo de análise e de mudança. Análise reveladora da singularidade do processo de um “agenciamento coletivo de enunciação” – não só composto de indivíduos, mas dependente de um certo funcionamento social, econômico, institucional, micro e macropolítico – que contribui para a mutação pessoal e social e, portanto, para o desbloqueamento das lutas políticas.

Maio de 68 foi a radicalização e a generalização do movimento que havia gerado entre outras linhas a da Análise Institucional. Muitos dos membros do FGERI foram ativos no 22 de Março (cf. nota 10 de “O Fim dos Fetichismos”) e em outros lugares da contestação em 68, nos vários setores da vida social. Revelaram-se os limites e as contradições da “grande ilusão” da revolução institucional generalizada, levando a um novo deslocamento: a consciência da impossibilidade de conciliação de universos teóricos heterogêneos e da necessidade de se construir novos campos teóricos e políticos.
Neste momento resta-nos da Análise Institucional: seja a sua reificação enquanto gadget último tipo, tanto no mercado das técnicas de psicologia social quanto no das disciplinas do saber acadêmico, ou seja, sua transformação em fetiche, instrumento de resistência à mudança, seja seu desenvolvimento através da reapropriação efetiva destas idéias, técnicas e inovações por “agenciamentos coletivos de enunciação” e pelos movimentos sociais, levando à formulação de novas propostas. Entre estas a intensa produção teórica de Guattari e Deleuze na década de 70, da qual o leitor tem nesta coletânea uma amostra.

No Brasil, na década de 70, ocorrem isoladas tentativas de contato com a produção do movimento de análise institucional na França, cabendo aqui citar a contribuição de Chaim Katz e Célio Garcia. É, no entanto, na década de 80 que este contato se intensifica, observando-se tanto a busca de instrumentos para o pensamento crítico quanto a importação da versão reificada ou a reificação da análise na importação.

Como bibliografia básica sobre o assunto, sugerimos, além da citada na nota 1 de ”A Transversalidade”, as seguintes obras:

– Lourau, René, Análise Institucional, Vozes, RJ, 1975.

– Revista de Cultura Vozes – “Análise Institucional – Teoria e Prática”, n? 4, 1973, ano 67.

N. do Trad.: Freinet, professor primário, cria um método de autogestão em pedagogia. O movimento que toma como modelo esse método tem o seu nome.

(5)          N. do Trad.: “Psicanalismo” é um termo criado por Robert Castel e que deu título ao seu livro O Psicanalismo, Graal, Rio de Janeiro, 1978.

*Versão em língua portuguesa originalmente publicado em: GUATTARI, Félix. Revoluções Moleculares: pulsões políticas do desejo. Editora Brasilense: São Paulo, 1981. Tradução da preciosa e inspiradora Suely Rolnik.

**A imagem foi roubada do astucioso artista de rua Banksy. Para conhecer outras de suas criações e rupturas, acesso o território: http://banksy.co.uk/menu.asp

Fonte: Territórios de Filosofia

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