abril 25, 2015

"Vício inerente e o espírito de 1968", por Bruno Cava Rodrigues (Quadrado dos Loucos)

PICICA: "Maio de 1968 não preparou a cama da restauração neoliberal. Não confundir o devir com o futuro… Foi o fechamento daquele, a sua derrota, a sua destruição objetiva e subjetiva em nome de um consenso que reúne direita e esquerda — e dominante até os dias de hoje. Continuamos matando 1968, assim como 1917, assim como Canudos ou a Comuna de Paris, assim como junho de 2013: cultura de silenciamento, cultura (H)istórica."

Vício inerente e o espírito de 1968
SantaCeia 
Santa Ceia da Era Nixon – novo espírito?


“Sous les pavés, la plage”, o grafite apareceu no meio das barricadas e revoltas de maio de 1968. Os manifestantes arrancavam paralelepípedos da rua para atirá-los contra a polícia. Debaixo da rua, reencontravam a “praia”. Outro significado possível está na reconquista do desejo selvagem por debaixo das camadas de civilização. Se a rua é confinada pelo meio-fio para canalizar os fluxos de trabalho, a praia é signo de ócio, liberdade de corpos e fruição. E poucas praias foram tão expressivas do way of life alternativo à azáfama disciplinada da vida moderna do que as da Califórnia nos anos 60. O grafite francês remete, dessa maneira, às cenas icônicas de surf, lual, liberdade sexual, maconha e juventude.

Vício inerente, de Paul Thomas Anderson, é adaptado do romance homônimo de Thomas Pynchon. A epígrafe do livro é, precisamente, “Sous les pavés, la plage”. O título em inglês do filme e do livro, “inherent vice”, foi mal traduzido. Porque a expressão significa, em português, “vício oculto”, que tem um significado técnico. Em direito do consumidor, vício oculto é quando o produto embute um defeito congênito, que não se manifesta de imediato. Nesse caso, não importa quanto tempo depois da compra ou o prazo de garantia, quando o vício se manifestar o consumidor tem o direito de acionar o vendedor.

Vício inerente pode ser encarado como o terceiro de uma trilogia entre os filmes de Anderson. Em Sangue negro (2007), o cineasta conta a história da violência da indústria do petróleo, em sua expansão ao oeste norte-americano, no começo do século 20. A violência é coberta pelas camadas morais de nação, trabalho, propriedade e igreja protestante, com o que a narrativa ganha sentido além da brutalidade direta de exploração. “Sangue negro” fala de um ethos, do que Weber chamaria de “espírito do capitalismo”. Em O mestre (2012), passamos ao imediato pós-guerra, quando o sonho americano se desdobrou numa ideologia da felicidade segundo as promessas do pleno emprego e do crescimento permanente. No filme, o veterano Freddie Quell é existencialmente sufocado pela sociedade fordista e suas harmonias e disciplinas.

Já em Vício inerente, vai-se à transição dos anos rebeldes ao neoliberalismo da era Reagan e Thatcher. A escolha de gênero, o policial noir responde, por um lado, à operação de forças sombrias de bastidor, que manipulam os personagens como peões de um grande complô; por outro, ao labirinto exasperante em que nada é o que parece. Capta-se assim o clima de uma época: a paranoia onipresente entre atentados políticos, conspirações e teorias da conspiração, espionagem e infiltração dos movimentos contestatórios, deriva de movimentos à via terrorista, holdings de importação e distribuição de drogas com conexões governamentais etc.

Stephen Maher, num texto na Jacobin, traduzido pelo Outras Palavras, elogiou o filme e o diretor, destacando-o do cinemão de Hollywood. Em síntese, para Maher, o novo trabalho de Anderson expõe o “vício oculto” dos movimentos de maio de 1968. Mostra como a revolução sexual e das drogas, as demandas por autoexpressão e lifestyles, prepararam a cama para a restauração neoliberal. E não foi apenas ao dispersar a boa e velha luta de classe em uma multiplicidade de expressões culturais, artísticas e minoritárias, ou ao desmobilizar a geração com letargias, psicodelias, meditações e prazer sexual. Foi porque, no âmago das lutas e movimentos dos anos 1960, sumamente ambíguas, estava o “espírito” de que o capitalismo precisou para se reestruturar.  A tese não é nova. Está compilada na obra O novo espírito do capitalismo (1999), de Luc Boltanski e Ève Chiapello, mas também, mutatis mutandis, nas críticas que Roberto Schwarz desferia contra os tropicalistas (ver, por exemplo, O pai de família e outros estudos, 1978). 

Maher prefere citar Zizek, que se apoia em Lacan. Embora um dos grafites de 68 diga que “as estruturas não vão às ruas”, Zizek diz que Lacan estava mesmo certo, ao afirmar que foi exatamente isso que aconteceu: as estruturas foram às ruas. Os manifestantes nas barricadas de 68 diziam se insurgir contra todos os mestres, mas no fundo apenas desejavam um novo. E conseguiram. O capitalismo se adapta ao desejos da geração, incorpora o “é proibido proibir” e cria o mestre permissivo. Ganharam um novo mestre, mais pervasivo e invisível. É a ideologia não só da felicidade, mas da felicidade obrigatória. Não se faculta mais o gozo: se ordena, é preciso gozar, o máximo, o tempo todo. Goze!

A ideologia capitalista incorporará o desejo de autoexpressão em individualismo, converterá os desejos de uma nova vida numa nova sociedade de consumo, usará o prazer como mentor do lucro e a liberdade produtiva “horizontal” como guia para um empreendedorismo meritocrático, abraçará os ideais libertários na forma de um hedonismo liberal e tolerante, mais preocupado com baladas, turismo e música pop. Zizek despreza a revolução sexual, cultural, das drogas: sem montar um partido revolucionário e tomar o poder, tais mudanças de hábitos foram facilmente recuperadas no espírito do novo capitalismo, levando-nos ao pesadelo fukuiâmico do “fim da história”.

Para Maher, Larry “Doc” Sportello não passa de símbolo tétrico das lutas perdidas, um hippie de meia idade cuja infinita lombra lhe desarma qualquer reação diante do conluio de forças reacionárias. O niilismo do policial caipira forma um duplo com o niilismo do maconheiro sem objetivos. A pasmaceira é absoluta, enquanto todos os sonhos são roubados por novas e mais disseminadas empresas de especulação imobiliária, clínicas modernosas e indústria do entretenimento. Ao protagonista resta apenas o banzo, num enredo empapuçado e de impossível intervenção, quando os ideais libertários são os mesmos que nos levam a dizer sim a místicos charlatães, pornólatras e terapias caça-níqueis.

Mas o filme não cabe no esquema zizekiano. Nada disso. Doc não só desvenda a trama inteira, como age quando tem que agir. Os acontecimentos superam o ritmo do protagonista, porém, ainda assim, ele resolve o essencial: resgata Coy dos grupos de extrema-direita, e reata com Shasta, o grande amor. Embora tudo pareça ruir ao redor, volta para casa onde, em ócio de resistência, segue sua vida à beira da praia. O jogo de luz e sombra do noir, na última sequência, afinal, fecha na luz. Doc não incorre em nenhum niilismo passivo. Não ocorre relação dialética entre ele e Bigfoot. Ao contrário, o xerife caipira é quem demonstra um amor recôndito ante o mundo do detetive hippie sujo, e não o inverso.

“Não é bem assim”, é preciso dizer a Maher da Jacobin. Maio de 68 foi também uma revolta contra o socialismo burocrático, disciplinar, careta e estagnado. Não por acaso, a primavera também espocou em Praga, no bloco soviético. Lutava-se contra as engrenagens de uma sociedade dirigista e unitária, ao que o espírito do capitalismo do pós-guerra se moldou com uma ideologia socializante, inspirada em Keynes. Lutava-se contra o partido, o sindicato, a velha esquerda (quase uma redundância) — que fizeram de tudo para matar o ciclo de 1968 e até hoje fazem, inclusive ao escrever críticas de filmes. Não foi puro, não foi sublime, mas não tem nenhuma ambiguidade quanto ao sentido geral libertador das lutas daquele ciclo. Os hábitos que nos legaram, até hoje, inflamam o corpo de resistências vivas e reinvenções cotidianas numa multiplicidade de frentes.

Maio de 1968 não preparou a cama da restauração neoliberal. Não confundir o devir com o futuro… Foi o fechamento daquele, a sua derrota, a sua destruição objetiva e subjetiva em nome de um consenso que reúne direita e esquerda — e dominante até os dias de hoje. Continuamos matando 1968, assim como 1917, assim como Canudos ou a Comuna de Paris, assim como junho de 2013: cultura de silenciamento, cultura (H)istórica.

A sociedade fordista, no ocidente, era animada pela obsessão da organização produtiva. Um dirigismo político e econômico que estruturava suas instituições, das mais molares às mais moleculares. Se até hoje as esquerdas se reportam nostalgicamente aos “anos gloriosos” de pleno emprego e planificação estatal, já no final dos anos 50 os beatniks apontavam a asfixia existencial dos subúrbios do pós-guerra. Melhor ser Freddie Quell, que foge da seita dos felizes em sua motocicleta pelo deserto. Nos 60, o movimento ganhou a cultura pop, a arte viva, as barricadas, os grafites, as revoluções. O que abalaria para sempre o poder disciplinar nas sociedades capitalistas ou socialistas, precipitando, inclusive, a derrocada do socialismo real (amém).

Doc está pronto para outra trama e não hesitará em agir se preciso. Sob o pavimento, a praia. Ainda é preciso aprender a habitá-la plenamente.



Fonte: Quadrado dos Loucos

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