PICICA: "Acabei de assistir a duas palestras recentes –
em vídeos – do prof. Eduardo Viveiros de Castro e quero recomendá-las
aos meus leitores. O primeiro vídeo- palestra tem como título: Filosofia, Antropologia e o Fim do Mundo (http://vimeo.com/78892524); a segunda palestra tem como título: III Conferência Curt Nimuendajú (http://vimeo.com/81488754). Recomendo vivamente ambas.
Nesta postagem farei um breve chamamento para as duas palestras e,
desde já, assumo que sou absolutamente fiel às ideias de Viveiros de
Castro, praticamente recuperando as suas palavras; exercito, porém, uma
certa edição das palestras e então dou ênfase – porque recupero
longamente a fala de Viveiros – em relação a algumas questões em
detrimento de outras – e, por isso, o melhor para os leitores que
desejarem acompanhar o pensamento do antropólogo na íntegra será
assistir os vídeos. Farei também uma reflexão sobre o diálogo – ou a
inexistência do diálogo – entre psicanálise e a nova antropologia tendo
presente a dramática situação que estamos atravessando do ponto de vista
civilizacional. Particularmente quero chamar a atenção dos leitores
para o novo campo de luta, uma guerra de fato, que a antropologia – via
Bruno Latour e Viveiros de Castro – vislumbra entre os Terranos e os Humanos:
quem são os participantes dessa luta, e como as ¨alianças¨ vêm se
estabelecendo. E o que é fundamental: como as psicanálises se posicionam
frente a esse novo campo de luta, frente a essa – nas palavras de Bruno
Latour – guerra que já estamos vivendo."
Notícias sobre o fim do mundo
Eduardo Viveiros de Castro
Acabei de assistir a duas palestras recentes – em vídeos – do prof. Eduardo Viveiros de Castro e quero recomendá-las aos meus leitores. O primeiro vídeo- palestra tem como título: Filosofia, Antropologia e o Fim do Mundo (http://vimeo.com/78892524); a segunda palestra tem como título: III Conferência Curt Nimuendajú (http://vimeo.com/81488754). Recomendo vivamente ambas.
Nesta postagem farei um breve chamamento para as duas palestras e, desde já, assumo que sou absolutamente fiel às ideias de Viveiros de Castro, praticamente recuperando as suas palavras; exercito, porém, uma certa edição das palestras e então dou ênfase – porque recupero longamente a fala de Viveiros – em relação a algumas questões em detrimento de outras – e, por isso, o melhor para os leitores que desejarem acompanhar o pensamento do antropólogo na íntegra será assistir os vídeos. Farei também uma reflexão sobre o diálogo – ou a inexistência do diálogo – entre psicanálise e a nova antropologia tendo presente a dramática situação que estamos atravessando do ponto de vista civilizacional. Particularmente quero chamar a atenção dos leitores para o novo campo de luta, uma guerra de fato, que a antropologia – via Bruno Latour e Viveiros de Castro – vislumbra entre os Terranos e os Humanos: quem são os participantes dessa luta, e como as ¨alianças¨ vêm se estabelecendo. E o que é fundamental: como as psicanálises se posicionam frente a esse novo campo de luta, frente a essa – nas palavras de Bruno Latour – guerra que já estamos vivendo.
Antes de iniciar quero dar um depoimento pessoal da experiência que tive ao assistir a esses vídeos. Penso que a principal virtude dos antropólogos em tela é a coragem. Fiquei completamente mobilizada pela coragem e lucidez de Eduardo Viveiros de Castro, e sinto que, através das palestras, mobilizou-se em mim também coragem e lucidez. Penso que só neste início do século XXI começamos a perceber a importância do Anti Édipo e dos Mil Platôs de G. Deleuze e F. Guattari. Há uma nova sensibilidade em curso que a antropologia de Viveiros de Castro capta e transforma em projeto político[1].
I) Filosofia, Antropologia e Fim do Mundo
O antropólogo parte de duas observações: qual a nossa condição, qual o nosso momento, na tradição cultural ocidental; e como essa tradição é compreendida pelos habitantes da América indígena.
Comecemos pela primeira questão: houve mortes sucessivas das grandes transcendências nos últimos séculos. E. Kant partiu de Deus/ do Homem e do Mundo. Essas três instâncias foram morrendo sucessivamente e isso define a presente condição: 1) Deus morreu; 2) o Homem moderno morreu e agora 3) temos que enfrentar a morte do Mundo, o fim do mundo. Sem Deus, sem Homem e sem Mundo. Três séculos, três mortes.
Hoje há uma inquietação imensa; as mortes suscitam crises. Podíamos viver sem Deus, podíamos viver sem o Homem; podemos viver sem Mundo? Como o pensamento antropológico e filosófico se reorganiza em torno dessas mortes?
Davi Kopenawa, líder dos Yanomamis, tem um escrito publicado em francês e em inglês chamado A queda do céu – esse livro conta com a participação do antropólogo Bruce Albert[2]. Nele Davi Kopenawa diz que ¨os brancos dormem muito, mas só conseguem sonhar com eles mesmos¨. Essa frase para Viveiros de Castro contém uma imagem do pensamento, contém uma teoria e uma crítica da filosofia ocidental: uma crítica do nosso projeto civilizatório.
A frase nos alerta para a ideia que os Yanomamis ¨não sonham só com eles mesmos¨. É preciso, todavia, frisar que nós os vemos de outro jeito, já que dizemos que os índios são animistas, narcisistas, primitivos e só sabem ler a si mesmos no mundo inteiro! Davi pensa exatamente o contrário e diz que ¨são os ocidentais que não veem nada, ficam só cabeceando de sono e não veem nada¨.
O pensar é essencialmente sonhar para os Yanomamis: sonhar com o que não é humano, ter a capacidade de sonhar e de sair da humanidade. Davi Kopenawa nega a nós, os brancos, essa capacidade porque para nós, brancos, o pensamento está concentrado no ¨mundo da mercadoria¨, porque só vemos a nós mesmos. Como os brancos só pensam nas mercadorias, só sonham consigo mesmos – não saem de si mesmos, não saem da humanidade. Não sonhar consigo mesmo significa para Davi, sonhar com os seres das florestas, os seres invisíveis, as almas, os animais.
O pensamento ocidental tem uma trajetória e nela o pensar foi se introjetando e se tornando uma contemplação narcísica de si mesmo: o pensador ocidental investiga a cognição, a imaginação, o entendimento do próprio homem. Os brancos só sonham então consigo mesmos.
Davi está denunciando o que Freud diz: tudo que o homem sonha é projeção: plantas, animais, etc. É sempre conosco mesmos que sonhamos. É possível pensar outra coisa e então sair de si mesmo? Os brancos já não podem fazer isso.
Davi Kopenawa pertence a uma cultura xamânica, e nela o acesso à realidade se dá através do sonho, com o uso de drogas e alucinógenos e isso é muito diferente do aprendizado da leitura e da escrita dos brancos. Por isso os brancos ficam quando sonham como um ¨machado no chão¨, dormindo como um ¨machado no chão¨ – como se fossem objetos ou como se estivessem mortos: sonhando consigo mesmos. Ao contrário disso, para uma cultura xamânica, o sonho é a condição de encontrar uma exterioridade, um fora-exterior, e os brancos tem uma incapacidade de atingir o fora, um exterior pelo pensamento. Acrescente-se a isso que os brancos estão apodrecendo a Terra para tirar petróleo, minério, e com isso o céu vai cair e a humanidade vai entrar embaixo da terra e virar fantasma! Quem mantém tudo isso ainda em pé – a Terra e o Céu – são os xamãs. A queda do céu já aconteceu várias vezes e sempre o motivo foi o mesmo: o que nós, brancos, chamamos de crise ecológica.
As cosmologias indígenas falam em ciclos sucessivos de destruição e criação: desabamentos sucessivos da Terra. Hoje, os brancos promovem sem freios a extração de minérios, o desmatamento e então o mundo vai acabar. Duas questões propostas por Davi Kopenawa: 1) só sabem, os brancos, pensar em si mesmos; 2) o mundo vai acabar. Esta acusação de Davi ¨que nós só sonhamos conosco mesmos¨ exige uma resposta. Como responder a isso? Como responder à imanência? À exterioridade? No ocidente isto está reservado à arte – e não à ciência e à técnica.
Para os indígenas fazemos objetos e máquinas prodigiosos, mas sociologicamente somos imbecis, agressivos, escandalosos, primitivos, toscos nas interações. Eles ficam seduzidos pelo prodígio técnico do ocidente e tem a tentação de separar a técnica da sociedade. É possível separar as duas coisas? Para os Yanomamis não tem jeito; eles recusam a cultura do branco in totum. Estamos – diz Viveiros de Castro – prensados contra nós mesmos e contra os outros povos, já que os três pilares da nossa civilização – Deus, Homem e Mundo – estão em crise. Nosso narcisismo é incurável! Os outros povos não podem nos ajudar e nós estamos ameaçando levar todos para o abismo.
Que resposta vamos dar aos outros povos que nos ¨acusam de só sonhar conosco mesmos¨? Que fazer diante disso?Os brancos ¨só sonham consigo mesmos¨: os brancos não incluem os não-humanos no seu universo político!
O fim do mundo é um tema riquíssimo do ponto de vista filosófico e político – afirma Viveiros de Castro. Aliás, esse tema são os índios quem sabem pensar, pois os brancos acabaram com o mundo deles, acabaram com o mundo deles repetidas vezes.
A perspectiva de uma crise ambiental em escala mundial nos coloca em uma situação parecida com a dos índios. Nós corremos o risco de sermos dizimados por nós mesmos! Como será viver após o fim do mundo? É preciso retomar a questão do fim do mundo no pensamento. O que está acabando é o mundo que começou em 1500. O fim da era moderna chegou.
2) III Conferência Curt Nimuendajú
Essa conferência, proferida no final de 2013 por Viveiros de Castro, é bastante longa e aconteceu no Centro de Estudos Ameríndios (CESTA/USP) em homengem a Curt Nimuendajú, que fez o primeiro trabalho moderno de etnologia, há exatamente 100 anos – em 1914 – em torno das lendas de criação e destruição e principalmente da destruição do mundo, como fundamento da religião dos xamãs Apopukuvas – Guarani. A palestra então também homenageia os guaranis que hoje são o símbolo concreto da ofensiva final contra os povos indígenas.
Nimuendajú teve seguidores na antropologia, por exemplo, os trabalhos de Pierre Clastres e de Helena Clastres e vários outros etnólogos; hoje, sua perspectiva é retomada em teses e dissertações de mestrado. Para Niemandajú como para esses trabalhos recentes, os Guaranis tinham e tem um pensamento pleno, um pensamento especulativo, escatológico e cosmológico pleno de direitos.
Ora, nós também, ocidentais brancos, estamos especulando e dando voltas em torno da questão do fim do mundo. As lendas científicas e outras do ocidente especulam cada vez mais esse tema e então tal especulação tornou-se um problema de todos.
Muitas questões foram discutidas nessa longa palestra e eu vou me ater a duas delas: a) a catástrofe que nos espreita e b) a proposta política em curso trazida por Bruno Latour e Viveiros de Castro.
a) É um equívoco chamarmos o perigo que nos espreita de ¨crise ambiental¨ e isso ficará claro a seguir quando o antropólogo demonstra quão mais sério é a nossa questão. Para ele, o mais importante problema que atravessamos é a entrada do planeta no antropoceno – a terceira época geológica do período quaternário e que, prevê-se, durará muito mais tempo do que a espécie que o batizou! Vale dizer, os efeitos da ação humana sob o sistema Terra durará mais que a própria espécie. O antropoceno – a era do homem – refere-se a um novo regime termodinâmico: e este é um mundo novo e não temos ideia do que vai acontecer. Temos claro uma série de projeções, de especulações – próxima, aliás, como vimos, dos Guaranis – de como o mundo vai acabar. Nosso cenário é tão inquietante hoje quanto o dos Guaranis.
Mudança climática é na verdade um dos parâmetros para compreendermos a atual crise. Há muitos outros parâmetros – que delineiam muitas outras mudanças – para medir essa crise.
Antropoceno, apesar de ter o nosso nome, não nos elogia! O que se quer dizer com ele é que a humanidade tornou-se uma força geofísica. Alguns argumentam que não é a humanidade inteira que se tornou uma força geofísica, mas o capitalismo, as classes dominantes, as sociedades privilegiadas e, principalmente, os países que consomem combustíveis fósseis e energia em geral, mas isso tem efeitos sobre a população de todo o planeta. O problema é que a população inteira do planeta tende a adotar os padrões de consumo energéticos modelados nos padrões de consumo dos países que conduzem as ¨locomotivas antropocênicas¨, os países que conduzem as mudanças climáticas.
Então, há uma espécie de inversão de figura-fundo que caracteriza a relação entre humanidade e ambiente! Retomemos a argumentação: antropoceno designa o fato de que a humanidade se tornou uma força geofísica.O nome Gaia vem também junto à noção de antropoceno, só que no sentido inverso. A Terra tornou-se um personagem, um interlocutor político, ao mesmo tempo que o homem tornou-se uma força geo-política. É como se tivéssemos nós, os homens, passado para o fundo e a Terra tivesse passado para a frente. Uma inversão súbita entre figura e fundo que só pode dar errado! É uma inversão fantasmagórica e aterrorizante e nela desaparece a noção de escalas: uma escala de tempo geológica e uma escala de tempo antropológica – essas escalas eram de ordem e magnitudes completamente diferentes. O que se vê hoje é o colapso dessas escalas a tal ponto que há mudanças na estrutura da atmosfera, na circulação dos ventos que se modificam em um tempo mais rápido que os sistemas sociais! E isso é, no mínimo, irônico e, no máximo, aterrorizante.
Essas considerações levam a outra implicação: à ideia do fim da natureza como um pano de fundo imóvel ou muito lento contra o qual nós evoluímos, contra o qual podíamos medir e calibrar nossas ações. O que estamos vivendo hoje é a inversão das escalas, o colapso das escalas.
Dito de outra maneira trata-se da ideia mesmo de destruição do ambiente; num certo plano a noção de ambiente desapareceu visto que houve uma interiorização – introspecção – do homem, e as plantas e animais passaram a ser lidos como internos ao ambiente humano e não mais o homem como parte do ambiente!
Isabella Stengers, filósofa belga, recusa a ideia de crise ambiental, recusa a ideia mesmo de crise – a ideia de crise supõe que se vá sair dela e nós não vamos sair do que está acontecendo, porque já aconteceu, nós estamos vivendo os efeitos da ação humana que há muito aconteceu. Isabelle Stengers prefere o termo catástrofe ambiental e muitos insistem que essa é uma visão catastrofista, melancólica, pessimista – dessa mesma visão partilhavam, segundo Nimuendajú, os Guaranis na figura dos xamãs Apokokuvas-guarani entre 1905 e 1912, período de sua pesquisa. Esse pessimismo, dizia o etnólogo no início do século XX, era próprio de uma raça, próprio de um povo cansado de lutar, cansado de ser perseguido. Para os Guaranis, a própria terra estava cansada. Mas como veremos os Guaranis não são apenas pessimistas, pois imaginam também uma renovação do mundo. Tudo isso, e principalmente o pessimismo e a melancolia, ecoa a nossa situação atual.
b) Bruno Latour entende hoje que estamos em um estado de guerra; ele diz também que há uma diferença fundamental entre estado de guerra e estado de polícia, pois na guerra não há árbitros, não há um terceiro termo. A guerra se decide entre duas partes, sem árbitro. E nessa guerra estão de um lado os Humanos e ele diz isso com evidente ironia. Os Humanos, para Latour, somos nós, os modernos que pretendem conquistar todo o planeta para o padrão de consumo americano. Aos Humanos Latour opõe os Terranos – os habitantes da Terra. E é preciso decidir de que lado estamos nessa guerra. Latour diz também que essa de-cisão não será tomada tendo como base argumentos científicos e isso porque o consenso científico é maciço no sentido de que existe uma grande crise ambiental e que essa crise é de origem antrópica, antropocênica e, todavia, esse consenso não impede que haja contestação! Não é bem assim dizem uns; não é antropocênica dizem outros. Assim, a ciência pode apresentar dados irrefutáveis e isso não impedirá e não impede a controvérsia e a continuidade da ordem existente. E isto porque a controvérsia não é entre ciência e não-ciência, mas é uma controvérsia política; é uma controvérsia em torno do tipo de Mundo, do tipo de Terra que queremos viver. Trata-se então de uma disputa de valores. Os índios são uma espécie de resposta viva: eles estão a nos apontar que existe outra forma de viver, outros Mundos além daquele dos brancos!
Lembro também que – para Viveiros de Castro – os climatocéticos são negacionistas, por analogia, com os historiadores que diziam e dizem que não houve extermínio em massa dos judeus, não existiu a shoah e isso tudo não passa de conspiração do Estado de Israel! São os negacionistas. Os que estão preocupados com a catástrofe ecológica também chamam os que põe em dúvida a crise atual de negacionistas: negam o óbvio e através da negação afirmam em que Mundo querem afinal viver!
No final de sua última conferência, em fevereiro de 2013, em Edimburgo a respeito da Gaia e do Antropoceno, Bruno Latour diz que há uma guerra entre os Terranos e os Humanos. E então ele nomeia os Humanos: são os modernos. Ou seja, os Humanos não é para ele o Homo Sapiens. Os Humanos são todos os entes que fazem parte da modernidade, do projeto moderno e então inclui entre os Humanos os computadores, os animais domésticos, as armas químicas, os cachorros policiais. Todos esses entes fazem parte do exército dos Humanos. Os Terranos não se sabe, todavia, bem quem são. Quem seriam os Terranos se pergunta Latour? Ali estariam todas as espécies em extinção (sementes/ animais/água/ar/humanos/polo norte/terra), inimigos naturais dos Humanos, ameaçados ontologicamente. Mas entre os Terranos, claro, está estão também humanos. São o ¨povo de Gaia¨, numa ficção positiva do termo. O ¨povo de Gaia¨ está em oposição ao ¨povo da Natureza¨ que são os modernos, que acreditam em uma natureza transcendente, com leis únicas, absolutamente racional, dominável e controlável – uma ficção negativa do termo.
Latour se pergunta: é possível aceitar como ¨povo de Gaia¨, a pachamama, a deusa natureza, de que falam os ameríndios e outros povos não modernos? Para Latour, esses povos têm se adaptado à retórica ambientalista ocidental para, compatibilizando suas cosmologias e seus projetos existenciais, serem ouvidos pelas sociedades dominantes do hemisfério norte. Latour não acredita que esses povos possam fazer parte do ¨exército dos Terranos¨. Parece que há nesses povos respeito pela Terra, mas só parece, pois são impotentes na medida que sua tecnologia é fraca e sua população ínfima. Esses povos, de acordo com Latour, chamados de tradicionais sem tecnologia, em pequenos número, não tem um modo de vida que os qualifique para o ¨exército dos Terranos¨.
Para Viveiros de Castro, é exatamente isso que Latour lê como impotência que pode ser um recurso crucial para um futuro pós-catastrófico que, diga-se de passagem, Latour acredita que vai acontecer. Para o antropólogo brasileiro somos nós os brancos industrializados, em rede, estabilizados farmacologicamente que terão que ¨descer¨ – ¨perder as proporções gigantescas de vida¨ – e isso em todos os sentidos.
Pergunta-se ainda Viveiros de Castro: será que são de fato minorias e o pequeno número demográfico deve ser levado em conta como propõe Latour? A ONU estima oficialmente em 370 milhões de pessoas o número de minorias indígenas no planeta – estariam encapsuladas nos Estados Nação, mas não coincidiriam com os Estados Nação Ou seja, enfatiza Viveiros:a minoria não é tão minoria assim. É pois um ¨exército de Terranos¨ considerável!…
III) E a Psicanálise com isso?
Tenho alguns palpites a respeito disso, e desde já insisto que as idéias que seguem é de minha inteira responsabilidade, e nem Bruno Latour nem Eduardo Viveiros de Castro têm qualquer participação nelas, nas ideias. Também enuncio desde já que se trata de uma brincadeira séria, muito séria, e que foi escrita com total liberdade criadora e com muito bom humor. Engraçada e pessimista sob alguns aspectos; séria e esperançosa sob outros.
Por exemplo, se Bruno Latour e Viveiros de Castro se submetessem a uma psicanálise clássica e oferecessem logo no primeiro dia para um zeloso psicanalista as duas ideias discutidas acima – notícias sobre o fim do mundo e a nova aliança política proposta entre Terranos x Humanos – e insistissem, como fazem acima, que há uma guerra planetária em curso; se isso acontecesse, temo que seriam considerados psicóticos, delirantes, com estranhas e perigosas fantasias. E, se o eminente psicanalista fosse uma pessoa medrosa, creio também que, além de diagnósticá-los, convocaria discretamente uma ambulância, e eles seriam gentilmente retirados do consultório do analista em camisa de força e imediata e fortemente medicados!
É engraçado e trágico pensar isso, mas lastimo dizer, a probabilidade de isso acontecer seria grande! Como posso supor – o leitor tem todo direito de me perguntar – que isso aconteceria? Como a ¨ciência da escuta¨ não levaria em conta a lucidez do prof. Viveiros de Castro? Por que consideraria suas agudas percepções como fantasias psicóticas delirantes? Antes de responder, prossigo por um momento no meu argumento: as percepções dos antropólogos que, diga-se de passagem, supõem dados oferecidos pela própria ciência climática, têm também por base uma gigantesca desconstrução da subjetividade moderna. Não é possível chegar a tais percepções pela via do intelecto. Ambas as questões envolvem infinitos des-locamentos emocionais, infinitas outras desconstruções. O que está em curso nos antropólogos citados – e numa grande massa de indivíduos – é então uma gigantesca des-construção da subjetividade moderna. Ora, a psicanálise também desconstrói a subjetividade moderna, já que enuncia um sujeito duplo – consciente e inconsciente – e é nisso que reside seu potencial crítico. A desconstrução subjetiva e emocional, todavia, do ¨povo de Gaia¨ foi muito além e desconstruiu e desconstrói a própria subjetividade psicanalítica! O ¨povo de Gaia¨ está deixando de ser antropocêntrico e quebrou as fronteiras entre-mundos, incluindo no seu universo político, na Terra que querem viver, outros seres: as plantas, os animais, os seres invisíveis, o ar, o clima, as sementes, Gaia.
As duas questões discutidas nessa palestra pelo antropólogo Viveiros de Castro só poderão então ser escutadas por aqueles que se desconstruíram emocional e cognitivamente na direção do ¨povo de Gaia¨.
Os antropocêntricos não podem então escutar e compreender as propostas acima. Dou exemplos: Eduardo Viveiros de Castro fez, em 2010, uma palestra na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo – SBPSP – intitulada ¨O Anti-Narciso: lugar e função da antropologia no mundo contemporâneo¨. A palestra do antropólogo foi publicada no volume 44 da Revista Brasileira de Psicanálise[3]. Junto com a palestra dois comentadores escolhidos a dedo entre os analistas da Instituição foram convidados a comentar a fala de Viveiros de Castro. Para meu espanto eles não compreenderam nada da palestra do antropólogo! Dediquei a isso a postagem de agosto/2012 e até agora me sinto traumatizada com esse debate, já que é óbvio que os psicanalistas poderiam dialogar e discordar de forma radical das ideias expostas sobre o pensamento ameríndio e a nova antropologia. Mas, não poderiam – como foi o caso – nada compreender daquilo que foi exposto! Nem as piadas eles compreenderam! Isso que aconteceu foi traumático, mas também revelador para mim de que as novas sensibilidades não são passíveis de serem aprendidas pela psicanálise clássica. E por psicanálise clássica estou entendendo todos aqueles que vivem sob o espírito de O mal estar da civilização, sob a égide de Totem e Tabu e com a bíblia embaixo do braço, refiro-me ao livro O Futuro de uma Ilusão de S. Freud. Assim como o espírito da política é Maquiável – e o PT está aí para demonstrar quão verdadeiro é a presença desse Pai-fundador na política atual -, a psicanálise que eu chamo clássica vive sob a égide de O Mal estar da Civilização e não abre mão da civilização de ¨mão única¨ proposta por Freud, e nela a ideia que a repressão instintual é inquestionável ainda que o preço sejam as guerras – mundiais diga-se de passagem. Lembremo-nos quanto Hebert Marcuse em Eros e Civilização tentou dar um basta à civilização de mão única! O problema é que o mundo mudou e o preço hoje deixou de ser tão somente (o que já era bastante!) as guerras mundiais, o problema hoje é o fim do mundo! Mas entre a realidade e o pai-fundador nessas premissas fechadas – porque excetuando-as abraço eu também o pai-fundador – os psicanalistas clássicos dão as mãos para o pai-fundador e não para a realidade sob seus olhos!
Centenário de Totem e Tabu, escrito por S. Freud e publicado em 1913, o livro mereceu uma re-edição e também debates no Brasil. Freud visava, como se sabe, formular uma nova ¨cosmologia¨, um novo pensamento sobre a condição humana e o mundo. Nela, narra a origem da hominização a partir de um passo fundante que jogou o homem dentro da sociedade, regida doravante por regras (tabus) e não mais pela força do patriarca despótico – figura cuja a força se manifesta nos totens[4]. No centro de nossa cultura temos agora, a partir de Totem e Tabu, um assassinato e um repasto antropofágico. Eis que tornamo-nos humanos após uma insurreição dos filhos, membros da horda primeva, que revoltados contra o despotismo do pai, tomam-lhe o poder, matam-no e devoraram-no. Diz ainda o articulista: ¨esta história estaria esquecida, enterrada na origem da humanidade¨[5], mas seria atualizada nos indivíduos através do complexo de Édipo: o drama social assim se atualizaria desde sempre e sempre! E conclui o articulista: essa narrativa sintetizava todo um saber antropológico, etnológico, filosófico, histórico, social e psicanalítico. Tem alguma importância para o ¨saber psicanalítico¨ que Freud, ao tratar dos povos ditos ¨primitivos¨, não conseguira se livrar da visão linear, evolucionista e eurocêntrica[6]? Sinto dizer, mas para a psicanálise isso não tem nenhuma importância, pois como dizem seus adeptos ¨suas conclusões são totalmente sustentáveis ainda hoje[7]¨. O que fazer frente a uma surdez desse porte?!
Concordo com V. Safatle quando ele diz, de maneira muito inteligente e sem desgostar ninguém, que o único universal que persiste é o mal estar[8]– Unbehagen – o indivíduo na modernidade é arrancado da tradição e lançado ao desabrigo, sem lugar e sem clareira. Penso que qualquer outro universal, Édipo, por exemplo, tornou-se repressivo – e então me compreenda o leitor não tenho nada, muito ao contrário, contra Édipo, a castração e o princípio de realidade, que esses dispositivos da subjetividade ensejam, são bem-vindos em qualquer clínica, desde que não se pretendam universais!
Dou um exemplo a partir da minha experiência pessoal: frequento os psicanalistas clássicos – debates não faltam em São Paulo, também supervisões clínicas – não tenho com eles uma conversa em torno do assunto dessa palestra, raramente, falo do ¨povo de Gaia¨ ou do ¨exército dos Terranos¨ e, todavia, vivo combatendo o universalismo, vivo combatendo a ideia de que Édipo e a castração ensejam o único princípio de realidade possível, e, para meu espanto, eles não compreendem o que eu falo! No início pensava que se tratasse de má vontade, agora sei que não é, é mais grave, pois se trata de uma construção emocional e mental que não lhes permite por em dúvida o mundo que habitam, o mundo moderno (quando, seja bem dito, este mundo, moderno, está em acelerada desconstrução). E isso não deixa de ser engraçado porque ninguém mais se preocupou com a realidade, com o princípio de realidade, com a aceitação da realidade do que a psicanálise clássica. O problema, inesperado e imprevisível problema, para eles, é que a realidade está mudando! Dito mais precisamente a desconstrução da subjetividade, desconstrução emocional e psíquica – tendo como base o homem moderno e o homem edipiano – nos permite entreabrir uma nova percepção da realidade que, doravante, temos chance de compartilhar. O século XX com suas matanças sem fim, com muitos genocídios, com o totalitarismo sempre à nossa espreita, trouxe-nos essa preciosa abertura, a compreensão que a realidade é múltipla e depende dos nossos olhos, da nossa matrix emocional/psíquica/espiritual. Um milagre, como experiência, se pôs para nossa contemplação e então para nosso pensamento. Por essa realmente ninguém esperava!
De novo é surpreendente que seja assim, mas é assim! A psicanálise clássica é a mais antropocêntrica das disciplinas humanas[9] e valendo-me da fala também lúcida de Davi, dos Yanomamis, põe os homens para ¨sonhar consigo mesmos¨. Principal aliada dos Humanos – modernos e achando imensa graça na era do antropoceno – a psicanálise clássica não vê e não verá com bons olhos os Terranos e não se deixará tocar pelo ¨povo de Gaia¨. E então lá – na Sociedade Brasileira de Psicanálise – a fala perspicaz do prof. Viveiros de Castro não pode ser escutada e compreendida. A construção emocional e cognitiva – tendo Édipo como centro – impede-os de fazer essa escuta porque o princípio de realidade a que tem acesso é edipiano e, com ele, fronteiras rígidas entre-mundos. Édipo reina soberano com os Humanos – modernos e seus infindáveis dispositivos mortíferos. E isso para mim revela que o problema não é somente o negacionismo aludido por Viveiros de Castro mas, mais sério ainda, o que está em jogo é uma determinada construção emocional e cognitiva: moderna e edipiana. A guerra então não é de persuasão, de convencimento; a guerra está se dando entre modos de ser e modos de ver.
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E as outras correntes da psicanálise seriam possíveis ¨aliados¨ dos Terranos, acolheriam ou pertenceriam ao ¨povo de Gaia¨?
Os junguianos por exemplo? Seriam sim, poderiam participar da aliança com o ¨povo de Gaia¨ se abandonassem seus sonhos conservadores, passadistas e prestassem atenção no imenso perigo que vem pela frente! E, tenho claro e afianço para os meus leitores que tirar os olhos do passado e pô-los no presente é um desafio gigantesco para um junguiano. Desde sempre o movimento junguiano tem aversão-afetiva pelo ¨povo da Natureza¨ e pelos Humanos – modernos e como forma de resistência lançaram seu olhar para o passado esperando seguramente dias melhores. E lá ficaram com os olhos voltados para o passado durante todo o século XX! Agora, os dias melhores para eles chegaram, e se ousarem olhar para o presente, os termos da aliança com o ¨exército dos Terranos¨ poderia se dar via sensibilidade romântica da escola junguiana e o amor que eles tem por Dionísio, afinal o corpo dionisíaco é, enquanto tal, abertura cósmica. Não foi isso que aprendemos com F. Nietzsche? Acrescente-se a isso que Jung um romântico inveterado e tardio buscava os arquétipos nos homens e também nos animais e isso seria a base comum da aliança entre homens a seres vivos em geral. E, saliente-se, Jung não negligenciava o mundo inorgânico, pois em uma bela passagem de Memórias, Sonhos e Reflexões tem sérias dúvidas se ele é uma pedra ou se a pedra é ele! Os Humanos psicanalíticos, aliados ao ¨povo da Natureza¨, costumam ver de forma bem crítica essa passagem já vendo nela a psicose latente de Jung! E, todavia, essa dúvida angustiante que Jung empreendia com o mundo inorgânico é parte da sensibilidade romântica e alquímica do unus mundus. De qualquer maneira há nas ideias de Jung uma possibilidade de unir e sentir mundos diversos e de sonhar objetivamente, para fora, com o exterior como propõe Davi Kopenawa, líder dos Yanomami. Jung e seus pacientes sonharam seguidamente e anos antes com a Primeira Guerra Mundial!
Além disso, o mundo junguiano é um mundo encantado graças à ideia de sincronicidade que correponde às afinidades eletivas[10] de Goethe, e com elas a retomada de uma única substância – pensamento e matéria – de B. Espinosa. A experiência da sincronicidade é, enquanto tal, diálogo entre-mundos: o ser humano – e não só ele por suposto – com as plantas, florestas, pedras, gnomos, fadas, seres invisíveis em geral.
Poder-se-ia objetar que são os seres humanos que, através do que chamam sincronicidade, estabelecem o sentido e a significação para os outros seres, orgânicos e inorgânicos. E, então, eu diria não é bem assim se, de fato, levarmos em conta as afinidades eletivas de Goethe, um dos pilares de Jung para tecer o conceito-experiência de sincronicidade – e só se compreende isso, como disse acima, se levarmos em conta Espinosa e os Românticos que liam o mundo a partir de uma única substância. Em uma sincronicidade vivida como experiência profunda é a pedra, por exemplo, o animal ou uma semente que detém o segredo do significado para o humano e, não raro, encontramos alguém que tem a sensibilidade junguiana fazendo uma circuambulação em torno da pedra, do animal, de uma semente, por anos, às vezes por décadas, abrindo-se para a pedra e/ou a semente detentoras do segredo da significação! A narrativa de um junguiano, de uma pessoa que tem essa sensibilidade, é a do ¨povo de Gaia¨ com certeza.
Em relação a essa escola de psicologia a aliança com os Terranos e com o ¨povo de Gaia¨ se resolveria mais facilmente, já que não são antropocêntricos e o fechamento não é de ordem cognitiva-emocional. São, sim, possíveis aliados.
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E os lacanianos veriam com bons olhos os Terranos? Seriam simpáticos ao ¨povo de Gaia¨?
Pouco posso dizer sobre os lacanianos, não os conheço bem. Dois lacanianos, porém, chamam minha atenção, e talvez com eles, refiro-me a W. Safatle e C. Dunker, os Terranos encontrariam algum acolhimento. Ao que parece são parceiros intelectuais e propõem a travessia do Imaginário para o Simbólico e então o Real. Vale dizer, levam sim o Real – do último Lacan – em conta – ao contrário de outros lacanianos que só pensam a clínica até o simbólico. Safatle, em particular, concorda com Deleuze quando critica aqueles que acreditam que fora do Eu, fora do indivíduo moderno, só pode haver caos. Safatle pensa que essa é a pior de todas as falhas morais, já que nos prende na defesa do sempre idêntico[11].
São as premissas de Lacan que nos ajudam a compreender por que, para Safatle, ¨há uma humanidade por vir e não temos o direito de temê-la¨[12]. Uma dessas premissas é que para Lacan, ¨toda a socialização é alienação¨. Ou só há sujeito fixo graças a repressão, e então a verdadeira fonte de sofrimento é resultante do caráter repressivo da identidade: ¨dessa identidade que devemos internalizar quando passamos por processos de individuação e de constituição social do Eu. Daí porque Lacan será tão sensível às temáticas vanguardistas de dissolução do Eu e de desarticulação de seus princípios de síntese enquanto condição para o advento de uma experiência capaz de realizar exigências de autenticidade. Isso a ponto de ele afirmar ser a análise uma ¨experiência no limite da despersonalização¨[13].
Outra premissa é que a psicanálise nasce no momento de crise profunda da modernidade ocidental. Mais enfaticamente, a psicanálise, ela mesma, é o sintoma maior dessa crise que nos levou a colocar em questão nossos ideais normativos sobre auto-identidade, sexualidade, modos de socialização, justiça e, sobretudo, nossas ideias sobre o que estamos dispostos a contar como racional[14]. Sintoma dessa crise, a modernidade oferta para o pensamento – eu diria para o pensamento psicanalítico, mas não só ele – uma outra concepção do humano:…¨uma concepção que insiste na importância de experiências de confrontação com o inumano, com o despersonalizado, com o indeterminado, para a formação de uma práxis emancipada. Pensar como a verdadeira práxis virá da capacidade que sujeitos devem desenvolver em se confrontar com o que não tem a figura de ¨humanidade¨ do homem: eis uma tarefa que Lacan nos deixou¨[15]. Confrontar-se com o que aparece como ¨Inumano¨ no interior do desejo, desprovido de imagem identitária do homem: uma potência de indeterminação e despersonalização que habita todo o sujeito. Daí o impacto político da ênfase no Inumano, pois através dessa noção redimensiona-se a teoria do reconhecimento: como reconhecer aqueles que não se configuram completamente como indivíduos no sentido que nós entendemos[16]?
É exatamente daí que parte C. Dunker, feroz observador das transformações da subjetividade na alta modernidade, justapondo e aproximando o ¨perspectivismo ameríndio¨ e os ¨tipos clínicos¨ recém configurados por ele: zumbis[17], mortos-vivos, frankensteins[18] e psicoses! Os nomes propostos por Dunker não são nada simpáticos e à primeira vista parece estranho aproximá-los do ¨perspectivismo ameríndio¨ de Viveiros de Castro. Em um primeiro momento essa justaposição pareceu-me grosseira e injustificável, mas aos poucos foi ganhando algum sentido para mim e, de repente, foquei minha atenção nas proposições do psicanalista e as novas sensibilidades em curso – ainda que descritas por ele como ¨experiências de sofrimento¨. Zumbis e Frankensteins sofrem com a falta de experiências produtivas de indeterminação pois para eles os processos de racionalização aparecem como vazio indiferente ou como experiência caótica de si e do mundo. Vale dizer, o Real aparece como impossível. É nesse momento que Dunker conclui, confesso que para o meu espanto: …¨os Zumbis e Frankensteins estão mais próximos daquilo que o antropólogo brasileiro Viveiros de Castro chamou de perspectivismo ameríndio (ou seja, uma cultura na qual a identidade não é tratada como um fato de origem e onde a experiência de reconhecimento está sujeita a elevados níveis de indeterminação)¨[19]. O perspectivismo ameríndio estaria então mais próximo da experiência do inumano, já que a vivência do laço social não se baseia na perspectiva de identidade. É disso que se trata?
Classificar e pensar não fazem boa parceria! Essa sede classificatória e diagnóstica de Dunker é amiga fácil de estereótipos e inimiga do pensamento. Os modos de ser existenciais tendem a ser duramente ofuscados por classificações e diagnósticos. Quando C. Dunker classifica e aproxima as formas de sofrimento atuais – que ele com muita sensibilidade e perspicácia recupera – do perspectivismo ameríndio, por suposto não nos ajuda a pensar! Acrescente-se a isto que C. Dunker não precisa da nova antropologia nem do perspectivismo ameríndio para construir a sua argumentação. Para quê então ele faz isso? E me vejo obrigada a fazer uma pergunta incomôda: Bruno Latour, Viveiros de Castro, Davi Kopenawa como seriam classificados? Seriam eles também Frankensteins, Zumbis, Mortos Vivos, Psicóticos – ainda uma vez?
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Outro tanto poderia ser dito em relação à esquizoanálise, paraíso dos Terranos, e do ¨povo de Gaia¨, e isto porque eles – os humanos que participam desses grupos – existem e subsistem a partir de duas qualidades pelo menos nesse momento: uma de-cisão a partir de valores, quero dizer, de-cidiram-se por esses grupos respondendo à pergunta ¨qual a Terra que queremos viver¨? Uma Terra onde a vida não acabe. Decidiram-se então pela Vida e a outra qualidade de ambos os grupos é que seus ¨adeptos¨ provém de entre-mundos: vegetais, animais, humanos, sementes, pedras, ar, terra, água: todos os ameaçados de extinção! Ora, a esquizoanálise de F. Guattari e G. Deleuze é propiciadora do valor Vida, aliás, vida vibrátil, vida pulsante em sua potencialidade máxima! E, também, vamos sugerir em seguida, pode ser patrocinadora dessa aliança entre-mundos .
A esquizoanálise é compreendida como uma ética-estética de valorização da vida, e quem participa dessa experiência se lê a partir de uma perspectiva – não tem em mãos – muito longe disso – uma metodologia e/ou uma teoria universal. Como uma perspectiva convive com todas as outras abordagens sejam dialéticas, estruturalistas ou qualquer outra. Como perspectiva, a esquizoanálise é muito mais do que uma prática clínica, sua intenção, aliás, foi e é de romper com os saberes instituídos em troca de um saber subterrâneo ao qual Deleuze e Guattari chamaram de rizoma, termo extraído da botânica. O ¨povo de Gaia¨ precisa romper com os saberes instituídos, a esquizoanálise lhes convém pois. Convém-lhes também porque a esquizoanálise não tem modelos para a vida; não há modelos existenciais bons e maus, mas infinitas possibilidades existenciais. A melhor atitude, a melhor possibilidade existencial, é aquela que produz uma vida mais vibrátil e pulsante. A vida só pode ser julgada pela própria Vida! E, todavia, há sempre duas lógicas em jogo: a lógica maquínica – que corresponde à subjetividade instituída e produzida socialmente através do ¨inconsciente maquínico¨ e/ou ¨inconsciente capitalísta¨[20] – e nesta lógica os corpos perdem a sua potência de expressão e há a construção de sujeitos narcísicos; mas, também há a lógica pulsátil presente nos corpos vibráteis que não repelem a sensorialidade, visto que procuram uma existência plena e para isso desejam afetar e ser afetados.
A esquizoanálise trabalha também com a ideia de agenciamentos e esse conceito-experiência supõe disparidade – agenciamentos díspares – e precisa ser ordenada desde o ponto de vista da imanência, a partir do qual a existência se mostra indissociável de agenciamentos variáveis e remanejáveis que não cessam de produzi-la. Há agenciamentos ¨molares¨ e os agenciamentos ¨moleculares¨ – e todo agenciamento remete em última instância ao campo do desejo sobre o qual se constitui . Então a maneira como cada indivíduo investe e participa da reprodução de agenciamentos sociais depende de agenciamentos locais, ¨moleculares¨ e, através desses últimos, cada indivíduo, introduz suas pequenas irregularidades. Cada um de nós combina concretamente os dois tipos de agenciamentos em graus variáveis, o limite é a esquizofrenia como processo – deterritorialização absoluta. Cito Mil Platôs: ¨Se a instituição é um agenciamento molar que repousa em agenciamentos moleculares (daí a importância do ponto de vista molecular em política: a soma dos gestos, atitudes, procedimentos, regras, disposições espaciais e temporais que fazem a consistência concreta ou a duração – no sentido bergsoniano – da instituição, burocracia estatal ou partido), o indivíduo por sua vez não é uma forma originária evoluindo no mundo como em um cenário exterior ou um conjunto de dados aos quais ele se contentaria em reagir; ele só se constitui ao se agenciar, ele só existe tomado de imediato em agenciamentos¨[21]. E concluo apostando que a esquizoanálise é uma prática micropolítica que só ganhará sentido com referência a um gigantesco rizoma de revoluções moleculares que proliferam a partir de uma multidão de mudanças mutantes: tornar-se mulher, tornar-se criança, tornar-se velho, tornar-se animal, planta, cosmos, tornar-se invisível…[22].
A noção acima, o ¨indivíduo só se constitui ao se agenciar¨, libera o poder de afecção dos indivíduos, para o entre-mundos – uma individuação por hecceidades e não por meio de características identificantes. E com isso, a esquizoanálise é aberta a novas formas subjetivas, novas formas de compor a vida, novas alternativas de reapropriação existencial que, porventura, novas coletividades humanas e de indivíduos venham a ¨agenciar¨: vidas vivas, vibrantes e então muito diferentes das formas de vida pobres que a subjetividade maquínica nos impõe.
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Muitas outras escolas da área-psi teriam como contribuir com o ¨exército dos Terranos¨ e com o ¨povo de Gaia¨. E, todavia, paro por aqui.
Uma palavra em torno do meu consultório. Sabe-se que um analista neurótico atrai muitos pacientes neuróticos, um analista com um certo traço mais esquizoide atrai muitos pacientes esquizoides, um analista ferido narcísico atrai muitos pacientes também feridos primais. Tudo isso se dá por afinidades eletivas! Claro que nem todos os analistas tem essa percepção à mão, refiro-me à sincronicidade, e então, não raro, acreditam que no mundo só tem neuróticos e esquizóides, por exemplo, e continuam então ¨sonhando só consigo mesmos¨ – como denuncia Davi Kopenawa.
No meu consultório aparecem muitos Terranos, a maioria dos meus pacientes são Terranos – cá e lá um Humano do ¨povo da Natureza¨ acolhido também com muito amor . Mas estes últimos não são numerosos. Quero com isto dizer que há sim uma nova sensibilidade cuja ¨experiência de sofrimento¨ é a de não adaptar-se ao mundo dos Humanos – modernos, do ¨povo da Natureza¨. Essa não adaptação, claro, traz muito sofrimento, mas começa-se a dizer não para o princípio de realidade instaurado pelo Humanos modernos e edipianos. A guerra está ganhando corpo.
Eduardo Viveiros de Castro
Acabei de assistir a duas palestras recentes – em vídeos – do prof. Eduardo Viveiros de Castro e quero recomendá-las aos meus leitores. O primeiro vídeo- palestra tem como título: Filosofia, Antropologia e o Fim do Mundo (http://vimeo.com/78892524); a segunda palestra tem como título: III Conferência Curt Nimuendajú (http://vimeo.com/81488754). Recomendo vivamente ambas.
Nesta postagem farei um breve chamamento para as duas palestras e, desde já, assumo que sou absolutamente fiel às ideias de Viveiros de Castro, praticamente recuperando as suas palavras; exercito, porém, uma certa edição das palestras e então dou ênfase – porque recupero longamente a fala de Viveiros – em relação a algumas questões em detrimento de outras – e, por isso, o melhor para os leitores que desejarem acompanhar o pensamento do antropólogo na íntegra será assistir os vídeos. Farei também uma reflexão sobre o diálogo – ou a inexistência do diálogo – entre psicanálise e a nova antropologia tendo presente a dramática situação que estamos atravessando do ponto de vista civilizacional. Particularmente quero chamar a atenção dos leitores para o novo campo de luta, uma guerra de fato, que a antropologia – via Bruno Latour e Viveiros de Castro – vislumbra entre os Terranos e os Humanos: quem são os participantes dessa luta, e como as ¨alianças¨ vêm se estabelecendo. E o que é fundamental: como as psicanálises se posicionam frente a esse novo campo de luta, frente a essa – nas palavras de Bruno Latour – guerra que já estamos vivendo.
Antes de iniciar quero dar um depoimento pessoal da experiência que tive ao assistir a esses vídeos. Penso que a principal virtude dos antropólogos em tela é a coragem. Fiquei completamente mobilizada pela coragem e lucidez de Eduardo Viveiros de Castro, e sinto que, através das palestras, mobilizou-se em mim também coragem e lucidez. Penso que só neste início do século XXI começamos a perceber a importância do Anti Édipo e dos Mil Platôs de G. Deleuze e F. Guattari. Há uma nova sensibilidade em curso que a antropologia de Viveiros de Castro capta e transforma em projeto político[1].
I) Filosofia, Antropologia e Fim do Mundo
O antropólogo parte de duas observações: qual a nossa condição, qual o nosso momento, na tradição cultural ocidental; e como essa tradição é compreendida pelos habitantes da América indígena.
Comecemos pela primeira questão: houve mortes sucessivas das grandes transcendências nos últimos séculos. E. Kant partiu de Deus/ do Homem e do Mundo. Essas três instâncias foram morrendo sucessivamente e isso define a presente condição: 1) Deus morreu; 2) o Homem moderno morreu e agora 3) temos que enfrentar a morte do Mundo, o fim do mundo. Sem Deus, sem Homem e sem Mundo. Três séculos, três mortes.
Hoje há uma inquietação imensa; as mortes suscitam crises. Podíamos viver sem Deus, podíamos viver sem o Homem; podemos viver sem Mundo? Como o pensamento antropológico e filosófico se reorganiza em torno dessas mortes?
Davi Kopenawa, líder dos Yanomamis, tem um escrito publicado em francês e em inglês chamado A queda do céu – esse livro conta com a participação do antropólogo Bruce Albert[2]. Nele Davi Kopenawa diz que ¨os brancos dormem muito, mas só conseguem sonhar com eles mesmos¨. Essa frase para Viveiros de Castro contém uma imagem do pensamento, contém uma teoria e uma crítica da filosofia ocidental: uma crítica do nosso projeto civilizatório.
A frase nos alerta para a ideia que os Yanomamis ¨não sonham só com eles mesmos¨. É preciso, todavia, frisar que nós os vemos de outro jeito, já que dizemos que os índios são animistas, narcisistas, primitivos e só sabem ler a si mesmos no mundo inteiro! Davi pensa exatamente o contrário e diz que ¨são os ocidentais que não veem nada, ficam só cabeceando de sono e não veem nada¨.
O pensar é essencialmente sonhar para os Yanomamis: sonhar com o que não é humano, ter a capacidade de sonhar e de sair da humanidade. Davi Kopenawa nega a nós, os brancos, essa capacidade porque para nós, brancos, o pensamento está concentrado no ¨mundo da mercadoria¨, porque só vemos a nós mesmos. Como os brancos só pensam nas mercadorias, só sonham consigo mesmos – não saem de si mesmos, não saem da humanidade. Não sonhar consigo mesmo significa para Davi, sonhar com os seres das florestas, os seres invisíveis, as almas, os animais.
O pensamento ocidental tem uma trajetória e nela o pensar foi se introjetando e se tornando uma contemplação narcísica de si mesmo: o pensador ocidental investiga a cognição, a imaginação, o entendimento do próprio homem. Os brancos só sonham então consigo mesmos.
Davi está denunciando o que Freud diz: tudo que o homem sonha é projeção: plantas, animais, etc. É sempre conosco mesmos que sonhamos. É possível pensar outra coisa e então sair de si mesmo? Os brancos já não podem fazer isso.
Davi Kopenawa pertence a uma cultura xamânica, e nela o acesso à realidade se dá através do sonho, com o uso de drogas e alucinógenos e isso é muito diferente do aprendizado da leitura e da escrita dos brancos. Por isso os brancos ficam quando sonham como um ¨machado no chão¨, dormindo como um ¨machado no chão¨ – como se fossem objetos ou como se estivessem mortos: sonhando consigo mesmos. Ao contrário disso, para uma cultura xamânica, o sonho é a condição de encontrar uma exterioridade, um fora-exterior, e os brancos tem uma incapacidade de atingir o fora, um exterior pelo pensamento. Acrescente-se a isso que os brancos estão apodrecendo a Terra para tirar petróleo, minério, e com isso o céu vai cair e a humanidade vai entrar embaixo da terra e virar fantasma! Quem mantém tudo isso ainda em pé – a Terra e o Céu – são os xamãs. A queda do céu já aconteceu várias vezes e sempre o motivo foi o mesmo: o que nós, brancos, chamamos de crise ecológica.
As cosmologias indígenas falam em ciclos sucessivos de destruição e criação: desabamentos sucessivos da Terra. Hoje, os brancos promovem sem freios a extração de minérios, o desmatamento e então o mundo vai acabar. Duas questões propostas por Davi Kopenawa: 1) só sabem, os brancos, pensar em si mesmos; 2) o mundo vai acabar. Esta acusação de Davi ¨que nós só sonhamos conosco mesmos¨ exige uma resposta. Como responder a isso? Como responder à imanência? À exterioridade? No ocidente isto está reservado à arte – e não à ciência e à técnica.
Para os indígenas fazemos objetos e máquinas prodigiosos, mas sociologicamente somos imbecis, agressivos, escandalosos, primitivos, toscos nas interações. Eles ficam seduzidos pelo prodígio técnico do ocidente e tem a tentação de separar a técnica da sociedade. É possível separar as duas coisas? Para os Yanomamis não tem jeito; eles recusam a cultura do branco in totum. Estamos – diz Viveiros de Castro – prensados contra nós mesmos e contra os outros povos, já que os três pilares da nossa civilização – Deus, Homem e Mundo – estão em crise. Nosso narcisismo é incurável! Os outros povos não podem nos ajudar e nós estamos ameaçando levar todos para o abismo.
Que resposta vamos dar aos outros povos que nos ¨acusam de só sonhar conosco mesmos¨? Que fazer diante disso?Os brancos ¨só sonham consigo mesmos¨: os brancos não incluem os não-humanos no seu universo político!
O fim do mundo é um tema riquíssimo do ponto de vista filosófico e político – afirma Viveiros de Castro. Aliás, esse tema são os índios quem sabem pensar, pois os brancos acabaram com o mundo deles, acabaram com o mundo deles repetidas vezes.
A perspectiva de uma crise ambiental em escala mundial nos coloca em uma situação parecida com a dos índios. Nós corremos o risco de sermos dizimados por nós mesmos! Como será viver após o fim do mundo? É preciso retomar a questão do fim do mundo no pensamento. O que está acabando é o mundo que começou em 1500. O fim da era moderna chegou.
2) III Conferência Curt Nimuendajú
Essa conferência, proferida no final de 2013 por Viveiros de Castro, é bastante longa e aconteceu no Centro de Estudos Ameríndios (CESTA/USP) em homengem a Curt Nimuendajú, que fez o primeiro trabalho moderno de etnologia, há exatamente 100 anos – em 1914 – em torno das lendas de criação e destruição e principalmente da destruição do mundo, como fundamento da religião dos xamãs Apopukuvas – Guarani. A palestra então também homenageia os guaranis que hoje são o símbolo concreto da ofensiva final contra os povos indígenas.
Nimuendajú teve seguidores na antropologia, por exemplo, os trabalhos de Pierre Clastres e de Helena Clastres e vários outros etnólogos; hoje, sua perspectiva é retomada em teses e dissertações de mestrado. Para Niemandajú como para esses trabalhos recentes, os Guaranis tinham e tem um pensamento pleno, um pensamento especulativo, escatológico e cosmológico pleno de direitos.
Ora, nós também, ocidentais brancos, estamos especulando e dando voltas em torno da questão do fim do mundo. As lendas científicas e outras do ocidente especulam cada vez mais esse tema e então tal especulação tornou-se um problema de todos.
Muitas questões foram discutidas nessa longa palestra e eu vou me ater a duas delas: a) a catástrofe que nos espreita e b) a proposta política em curso trazida por Bruno Latour e Viveiros de Castro.
a) É um equívoco chamarmos o perigo que nos espreita de ¨crise ambiental¨ e isso ficará claro a seguir quando o antropólogo demonstra quão mais sério é a nossa questão. Para ele, o mais importante problema que atravessamos é a entrada do planeta no antropoceno – a terceira época geológica do período quaternário e que, prevê-se, durará muito mais tempo do que a espécie que o batizou! Vale dizer, os efeitos da ação humana sob o sistema Terra durará mais que a própria espécie. O antropoceno – a era do homem – refere-se a um novo regime termodinâmico: e este é um mundo novo e não temos ideia do que vai acontecer. Temos claro uma série de projeções, de especulações – próxima, aliás, como vimos, dos Guaranis – de como o mundo vai acabar. Nosso cenário é tão inquietante hoje quanto o dos Guaranis.
Mudança climática é na verdade um dos parâmetros para compreendermos a atual crise. Há muitos outros parâmetros – que delineiam muitas outras mudanças – para medir essa crise.
Antropoceno, apesar de ter o nosso nome, não nos elogia! O que se quer dizer com ele é que a humanidade tornou-se uma força geofísica. Alguns argumentam que não é a humanidade inteira que se tornou uma força geofísica, mas o capitalismo, as classes dominantes, as sociedades privilegiadas e, principalmente, os países que consomem combustíveis fósseis e energia em geral, mas isso tem efeitos sobre a população de todo o planeta. O problema é que a população inteira do planeta tende a adotar os padrões de consumo energéticos modelados nos padrões de consumo dos países que conduzem as ¨locomotivas antropocênicas¨, os países que conduzem as mudanças climáticas.
Então, há uma espécie de inversão de figura-fundo que caracteriza a relação entre humanidade e ambiente! Retomemos a argumentação: antropoceno designa o fato de que a humanidade se tornou uma força geofísica.O nome Gaia vem também junto à noção de antropoceno, só que no sentido inverso. A Terra tornou-se um personagem, um interlocutor político, ao mesmo tempo que o homem tornou-se uma força geo-política. É como se tivéssemos nós, os homens, passado para o fundo e a Terra tivesse passado para a frente. Uma inversão súbita entre figura e fundo que só pode dar errado! É uma inversão fantasmagórica e aterrorizante e nela desaparece a noção de escalas: uma escala de tempo geológica e uma escala de tempo antropológica – essas escalas eram de ordem e magnitudes completamente diferentes. O que se vê hoje é o colapso dessas escalas a tal ponto que há mudanças na estrutura da atmosfera, na circulação dos ventos que se modificam em um tempo mais rápido que os sistemas sociais! E isso é, no mínimo, irônico e, no máximo, aterrorizante.
Essas considerações levam a outra implicação: à ideia do fim da natureza como um pano de fundo imóvel ou muito lento contra o qual nós evoluímos, contra o qual podíamos medir e calibrar nossas ações. O que estamos vivendo hoje é a inversão das escalas, o colapso das escalas.
Dito de outra maneira trata-se da ideia mesmo de destruição do ambiente; num certo plano a noção de ambiente desapareceu visto que houve uma interiorização – introspecção – do homem, e as plantas e animais passaram a ser lidos como internos ao ambiente humano e não mais o homem como parte do ambiente!
Isabella Stengers, filósofa belga, recusa a ideia de crise ambiental, recusa a ideia mesmo de crise – a ideia de crise supõe que se vá sair dela e nós não vamos sair do que está acontecendo, porque já aconteceu, nós estamos vivendo os efeitos da ação humana que há muito aconteceu. Isabelle Stengers prefere o termo catástrofe ambiental e muitos insistem que essa é uma visão catastrofista, melancólica, pessimista – dessa mesma visão partilhavam, segundo Nimuendajú, os Guaranis na figura dos xamãs Apokokuvas-guarani entre 1905 e 1912, período de sua pesquisa. Esse pessimismo, dizia o etnólogo no início do século XX, era próprio de uma raça, próprio de um povo cansado de lutar, cansado de ser perseguido. Para os Guaranis, a própria terra estava cansada. Mas como veremos os Guaranis não são apenas pessimistas, pois imaginam também uma renovação do mundo. Tudo isso, e principalmente o pessimismo e a melancolia, ecoa a nossa situação atual.
b) Bruno Latour entende hoje que estamos em um estado de guerra; ele diz também que há uma diferença fundamental entre estado de guerra e estado de polícia, pois na guerra não há árbitros, não há um terceiro termo. A guerra se decide entre duas partes, sem árbitro. E nessa guerra estão de um lado os Humanos e ele diz isso com evidente ironia. Os Humanos, para Latour, somos nós, os modernos que pretendem conquistar todo o planeta para o padrão de consumo americano. Aos Humanos Latour opõe os Terranos – os habitantes da Terra. E é preciso decidir de que lado estamos nessa guerra. Latour diz também que essa de-cisão não será tomada tendo como base argumentos científicos e isso porque o consenso científico é maciço no sentido de que existe uma grande crise ambiental e que essa crise é de origem antrópica, antropocênica e, todavia, esse consenso não impede que haja contestação! Não é bem assim dizem uns; não é antropocênica dizem outros. Assim, a ciência pode apresentar dados irrefutáveis e isso não impedirá e não impede a controvérsia e a continuidade da ordem existente. E isto porque a controvérsia não é entre ciência e não-ciência, mas é uma controvérsia política; é uma controvérsia em torno do tipo de Mundo, do tipo de Terra que queremos viver. Trata-se então de uma disputa de valores. Os índios são uma espécie de resposta viva: eles estão a nos apontar que existe outra forma de viver, outros Mundos além daquele dos brancos!
Lembro também que – para Viveiros de Castro – os climatocéticos são negacionistas, por analogia, com os historiadores que diziam e dizem que não houve extermínio em massa dos judeus, não existiu a shoah e isso tudo não passa de conspiração do Estado de Israel! São os negacionistas. Os que estão preocupados com a catástrofe ecológica também chamam os que põe em dúvida a crise atual de negacionistas: negam o óbvio e através da negação afirmam em que Mundo querem afinal viver!
No final de sua última conferência, em fevereiro de 2013, em Edimburgo a respeito da Gaia e do Antropoceno, Bruno Latour diz que há uma guerra entre os Terranos e os Humanos. E então ele nomeia os Humanos: são os modernos. Ou seja, os Humanos não é para ele o Homo Sapiens. Os Humanos são todos os entes que fazem parte da modernidade, do projeto moderno e então inclui entre os Humanos os computadores, os animais domésticos, as armas químicas, os cachorros policiais. Todos esses entes fazem parte do exército dos Humanos. Os Terranos não se sabe, todavia, bem quem são. Quem seriam os Terranos se pergunta Latour? Ali estariam todas as espécies em extinção (sementes/ animais/água/ar/humanos/polo norte/terra), inimigos naturais dos Humanos, ameaçados ontologicamente. Mas entre os Terranos, claro, está estão também humanos. São o ¨povo de Gaia¨, numa ficção positiva do termo. O ¨povo de Gaia¨ está em oposição ao ¨povo da Natureza¨ que são os modernos, que acreditam em uma natureza transcendente, com leis únicas, absolutamente racional, dominável e controlável – uma ficção negativa do termo.
Latour se pergunta: é possível aceitar como ¨povo de Gaia¨, a pachamama, a deusa natureza, de que falam os ameríndios e outros povos não modernos? Para Latour, esses povos têm se adaptado à retórica ambientalista ocidental para, compatibilizando suas cosmologias e seus projetos existenciais, serem ouvidos pelas sociedades dominantes do hemisfério norte. Latour não acredita que esses povos possam fazer parte do ¨exército dos Terranos¨. Parece que há nesses povos respeito pela Terra, mas só parece, pois são impotentes na medida que sua tecnologia é fraca e sua população ínfima. Esses povos, de acordo com Latour, chamados de tradicionais sem tecnologia, em pequenos número, não tem um modo de vida que os qualifique para o ¨exército dos Terranos¨.
Para Viveiros de Castro, é exatamente isso que Latour lê como impotência que pode ser um recurso crucial para um futuro pós-catastrófico que, diga-se de passagem, Latour acredita que vai acontecer. Para o antropólogo brasileiro somos nós os brancos industrializados, em rede, estabilizados farmacologicamente que terão que ¨descer¨ – ¨perder as proporções gigantescas de vida¨ – e isso em todos os sentidos.
Pergunta-se ainda Viveiros de Castro: será que são de fato minorias e o pequeno número demográfico deve ser levado em conta como propõe Latour? A ONU estima oficialmente em 370 milhões de pessoas o número de minorias indígenas no planeta – estariam encapsuladas nos Estados Nação, mas não coincidiriam com os Estados Nação Ou seja, enfatiza Viveiros:a minoria não é tão minoria assim. É pois um ¨exército de Terranos¨ considerável!…
III) E a Psicanálise com isso?
Tenho alguns palpites a respeito disso, e desde já insisto que as idéias que seguem é de minha inteira responsabilidade, e nem Bruno Latour nem Eduardo Viveiros de Castro têm qualquer participação nelas, nas ideias. Também enuncio desde já que se trata de uma brincadeira séria, muito séria, e que foi escrita com total liberdade criadora e com muito bom humor. Engraçada e pessimista sob alguns aspectos; séria e esperançosa sob outros.
Por exemplo, se Bruno Latour e Viveiros de Castro se submetessem a uma psicanálise clássica e oferecessem logo no primeiro dia para um zeloso psicanalista as duas ideias discutidas acima – notícias sobre o fim do mundo e a nova aliança política proposta entre Terranos x Humanos – e insistissem, como fazem acima, que há uma guerra planetária em curso; se isso acontecesse, temo que seriam considerados psicóticos, delirantes, com estranhas e perigosas fantasias. E, se o eminente psicanalista fosse uma pessoa medrosa, creio também que, além de diagnósticá-los, convocaria discretamente uma ambulância, e eles seriam gentilmente retirados do consultório do analista em camisa de força e imediata e fortemente medicados!
É engraçado e trágico pensar isso, mas lastimo dizer, a probabilidade de isso acontecer seria grande! Como posso supor – o leitor tem todo direito de me perguntar – que isso aconteceria? Como a ¨ciência da escuta¨ não levaria em conta a lucidez do prof. Viveiros de Castro? Por que consideraria suas agudas percepções como fantasias psicóticas delirantes? Antes de responder, prossigo por um momento no meu argumento: as percepções dos antropólogos que, diga-se de passagem, supõem dados oferecidos pela própria ciência climática, têm também por base uma gigantesca desconstrução da subjetividade moderna. Não é possível chegar a tais percepções pela via do intelecto. Ambas as questões envolvem infinitos des-locamentos emocionais, infinitas outras desconstruções. O que está em curso nos antropólogos citados – e numa grande massa de indivíduos – é então uma gigantesca des-construção da subjetividade moderna. Ora, a psicanálise também desconstrói a subjetividade moderna, já que enuncia um sujeito duplo – consciente e inconsciente – e é nisso que reside seu potencial crítico. A desconstrução subjetiva e emocional, todavia, do ¨povo de Gaia¨ foi muito além e desconstruiu e desconstrói a própria subjetividade psicanalítica! O ¨povo de Gaia¨ está deixando de ser antropocêntrico e quebrou as fronteiras entre-mundos, incluindo no seu universo político, na Terra que querem viver, outros seres: as plantas, os animais, os seres invisíveis, o ar, o clima, as sementes, Gaia.
As duas questões discutidas nessa palestra pelo antropólogo Viveiros de Castro só poderão então ser escutadas por aqueles que se desconstruíram emocional e cognitivamente na direção do ¨povo de Gaia¨.
Os antropocêntricos não podem então escutar e compreender as propostas acima. Dou exemplos: Eduardo Viveiros de Castro fez, em 2010, uma palestra na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo – SBPSP – intitulada ¨O Anti-Narciso: lugar e função da antropologia no mundo contemporâneo¨. A palestra do antropólogo foi publicada no volume 44 da Revista Brasileira de Psicanálise[3]. Junto com a palestra dois comentadores escolhidos a dedo entre os analistas da Instituição foram convidados a comentar a fala de Viveiros de Castro. Para meu espanto eles não compreenderam nada da palestra do antropólogo! Dediquei a isso a postagem de agosto/2012 e até agora me sinto traumatizada com esse debate, já que é óbvio que os psicanalistas poderiam dialogar e discordar de forma radical das ideias expostas sobre o pensamento ameríndio e a nova antropologia. Mas, não poderiam – como foi o caso – nada compreender daquilo que foi exposto! Nem as piadas eles compreenderam! Isso que aconteceu foi traumático, mas também revelador para mim de que as novas sensibilidades não são passíveis de serem aprendidas pela psicanálise clássica. E por psicanálise clássica estou entendendo todos aqueles que vivem sob o espírito de O mal estar da civilização, sob a égide de Totem e Tabu e com a bíblia embaixo do braço, refiro-me ao livro O Futuro de uma Ilusão de S. Freud. Assim como o espírito da política é Maquiável – e o PT está aí para demonstrar quão verdadeiro é a presença desse Pai-fundador na política atual -, a psicanálise que eu chamo clássica vive sob a égide de O Mal estar da Civilização e não abre mão da civilização de ¨mão única¨ proposta por Freud, e nela a ideia que a repressão instintual é inquestionável ainda que o preço sejam as guerras – mundiais diga-se de passagem. Lembremo-nos quanto Hebert Marcuse em Eros e Civilização tentou dar um basta à civilização de mão única! O problema é que o mundo mudou e o preço hoje deixou de ser tão somente (o que já era bastante!) as guerras mundiais, o problema hoje é o fim do mundo! Mas entre a realidade e o pai-fundador nessas premissas fechadas – porque excetuando-as abraço eu também o pai-fundador – os psicanalistas clássicos dão as mãos para o pai-fundador e não para a realidade sob seus olhos!
Centenário de Totem e Tabu, escrito por S. Freud e publicado em 1913, o livro mereceu uma re-edição e também debates no Brasil. Freud visava, como se sabe, formular uma nova ¨cosmologia¨, um novo pensamento sobre a condição humana e o mundo. Nela, narra a origem da hominização a partir de um passo fundante que jogou o homem dentro da sociedade, regida doravante por regras (tabus) e não mais pela força do patriarca despótico – figura cuja a força se manifesta nos totens[4]. No centro de nossa cultura temos agora, a partir de Totem e Tabu, um assassinato e um repasto antropofágico. Eis que tornamo-nos humanos após uma insurreição dos filhos, membros da horda primeva, que revoltados contra o despotismo do pai, tomam-lhe o poder, matam-no e devoraram-no. Diz ainda o articulista: ¨esta história estaria esquecida, enterrada na origem da humanidade¨[5], mas seria atualizada nos indivíduos através do complexo de Édipo: o drama social assim se atualizaria desde sempre e sempre! E conclui o articulista: essa narrativa sintetizava todo um saber antropológico, etnológico, filosófico, histórico, social e psicanalítico. Tem alguma importância para o ¨saber psicanalítico¨ que Freud, ao tratar dos povos ditos ¨primitivos¨, não conseguira se livrar da visão linear, evolucionista e eurocêntrica[6]? Sinto dizer, mas para a psicanálise isso não tem nenhuma importância, pois como dizem seus adeptos ¨suas conclusões são totalmente sustentáveis ainda hoje[7]¨. O que fazer frente a uma surdez desse porte?!
Concordo com V. Safatle quando ele diz, de maneira muito inteligente e sem desgostar ninguém, que o único universal que persiste é o mal estar[8]– Unbehagen – o indivíduo na modernidade é arrancado da tradição e lançado ao desabrigo, sem lugar e sem clareira. Penso que qualquer outro universal, Édipo, por exemplo, tornou-se repressivo – e então me compreenda o leitor não tenho nada, muito ao contrário, contra Édipo, a castração e o princípio de realidade, que esses dispositivos da subjetividade ensejam, são bem-vindos em qualquer clínica, desde que não se pretendam universais!
Dou um exemplo a partir da minha experiência pessoal: frequento os psicanalistas clássicos – debates não faltam em São Paulo, também supervisões clínicas – não tenho com eles uma conversa em torno do assunto dessa palestra, raramente, falo do ¨povo de Gaia¨ ou do ¨exército dos Terranos¨ e, todavia, vivo combatendo o universalismo, vivo combatendo a ideia de que Édipo e a castração ensejam o único princípio de realidade possível, e, para meu espanto, eles não compreendem o que eu falo! No início pensava que se tratasse de má vontade, agora sei que não é, é mais grave, pois se trata de uma construção emocional e mental que não lhes permite por em dúvida o mundo que habitam, o mundo moderno (quando, seja bem dito, este mundo, moderno, está em acelerada desconstrução). E isso não deixa de ser engraçado porque ninguém mais se preocupou com a realidade, com o princípio de realidade, com a aceitação da realidade do que a psicanálise clássica. O problema, inesperado e imprevisível problema, para eles, é que a realidade está mudando! Dito mais precisamente a desconstrução da subjetividade, desconstrução emocional e psíquica – tendo como base o homem moderno e o homem edipiano – nos permite entreabrir uma nova percepção da realidade que, doravante, temos chance de compartilhar. O século XX com suas matanças sem fim, com muitos genocídios, com o totalitarismo sempre à nossa espreita, trouxe-nos essa preciosa abertura, a compreensão que a realidade é múltipla e depende dos nossos olhos, da nossa matrix emocional/psíquica/espiritual. Um milagre, como experiência, se pôs para nossa contemplação e então para nosso pensamento. Por essa realmente ninguém esperava!
De novo é surpreendente que seja assim, mas é assim! A psicanálise clássica é a mais antropocêntrica das disciplinas humanas[9] e valendo-me da fala também lúcida de Davi, dos Yanomamis, põe os homens para ¨sonhar consigo mesmos¨. Principal aliada dos Humanos – modernos e achando imensa graça na era do antropoceno – a psicanálise clássica não vê e não verá com bons olhos os Terranos e não se deixará tocar pelo ¨povo de Gaia¨. E então lá – na Sociedade Brasileira de Psicanálise – a fala perspicaz do prof. Viveiros de Castro não pode ser escutada e compreendida. A construção emocional e cognitiva – tendo Édipo como centro – impede-os de fazer essa escuta porque o princípio de realidade a que tem acesso é edipiano e, com ele, fronteiras rígidas entre-mundos. Édipo reina soberano com os Humanos – modernos e seus infindáveis dispositivos mortíferos. E isso para mim revela que o problema não é somente o negacionismo aludido por Viveiros de Castro mas, mais sério ainda, o que está em jogo é uma determinada construção emocional e cognitiva: moderna e edipiana. A guerra então não é de persuasão, de convencimento; a guerra está se dando entre modos de ser e modos de ver.
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E as outras correntes da psicanálise seriam possíveis ¨aliados¨ dos Terranos, acolheriam ou pertenceriam ao ¨povo de Gaia¨?
Os junguianos por exemplo? Seriam sim, poderiam participar da aliança com o ¨povo de Gaia¨ se abandonassem seus sonhos conservadores, passadistas e prestassem atenção no imenso perigo que vem pela frente! E, tenho claro e afianço para os meus leitores que tirar os olhos do passado e pô-los no presente é um desafio gigantesco para um junguiano. Desde sempre o movimento junguiano tem aversão-afetiva pelo ¨povo da Natureza¨ e pelos Humanos – modernos e como forma de resistência lançaram seu olhar para o passado esperando seguramente dias melhores. E lá ficaram com os olhos voltados para o passado durante todo o século XX! Agora, os dias melhores para eles chegaram, e se ousarem olhar para o presente, os termos da aliança com o ¨exército dos Terranos¨ poderia se dar via sensibilidade romântica da escola junguiana e o amor que eles tem por Dionísio, afinal o corpo dionisíaco é, enquanto tal, abertura cósmica. Não foi isso que aprendemos com F. Nietzsche? Acrescente-se a isso que Jung um romântico inveterado e tardio buscava os arquétipos nos homens e também nos animais e isso seria a base comum da aliança entre homens a seres vivos em geral. E, saliente-se, Jung não negligenciava o mundo inorgânico, pois em uma bela passagem de Memórias, Sonhos e Reflexões tem sérias dúvidas se ele é uma pedra ou se a pedra é ele! Os Humanos psicanalíticos, aliados ao ¨povo da Natureza¨, costumam ver de forma bem crítica essa passagem já vendo nela a psicose latente de Jung! E, todavia, essa dúvida angustiante que Jung empreendia com o mundo inorgânico é parte da sensibilidade romântica e alquímica do unus mundus. De qualquer maneira há nas ideias de Jung uma possibilidade de unir e sentir mundos diversos e de sonhar objetivamente, para fora, com o exterior como propõe Davi Kopenawa, líder dos Yanomami. Jung e seus pacientes sonharam seguidamente e anos antes com a Primeira Guerra Mundial!
Além disso, o mundo junguiano é um mundo encantado graças à ideia de sincronicidade que correponde às afinidades eletivas[10] de Goethe, e com elas a retomada de uma única substância – pensamento e matéria – de B. Espinosa. A experiência da sincronicidade é, enquanto tal, diálogo entre-mundos: o ser humano – e não só ele por suposto – com as plantas, florestas, pedras, gnomos, fadas, seres invisíveis em geral.
Poder-se-ia objetar que são os seres humanos que, através do que chamam sincronicidade, estabelecem o sentido e a significação para os outros seres, orgânicos e inorgânicos. E, então, eu diria não é bem assim se, de fato, levarmos em conta as afinidades eletivas de Goethe, um dos pilares de Jung para tecer o conceito-experiência de sincronicidade – e só se compreende isso, como disse acima, se levarmos em conta Espinosa e os Românticos que liam o mundo a partir de uma única substância. Em uma sincronicidade vivida como experiência profunda é a pedra, por exemplo, o animal ou uma semente que detém o segredo do significado para o humano e, não raro, encontramos alguém que tem a sensibilidade junguiana fazendo uma circuambulação em torno da pedra, do animal, de uma semente, por anos, às vezes por décadas, abrindo-se para a pedra e/ou a semente detentoras do segredo da significação! A narrativa de um junguiano, de uma pessoa que tem essa sensibilidade, é a do ¨povo de Gaia¨ com certeza.
Em relação a essa escola de psicologia a aliança com os Terranos e com o ¨povo de Gaia¨ se resolveria mais facilmente, já que não são antropocêntricos e o fechamento não é de ordem cognitiva-emocional. São, sim, possíveis aliados.
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E os lacanianos veriam com bons olhos os Terranos? Seriam simpáticos ao ¨povo de Gaia¨?
Pouco posso dizer sobre os lacanianos, não os conheço bem. Dois lacanianos, porém, chamam minha atenção, e talvez com eles, refiro-me a W. Safatle e C. Dunker, os Terranos encontrariam algum acolhimento. Ao que parece são parceiros intelectuais e propõem a travessia do Imaginário para o Simbólico e então o Real. Vale dizer, levam sim o Real – do último Lacan – em conta – ao contrário de outros lacanianos que só pensam a clínica até o simbólico. Safatle, em particular, concorda com Deleuze quando critica aqueles que acreditam que fora do Eu, fora do indivíduo moderno, só pode haver caos. Safatle pensa que essa é a pior de todas as falhas morais, já que nos prende na defesa do sempre idêntico[11].
São as premissas de Lacan que nos ajudam a compreender por que, para Safatle, ¨há uma humanidade por vir e não temos o direito de temê-la¨[12]. Uma dessas premissas é que para Lacan, ¨toda a socialização é alienação¨. Ou só há sujeito fixo graças a repressão, e então a verdadeira fonte de sofrimento é resultante do caráter repressivo da identidade: ¨dessa identidade que devemos internalizar quando passamos por processos de individuação e de constituição social do Eu. Daí porque Lacan será tão sensível às temáticas vanguardistas de dissolução do Eu e de desarticulação de seus princípios de síntese enquanto condição para o advento de uma experiência capaz de realizar exigências de autenticidade. Isso a ponto de ele afirmar ser a análise uma ¨experiência no limite da despersonalização¨[13].
Outra premissa é que a psicanálise nasce no momento de crise profunda da modernidade ocidental. Mais enfaticamente, a psicanálise, ela mesma, é o sintoma maior dessa crise que nos levou a colocar em questão nossos ideais normativos sobre auto-identidade, sexualidade, modos de socialização, justiça e, sobretudo, nossas ideias sobre o que estamos dispostos a contar como racional[14]. Sintoma dessa crise, a modernidade oferta para o pensamento – eu diria para o pensamento psicanalítico, mas não só ele – uma outra concepção do humano:…¨uma concepção que insiste na importância de experiências de confrontação com o inumano, com o despersonalizado, com o indeterminado, para a formação de uma práxis emancipada. Pensar como a verdadeira práxis virá da capacidade que sujeitos devem desenvolver em se confrontar com o que não tem a figura de ¨humanidade¨ do homem: eis uma tarefa que Lacan nos deixou¨[15]. Confrontar-se com o que aparece como ¨Inumano¨ no interior do desejo, desprovido de imagem identitária do homem: uma potência de indeterminação e despersonalização que habita todo o sujeito. Daí o impacto político da ênfase no Inumano, pois através dessa noção redimensiona-se a teoria do reconhecimento: como reconhecer aqueles que não se configuram completamente como indivíduos no sentido que nós entendemos[16]?
É exatamente daí que parte C. Dunker, feroz observador das transformações da subjetividade na alta modernidade, justapondo e aproximando o ¨perspectivismo ameríndio¨ e os ¨tipos clínicos¨ recém configurados por ele: zumbis[17], mortos-vivos, frankensteins[18] e psicoses! Os nomes propostos por Dunker não são nada simpáticos e à primeira vista parece estranho aproximá-los do ¨perspectivismo ameríndio¨ de Viveiros de Castro. Em um primeiro momento essa justaposição pareceu-me grosseira e injustificável, mas aos poucos foi ganhando algum sentido para mim e, de repente, foquei minha atenção nas proposições do psicanalista e as novas sensibilidades em curso – ainda que descritas por ele como ¨experiências de sofrimento¨. Zumbis e Frankensteins sofrem com a falta de experiências produtivas de indeterminação pois para eles os processos de racionalização aparecem como vazio indiferente ou como experiência caótica de si e do mundo. Vale dizer, o Real aparece como impossível. É nesse momento que Dunker conclui, confesso que para o meu espanto: …¨os Zumbis e Frankensteins estão mais próximos daquilo que o antropólogo brasileiro Viveiros de Castro chamou de perspectivismo ameríndio (ou seja, uma cultura na qual a identidade não é tratada como um fato de origem e onde a experiência de reconhecimento está sujeita a elevados níveis de indeterminação)¨[19]. O perspectivismo ameríndio estaria então mais próximo da experiência do inumano, já que a vivência do laço social não se baseia na perspectiva de identidade. É disso que se trata?
Classificar e pensar não fazem boa parceria! Essa sede classificatória e diagnóstica de Dunker é amiga fácil de estereótipos e inimiga do pensamento. Os modos de ser existenciais tendem a ser duramente ofuscados por classificações e diagnósticos. Quando C. Dunker classifica e aproxima as formas de sofrimento atuais – que ele com muita sensibilidade e perspicácia recupera – do perspectivismo ameríndio, por suposto não nos ajuda a pensar! Acrescente-se a isto que C. Dunker não precisa da nova antropologia nem do perspectivismo ameríndio para construir a sua argumentação. Para quê então ele faz isso? E me vejo obrigada a fazer uma pergunta incomôda: Bruno Latour, Viveiros de Castro, Davi Kopenawa como seriam classificados? Seriam eles também Frankensteins, Zumbis, Mortos Vivos, Psicóticos – ainda uma vez?
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Outro tanto poderia ser dito em relação à esquizoanálise, paraíso dos Terranos, e do ¨povo de Gaia¨, e isto porque eles – os humanos que participam desses grupos – existem e subsistem a partir de duas qualidades pelo menos nesse momento: uma de-cisão a partir de valores, quero dizer, de-cidiram-se por esses grupos respondendo à pergunta ¨qual a Terra que queremos viver¨? Uma Terra onde a vida não acabe. Decidiram-se então pela Vida e a outra qualidade de ambos os grupos é que seus ¨adeptos¨ provém de entre-mundos: vegetais, animais, humanos, sementes, pedras, ar, terra, água: todos os ameaçados de extinção! Ora, a esquizoanálise de F. Guattari e G. Deleuze é propiciadora do valor Vida, aliás, vida vibrátil, vida pulsante em sua potencialidade máxima! E, também, vamos sugerir em seguida, pode ser patrocinadora dessa aliança entre-mundos .
A esquizoanálise é compreendida como uma ética-estética de valorização da vida, e quem participa dessa experiência se lê a partir de uma perspectiva – não tem em mãos – muito longe disso – uma metodologia e/ou uma teoria universal. Como uma perspectiva convive com todas as outras abordagens sejam dialéticas, estruturalistas ou qualquer outra. Como perspectiva, a esquizoanálise é muito mais do que uma prática clínica, sua intenção, aliás, foi e é de romper com os saberes instituídos em troca de um saber subterrâneo ao qual Deleuze e Guattari chamaram de rizoma, termo extraído da botânica. O ¨povo de Gaia¨ precisa romper com os saberes instituídos, a esquizoanálise lhes convém pois. Convém-lhes também porque a esquizoanálise não tem modelos para a vida; não há modelos existenciais bons e maus, mas infinitas possibilidades existenciais. A melhor atitude, a melhor possibilidade existencial, é aquela que produz uma vida mais vibrátil e pulsante. A vida só pode ser julgada pela própria Vida! E, todavia, há sempre duas lógicas em jogo: a lógica maquínica – que corresponde à subjetividade instituída e produzida socialmente através do ¨inconsciente maquínico¨ e/ou ¨inconsciente capitalísta¨[20] – e nesta lógica os corpos perdem a sua potência de expressão e há a construção de sujeitos narcísicos; mas, também há a lógica pulsátil presente nos corpos vibráteis que não repelem a sensorialidade, visto que procuram uma existência plena e para isso desejam afetar e ser afetados.
A esquizoanálise trabalha também com a ideia de agenciamentos e esse conceito-experiência supõe disparidade – agenciamentos díspares – e precisa ser ordenada desde o ponto de vista da imanência, a partir do qual a existência se mostra indissociável de agenciamentos variáveis e remanejáveis que não cessam de produzi-la. Há agenciamentos ¨molares¨ e os agenciamentos ¨moleculares¨ – e todo agenciamento remete em última instância ao campo do desejo sobre o qual se constitui . Então a maneira como cada indivíduo investe e participa da reprodução de agenciamentos sociais depende de agenciamentos locais, ¨moleculares¨ e, através desses últimos, cada indivíduo, introduz suas pequenas irregularidades. Cada um de nós combina concretamente os dois tipos de agenciamentos em graus variáveis, o limite é a esquizofrenia como processo – deterritorialização absoluta. Cito Mil Platôs: ¨Se a instituição é um agenciamento molar que repousa em agenciamentos moleculares (daí a importância do ponto de vista molecular em política: a soma dos gestos, atitudes, procedimentos, regras, disposições espaciais e temporais que fazem a consistência concreta ou a duração – no sentido bergsoniano – da instituição, burocracia estatal ou partido), o indivíduo por sua vez não é uma forma originária evoluindo no mundo como em um cenário exterior ou um conjunto de dados aos quais ele se contentaria em reagir; ele só se constitui ao se agenciar, ele só existe tomado de imediato em agenciamentos¨[21]. E concluo apostando que a esquizoanálise é uma prática micropolítica que só ganhará sentido com referência a um gigantesco rizoma de revoluções moleculares que proliferam a partir de uma multidão de mudanças mutantes: tornar-se mulher, tornar-se criança, tornar-se velho, tornar-se animal, planta, cosmos, tornar-se invisível…[22].
A noção acima, o ¨indivíduo só se constitui ao se agenciar¨, libera o poder de afecção dos indivíduos, para o entre-mundos – uma individuação por hecceidades e não por meio de características identificantes. E com isso, a esquizoanálise é aberta a novas formas subjetivas, novas formas de compor a vida, novas alternativas de reapropriação existencial que, porventura, novas coletividades humanas e de indivíduos venham a ¨agenciar¨: vidas vivas, vibrantes e então muito diferentes das formas de vida pobres que a subjetividade maquínica nos impõe.
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Muitas outras escolas da área-psi teriam como contribuir com o ¨exército dos Terranos¨ e com o ¨povo de Gaia¨. E, todavia, paro por aqui.
Uma palavra em torno do meu consultório. Sabe-se que um analista neurótico atrai muitos pacientes neuróticos, um analista com um certo traço mais esquizoide atrai muitos pacientes esquizoides, um analista ferido narcísico atrai muitos pacientes também feridos primais. Tudo isso se dá por afinidades eletivas! Claro que nem todos os analistas tem essa percepção à mão, refiro-me à sincronicidade, e então, não raro, acreditam que no mundo só tem neuróticos e esquizóides, por exemplo, e continuam então ¨sonhando só consigo mesmos¨ – como denuncia Davi Kopenawa.
No meu consultório aparecem muitos Terranos, a maioria dos meus pacientes são Terranos – cá e lá um Humano do ¨povo da Natureza¨ acolhido também com muito amor . Mas estes últimos não são numerosos. Quero com isto dizer que há sim uma nova sensibilidade cuja ¨experiência de sofrimento¨ é a de não adaptar-se ao mundo dos Humanos – modernos, do ¨povo da Natureza¨. Essa não adaptação, claro, traz muito sofrimento, mas começa-se a dizer não para o princípio de realidade instaurado pelo Humanos modernos e edipianos. A guerra está ganhando corpo.
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[1] Frente ao impacto que tive ao escutar e compreender as palavras do Prof. Viveiros de Castro em ambos os vídeos não resisti e fiz o mapa natal do antropólogo e seus trânsitos nos próximos anos. Eduardo é do signo de Áries e nasceu a 19 de Abril de 1951, na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se então de um ariano e qualquer astrólogo escutando-o pode apreender isso facilmente. Não sei o horário que o antropólogo nasceu e então não sei qual é o ascendente. E, todavia, só com os dados que tenho posso ter muitas informações sobre ele. Seu sol está a 28 graus e 43 minutos e a imagem Sabeu ( símbolo tradicional da astrologia) do sol é: a large audience confronts the performer who disappointed its expectations (¨Uma grande plateia confronta o artista que frustrou as expectativas do público¨) . Como interpreto esta imagem? O ariano inicia novos mundos, esse é o seu fazer, pois é um iniciador. Ao iniciar um novo mundo, claro, sempre frustra a expectativa de muitos!É inevitável.
A Vênus do Eduardo está a 5 graus de gêmeos e o símbolo sabeu que lhe corresponde é: a revolutionary magazine asking for action (¨Uma revista revolucionária pedindo ação¨) . Desde 2011 Netuno em peixes, um dos grandes deuses da mudança, está fazendo uma quadratura com a Vênus do antropólogo e isto significa que ele se abriu para a ¨unidade da vida¨. Dito de outra maneira sua forma de amar e de criar mundos desde há alguns anos transformou-se pois cairam as fronteiras entre-mundos.Netuno dissolve as fronteiras entre-mundos e abre para todos nós, quando passa pela Vênus ou pelo sol, a ¨unidade da vida¨. Em 2013, 2014 e 2015 Netuno fez e estará fazendo quadratura exata a 5 graus de gêmeos e – prosseguirá em conjunção ainda por alguns anos –e então Viveiros está e estará no auge dessa apropriação: criação de mundos a partir da ¨unidade da vida¨. E isso nos permite ler poéticamente então o símbolo Sabeu que corresponde a Vênus: escritos revolucionários que pedem ação!
Este trânsito de Netuno quadrando Vênus é então quem dará uma tonalidade especial aos dois grandes trânsitos sobre o Sol do antropólogo. Urano em Áries, o imprevisível, e Plutão em Capricórnio, o transformador,farão respectivamente conjunção e quadratura com o Sol do antropólogo. Urano a partir de 2015 já estará fazendo conjunção com o Sol e fará conjunção exata em 2017 e 2018 – prosseguindo ainda em conjunção por alguns anos.Plutão estará fazendo quadratura com o Sol de Eduardo a partir de 2018 e quadratura exata em 2022 – e por alguns anos ainda a partir dessa data. O que significa isso? Significa que esses dois planetas transpessoais trarão à tona as sementes genuínas da individualidade do antropólogo e com isso ele dará inícios – já que é o que melhor sabe fazer! – a mundos a partir de sua singularidade máxima. Quem viver, verá!
[1] Frente ao impacto que tive ao escutar e compreender as palavras do Prof. Viveiros de Castro em ambos os vídeos não resisti e fiz o mapa natal do antropólogo e seus trânsitos nos próximos anos. Eduardo é do signo de Áries e nasceu a 19 de Abril de 1951, na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se então de um ariano e qualquer astrólogo escutando-o pode apreender isso facilmente. Não sei o horário que o antropólogo nasceu e então não sei qual é o ascendente. E, todavia, só com os dados que tenho posso ter muitas informações sobre ele. Seu sol está a 28 graus e 43 minutos e a imagem Sabeu ( símbolo tradicional da astrologia) do sol é: a large audience confronts the performer who disappointed its expectations (¨Uma grande plateia confronta o artista que frustrou as expectativas do público¨) . Como interpreto esta imagem? O ariano inicia novos mundos, esse é o seu fazer, pois é um iniciador. Ao iniciar um novo mundo, claro, sempre frustra a expectativa de muitos!É inevitável.
A Vênus do Eduardo está a 5 graus de gêmeos e o símbolo sabeu que lhe corresponde é: a revolutionary magazine asking for action (¨Uma revista revolucionária pedindo ação¨) . Desde 2011 Netuno em peixes, um dos grandes deuses da mudança, está fazendo uma quadratura com a Vênus do antropólogo e isto significa que ele se abriu para a ¨unidade da vida¨. Dito de outra maneira sua forma de amar e de criar mundos desde há alguns anos transformou-se pois cairam as fronteiras entre-mundos.Netuno dissolve as fronteiras entre-mundos e abre para todos nós, quando passa pela Vênus ou pelo sol, a ¨unidade da vida¨. Em 2013, 2014 e 2015 Netuno fez e estará fazendo quadratura exata a 5 graus de gêmeos e – prosseguirá em conjunção ainda por alguns anos –e então Viveiros está e estará no auge dessa apropriação: criação de mundos a partir da ¨unidade da vida¨. E isso nos permite ler poéticamente então o símbolo Sabeu que corresponde a Vênus: escritos revolucionários que pedem ação!
Este trânsito de Netuno quadrando Vênus é então quem dará uma tonalidade especial aos dois grandes trânsitos sobre o Sol do antropólogo. Urano em Áries, o imprevisível, e Plutão em Capricórnio, o transformador,farão respectivamente conjunção e quadratura com o Sol do antropólogo. Urano a partir de 2015 já estará fazendo conjunção com o Sol e fará conjunção exata em 2017 e 2018 – prosseguindo ainda em conjunção por alguns anos.Plutão estará fazendo quadratura com o Sol de Eduardo a partir de 2018 e quadratura exata em 2022 – e por alguns anos ainda a partir dessa data. O que significa isso? Significa que esses dois planetas transpessoais trarão à tona as sementes genuínas da individualidade do antropólogo e com isso ele dará inícios – já que é o que melhor sabe fazer! – a mundos a partir de sua singularidade máxima. Quem viver, verá!
[2] A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami¨
é um relato único da história de vida de Davi Kopenawa. Relata a sua
iniciação como xamã e os primeiros encontros com os forasteiros brancos.
Descreve também a rica cultura, história e modos de vida dos habitantes
da floresta e não se furta a descrever suas impressoões da cultura
ocidental. O livro foi publicado em francês e em inglês e será publicado
em português em 2014.
[8]
Cito-o: ¨Sim, há algo universal. É o desconforto das pessoas com suas
limitações identitárias. Essa experiência é partilhada em qualquer tempo
e lugar; define a condição humana. Dizer isso é o desdobramento de uma
ideia freudiana: o mal estar é quem define o homem. Se quisermos podemos
dizer que o mal estar é uma categoria ontológica[…] Então, acho que é
possível construir experiências políticas, estéticas e reflexões
clínicas, fazendo apelo a essa dimensão profundamente essencial que é a
experiência do desconforto¨. Cult 186, ano 16/ dezembro de 2013.
Entrevista com W. Safatle, ¨A Filosofia nua e crua¨.
[9] Talvez os bionianos ( W. R. Bion) possam abrir-se para essa escuta e isso em função da noção de inconsciente como potencialidade infinita. A mente primordial,
realidade primeira do mental, para Bion, poderia bem ser pensada como
transpessoal e mesmo transespecista – e é sim possível pensá-la para
além da espécie homo sapiens.Da mente primordial de Bion faz
parte a história mesmo do cosmos e o futuro do cosmos: é o Ó,
inominável, infinito, informe e é em direção ao Ó que se dá a expansão da mente. Bion discípulo e analisando de Melanie Klein parte, com certeza, da personalidade edipiana, mas tende para um mais além, para o infinito, para Ó.
[10] Afinidades Eletivas é um romance de Goethe, que eu também recomendo; sofreu publicações em vários selos editoriais.
[17]
C. Dunker é um psicanalista atento aos sofrimentos que se constelam
como invenção e resposta às transformações no horizonte da nossa época.
Uma dessas formas de sofrimento que o autor generaliza tomando como
parâmetro as observações de W. Benjamim sobre os soldados que voltavam
da Primeira Guerra Mundial refere-se à impossibilidade de narrar, de
nomear, de dizer o sofrimento. Esse sofrimento hoje generalizado,
expressa a brutalidade do choque, o inominável da experiência que
silencia e, doravante, os que dele participam estão tais como os
combatentes de guerra ¨narrativamente lesados¨, na medida em que não
conseguem inscrever seu sofrimento em um discurso . Cito Dunker: ¨Seu
paradigma literário são os zumbis ou mortos-vivos, seres funcionais que
repetem automaticamente uma ação, incapazes de reconstruir a história da
tragédia que sobre eles se abateu. Parecem seres que perderam a alma e
cujo sofrimento aparece em meio a mutismos seletivos, fenômenos
psicossomáticos e alexetimias ( dificuldade de perceber sentimentos e
nomeá-los)¨. Revista Cult 174 – 19/11/2012. O artigo de C. Dunker
chama-se ¨O real e a verdade do sofrimento¨.
[18]
Na direção inversa, Dunker recorrerá à ¨antropologia do inumano¨
proposta por W. Safatle; estes experimentam uma forma de vida que é
sentida como monstruosa, animal e coisificada e fracassam
sistematicamente em dar nome à causa de seu sofrimento. E já que não
nomeiam a causa, buscam encontrar a razão de seu mal estar no mundo,
explorando para isso a força da inadequação, do estranhamento e da
fragmentação. Fora do tempo, fora de lugar, fora do corpo: ninguém
melhor que as sexualidades estudadas por Judith Butler para dizê-los.
Errantes da linguagem, inadaptados do trabalho, depressivos do desejo,
seu sofrimento pode ser tematizado como exílio e isolamento e
clinicamente é o que encontramos no trabalho de luto. Ressentimento e
tédio rondam a vida desses seres errantes. Cito Dunker: ¨É o drama
daqueles que são habitados por experiências de radical anomia e
indeterminação, cujo maior exemplo literário é Frankenstein. Esta
desregulação sistêmica do mundo, teorizada por Lacan como separação
entre real, simbólico e imaginário, exprime-se como sentimento
permanente de perda de unidade¨ ( CULT, número 174, p. 26).
[20][20]
O ¨inconsciente capitalístico¨ e ou o ¨inconsciente maquínico¨
corresponderiam à subjetividade capitalística produzida pela mídia e
pelos equipamentos coletivos e impõe modos de se compor com a vida que
visam atender às exigências globais do sistema.
[22] GUATTARI. Féliz. ¨Os oito ¨princípios¨ da esquizoanálise¨, escrito por Bernardo Rieux, 12/10/2005.
Fonte: Ponto de Vista
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