abril 13, 2015

"Saídas e “saídas” da crise a que chegamos". Por Diogo Coelho

PICICA: "Estou convicto de que uma saída transformadora para a crise em que nos encontramos só será possível se ousarmos e formos muito além de fórmulas que sejam o “mais do mesmo”, impregnadas de mecanismos identitários e políticas de “frentes”, que não são capazes de estabelecer diálogo com o justo e legítimo sentimento de indignação que se espalha pelos diversos setores sociais. Pelo contrário, tais políticas de “frentes” correm o risco de apenas servir de linha auxiliar para um projeto político – o do governo – que, além de conservador, está fadado à derrota política. Há que se fugir dessa armadilha. O que precisamos é de ousadia e confiança na energia criativa das multidões indignadas."

Saídas e “saídas” da crise a que chegamos

Por Diogo Coelho, jornalista e participante dos círculos de cidadania (Rio de Janeiro)


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A corrupção sistêmica da democracia brasileira é uma herança ainda da ditadura militar. É fruto da transição democrática conservadora “lenta, gradual e segura”, idealizada pelo general Golbery, que manteve estruturas e privilégios do regime anterior. As estruturas de governo foram capturadas pelos interesses da casta empresarial e financeira de nossa sociedade, mantendo a tradição patrimonialista de promiscuidade entre público e privado. Depois da redemocratização conservadora, esse mecanismo se materializou através do que Marcos Nobre chama de  “pemedebismo” (Imobilismo em movimento, 2013).

Tanto os governos do PSDB (1995-2002) quanto os do PT (2003-2015) – partidos, em tese, com caráter “modernizador” de nossa democracia – não foram capazes de romper com o mecanismo pemedebista. Pelo contrário – sem desprezar as conquistas obtidas ao longo dos últimos 20 anos no país, como o encerramento do ciclo híper-inflacionário e a relativa redução da desigualdade social -, PT e PSDB foram absorvidos por esse mecanismo de corrupção de nossa democracia. Em boa medida, ambos os partidos colaboraram para o aprofundamento da corrupção, na mesma medida em que jogavam a sociedade num misto de cinismo e desalento. Com isso, chega-se ao naufrágio ético de suas últimas esperanças dentro do sistema político-partidário forjado na “Nova República”.

Esse desalento coletivo é mais grave ainda no caso dos governos do PT (Lula, 2003-10, Dilma, 2011- ), já que esse partido, na fundação mesmo da “Nova República”, se posicionou e se moldou na persistente rejeição àquela transição conservadora idealizada por Golbery. O PT assumiu como marcos a defesa da Constituinte Exclusiva em 1986 (derrotada pela tese do Congresso Constituinte) e o voto contrário à Carta Constitucional de 1988. Desalento reforçado com a adoção e o aprofundamento de práticas que o partido combatia como bandeira central na década de 90, sob a legenda da “ética na política”. Ainda que, já àquela altura esvaziada de conteúdo político mais estruturante. Isto se deveu por três fatores: a) pelo trauma da derrota eleitoral de 1989, b) pelo processo de institucionalização do partido e subsequente adequação à ordem, ao passo da chegada do partido a governos locais, e c) o momento histórico de vitória ideológica do neoliberalismo e sua tese do “fim da história”.

Entretanto, os sentimentos de desalento e de traição em relação ao PT – que não poderiam deixar de serem justos, do ponto de vista geral da sociedade brasileira diante de tudo o que o partido pregou ao longo de seus primeiros 20 anos de existência –, não devem (ou não deveriam) ser compartilhados por aqueles que experimentaram a vida interna do partido, ao longo da década de 90. Estes não tinham como ser pegos de surpresa diante do processo, pois ao longo da década de 90, as práticas antidemocráticas, fisiológicas, clientelistas e de corrupção da democracia interna já se propagavam no interior do partido. Isto ocorreu partir das ações do chamado “campo majoritário”, com o objetivo de manter-se à frente da máquina partidária.

Num movimento começado em São Paulo – onde a influência de Lula e do “campo majoritário” alcançavam máxima expressão –, os “encontros democráticos”, com debate político desde a base, existentes desde a formação do partido, foram aos poucos substituídos por esquemas de votação em urna sem necessidade de participação nos debates. Proliferou-se assim nos encontros partidárias as práticas clientelistas de “voto de cabresto”. A chamada “tattolândia” em São Paulo, controlada pela família Tatto, é só o exemplo mais notável de uma prática que se tornou corriqueira. Daí para a criação de núcleos fantasmas e filiações fraudulentas – como as observadas no famoso caso “gaguinho” aqui no Rio de Janeiro, para garantir maioria nas prévias para a disputa da prefeitura, em 2000 -, a partir do aparelhamento de instâncias governamentais, foi um pequeno pulo. Com o passar do tempo, ao longo da década de 2000, mesmo muitos daqueles grupos da esquerda minoritária que optaram por permanecer no partido, para não serem excluídos das instâncias de direção, acabaram arrastados em menor ou maior grau para as práticas fisiológicas e despolitizadas/despolitizantes de disputa interna.

Ao mesmo tempo, também na década de 90, a falta de apreço democrático do “campo majoritário” do partido, liderado por Lula, ficava clara com os boicotes – como no caso da campanha para Prefeito do Rio em 1996 – ou intervenções diretas – como no caso da convenção estadual para a definição da candidatura a govenador do Rio em 98 – às escolhas democráticas feitas pelas bases partidárias.

A degradação do ideário original petista e a total adaptação do PT à ordem vigente – e sua consequente falta de energia transformadora para romper com os mecanismos de corrupção da democracia brasileira – são, portanto, anteriores à chegada do partido ao poder central após as eleições de 2002. A chegada ao Palácio do Planalto apenas elevaram a degradação e a adaptação do PT a outros patamares, e escancararam essa realidade para toda a sociedade brasileira. Não foi à toa – e não chegou a ser nenhuma surpresa – a reação do PT e de seus governos – seja o municipal em São Paulo, seja o governo federal – aos levantes de junho de 2013. O partido já não tinha mais vigor transformador nem sequer interesse em aproveitar a brecha democrática que aquele movimento abria.

Chegamos, então, neste ponto da crise política, de esgotamento da “Nova República” de que nos fala Vladimir Safatle. Como sempre, a saída para a crise poderá se dar por um novo arranjo conservador. Este arranjo pode ser mais ou menos traumático, mas ainda assim conservador. Em qualquer caso, terá os presidentes do Senado e da Câmara, figuras proeminentes do “pemedebismo”, como fiadores. Ou, alternativamente, a saída pode se dar por uma via efetivamente transformadora. Para que a segunda opção vingue, é preciso que a pressão popular materializada nas mobilizações multitudinárias aponte para um caminho que vislumbre a abertura de uma brecha democrática. Só assim se tornará possível a disputa, num momento seguinte, pela radicalização da democracia. E aqui, mais uma vez com Safatle, eu penso que a convocação de uma Constituinte Extraparlamentar – com regras de escolha que driblem tanto o monopólio da representação partidária, quanto o peso do poder econômico na eleição dos constituintes, e se sirva de mecanismos da participação popular direta pela via das tecnologias digitais (aqui o exemplo da Islândia pode servir de inspiração) –, seguida pela convocação de eleições gerais, pode ser esse caminho.

Afinal, se um regime (a “Nova República”) está moribundo, é justa a convocação de uma Constituinte radicalmente democrática – que seja expressão do poder constituinte que emerge das multidões insurgentes – para erguer outro em seu lugar. Não à toa, a palavra de ordem da Constituinte foi comum a muitos dos levantes multitudinários que se espalharam pelo mundo, a partir de 2011. Estou convicto de que uma saída transformadora para a crise em que nos encontramos só será possível se ousarmos e formos muito além de fórmulas que sejam o “mais do mesmo”, impregnadas de mecanismos identitários e políticas de “frentes”, que não são capazes de estabelecer diálogo com o justo e legítimo sentimento de indignação que se espalha pelos diversos setores sociais. Pelo contrário, tais políticas de “frentes” correm o risco de apenas servir de linha auxiliar para um projeto político – o do governo – que, além de conservador, está fadado à derrota política. Há que se fugir dessa armadilha. O que precisamos é de ousadia e confiança na energia criativa das multidões indignadas.



Diogo Coelho, jornalista, é servidor público

Fonte: UniNômade

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