abril 25, 2015

¨Vocês, brancos, não têm alma¨: histórias de fronteiras – Jorge Pozzobon (Ponto de Vista)

PICICA: "Esse livrinho encantador de Jorge precisa ser lido e relido. Topei com ele na loja virtual do ISA ( Instituto Sócio Ambiental) e constatei que lá tem uma série de preciosidades, etnografias incomuns eu diria. Pozzobon morreu precocemente no início dos anos 2000, mas deixou alguns trabalhos significativos: mestrado e doutorado, artigos e o livro que agora comento. Jorge foi colaborador do ISA e integrante da equipe do Programa Rio Negro e durante 20 anos manteve andanças e convivência com os índios Maku, uma das famílias linguísticas do Rio Negro.

Vocês, brancos, não têm alma reúne narrativas diversas e heréticas: histórias, crônicas, observações preciosas sobre a vida entre os índios Maku, roteiros de cinema e uma dolorosa denúncia sobre nós mesmos, ocidentais, brancos, modernos e colonialistas. Nas  próprias palavras de Jorge Pozzobon: ¨Estas histórias falam dos limites entre a nossa civilização e algumas outras civilizações que este país encerra e maltrata há 500 anos¨. É exatamente essa multiplicidade de narrativas, de gêneros narrativos, que encanta por que tras à tona a multiplicidade da alma de Jorge. Isso claro só foi possível depois que ele conseguiu uma alma! – no bojo desta postagem eu contarei a vocês como foi. Só quem tem alma – que eu compreendo neste momento como uma perspectiva própria – pode ser múltiplo e narrar o mundo de forma encantadora a partir de uma infinidade de pontos de vista. Jorge gostava de extravasar as fronteiras de si mesmo! O instigante livrinho de Jorge ganhou uma segunda edição em 2013, editora Azougue em co-edição com o ISA – já havia tido uma primeira edição em 2002, museu Goeldi em co-edição também com o ISA.

Jorge ao longo do livro nos oferta histórias inquietantes, muito inquietantes [ ¨Iniciação¨, ¨Pedra Lascada¨,¨Branco estúpido¨]; histórias engraçadas [ ¨Primatas¨, ¨Selva¨, ¨Amocambados e na doutrina de brutos¨], histórias assustadoras e misteriosas [ ¨Vocês, brancos, não têm alma¨] histórias dolorosas [ ¨O Papa Diárias¨, ¨Teoria da Punição¨, ¨Teoria da Barbarie¨] histórias emocionantes e delicadas [¨Nyaam Hi¨]. As histórias contadas  foram cronologicamente  editadas de 1981 a 2001 e se passam no cenário amazônico na fronteira do Brasil com a Colômbia.

A cada página ria e chorava, pois Pozzobon tem um jeito de escrever simplesmente delicioso e não acadêmico: escreve sobre uma experiência só dele, única. Um antropólogo de verdade! Ao longo do livrinho e ao final dele perguntamo-nos se os ¨amocambados na doutrina dos brutos¨ – como se referia Manoel M. F. Pinto aos Maku – não somos justamente nós os ditos civilizados, arrogantes, portadores de uma única perspectiva de mundo, a nossa!"

¨Vocês, brancos, não têm alma¨: histórias de fronteiras – Jorge Pozzobon

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Criança maku

I. Introdução: múltiplas narrativas e múltiplos olhares

Esse livrinho encantador de Jorge precisa ser lido e relido. Topei com ele na loja virtual do ISA ( Instituto Sócio Ambiental) e constatei que lá tem uma série de preciosidades, etnografias incomuns eu diria. Pozzobon morreu precocemente no início dos anos 2000, mas deixou alguns trabalhos significativos: mestrado e doutorado, artigos e o livro que agora comento. Jorge foi colaborador do ISA e integrante da equipe do Programa Rio Negro e durante 20 anos manteve andanças e convivência com os índios Maku, uma das famílias linguísticas do Rio Negro.

Vocês, brancos, não têm alma reúne narrativas diversas e heréticas: histórias, crônicas, observações preciosas sobre a vida entre os índios Maku, roteiros de cinema e uma dolorosa denúncia sobre nós mesmos, ocidentais, brancos, modernos e colonialistas. Nas  próprias palavras de Jorge Pozzobon: ¨Estas histórias falam dos limites entre a nossa civilização e algumas outras civilizações que este país encerra e maltrata há 500 anos¨. É exatamente essa multiplicidade de narrativas, de gêneros narrativos, que encanta por que tras à tona a multiplicidade da alma de Jorge. Isso claro só foi possível depois que ele conseguiu uma alma! – no bojo desta postagem eu contarei a vocês como foi. Só quem tem alma – que eu compreendo neste momento como uma perspectiva própria – pode ser múltiplo e narrar o mundo de forma encantadora a partir de uma infinidade de pontos de vista. Jorge gostava de extravasar as fronteiras de si mesmo! O instigante livrinho de Jorge ganhou uma segunda edição em 2013, editora Azougue em co-edição com o ISA – já havia tido uma primeira edição em 2002, museu Goeldi em co-edição também com o ISA.

Jorge ao longo do livro nos oferta histórias inquietantes, muito inquietantes [ ¨Iniciação¨, ¨Pedra Lascada¨,¨Branco estúpido¨]; histórias engraçadas [ ¨Primatas¨, ¨Selva¨, ¨Amocambados e na doutrina de brutos¨], histórias assustadoras e misteriosas [ ¨Vocês, brancos, não têm alma¨] histórias dolorosas [ ¨O Papa Diárias¨, ¨Teoria da Punição¨, ¨Teoria da Barbarie¨] histórias emocionantes e delicadas [¨Nyaam Hi¨]. As histórias contadas  foram cronologicamente  editadas de 1981 a 2001 e se passam no cenário amazônico na fronteira do Brasil com a Colômbia.

A cada página ria e chorava, pois Pozzobon tem um jeito de escrever simplesmente delicioso e não acadêmico: escreve sobre uma experiência só dele, única. Um antropólogo de verdade! Ao longo do livrinho e ao final dele perguntamo-nos se os ¨amocambados na doutrina dos brutos¨ – como se referia Manoel M. F. Pinto aos Maku – não somos justamente nós os ditos civilizados, arrogantes, portadores de uma única perspectiva de mundo, a nossa!

Tenho um prazer imenso em ler etnografias pois elas nos fazem muito bem; é uma forma de experimentar a diferença e saborear outras maneiras de ser, de viver e de se relacionar – outras cosmologias. Os profissionais que se dedicam exclusivamente ao  homem ocidental moderno e que exatamente por isso o universalizam, como é o caso por exemplo da psicanálise,  deveriam ter por hábito – eu aconselho –  a leitura de três etnografias/mês. Agora,  para um psicanalista bem formado nas Sociedades de Psicanálise – oficiais e reconhecidas internacionalmente – eu recomendaria aumentar essa cota. Seus pacientes agradeceriam. A crise global e planetária que atravessamos deixa essa eleição – do homem ocidental moderno universalizado – simplesmente sufocante e, se não mudarmos rapidamente esse prisma,  será também trágicômico! Não dá mais para olhar o próprio umbigo e achar bacana! Mas voltemos a Pozzobon e aos índios Maku pois temos muito a aprender com eles.

O livrinho de Pozzobon trás uma aprendizagem que ¨não se aprende na escola¨ – como diz a canção – e não é para iniciados; a bem da verdade é para todos, porque é a retomada da narração que encanta. Precisamos nos inspirar nele e escrever também com alma – antes claro precisamos conquistar uma! Pozzobon viveu entre os índios Maku durante 20 anos. Esses índios  não habitam a beira dos rios, são antes profundamente conhecedores da mata, do interior da mata amazônica, vivem nos matos dos interflúvios e são algo desprezados e considerados inferiores  pelos ¨índios dos rios¨, inclusive pelos Tukanos. São grupos seminômades de agricultores, coletores e caçadores e ¨comentados¨ por meio de cartas entre os religiosos e os mantenedores da ordem desde a colônia. Diferentes dos Tukanos, índios que habitam a margem dos rios, os Maku não se deixam catequizar e não estão interessados, a maioria dos grupos ,  em assimilar a cultura do branco ocidental.  Jorge se tornou um Maku,  aprendeu a falar a língua Hupdâ – uma das variantes Maku e isso lhe valeu ser tratado por eles como Yossi ( corruptela de Jorge). Escolhi algumas poucas histórias para contar nesta postagem esperando que os que me leem comprem essa joia imediatamente na loja virtual do ISA e façam uma leitura própria.

 II. Iniciação do Antropólogo

Um dos curtos capítulos do livro chama-se  ¨Iniciação¨ e, como já sugeri, é um dos mais inquietantes. É quando Jorge chega pela primeira vez a uma aldeia Maku;  é sem dúvida um momento crucial em função da radicalidade de sua ¨escolha¨: índios que vivem no mato, os Yuhup e outros índios da nação Maku. Arredios à catequese e à educação escolar, avessos à vida sedentária, vagam no interior da floresta, longe dos rios navegáveis, estabelecendo-se temporariamente em aldeias de difícil acesso. A maioria deles não fala português.

Um índio do grupo Tukano – esses índios habitam a beira dos rios, foram catequizados,  receberam alguma educação escolar, muitos falam o português – leva Jorge até a aldeia Maku, em dezembro de 1981 e encarrega-se de explicar o porquê da presença de Jorge lá. O Tukano vai embora e Jorge fica sozinho e depara-se com uma frieza e indiferença que o faz sentir-se, nas suas palavras, como um fantasma. Na noite mesmo de sua chegada teve uma festa e os índios beberam muito (caxiri de mandioca), fumaram, brigaram e se espancaram. E depois foram para o mato até a raiva passar!
Eis que a indiferença dos Maku começa a fazer sentido para Jorge. Cito-o:…¨Trata-se de um povo que vive um duplo ritmo: o da aglomeração em aldeias e o da dispersão na floresta. A aglomeração serve para as tarefas coletivas, como abrir roças de mandioca. A dispersão é o momento da caça. As brigas eram motivos adicionais de dispersão. Mas a dispersão também podia resultar em novas aglomerações.  Essa viagem que fazíamos agora era um exemplo, pois os viajantes pretendiam se juntar a uma aldeia de parentes no rio Traíra. Quanto ao desleixo, ele vinha do nomadismo: ninguém investia muito na aparência das casas e na limpeza da aldeia, sabendo que em pouco tempo poderia estar acampado, caçando no mato, ou se integrando a outra aldeia por causa de um desentendimento. Da rejeição inicial, passei a admirar esse povo, com sua forma simples e eficaz de viver em sociedade¨[1].

O capítulo ¨Caderno de Campo¨, anotações do ano de 1982, é exemplar do fazer antropológico e nele fica claro como Jorge foi aprendendo a lidar com a vida no mato, conhecendo a floresta,  o tamanho da caça e o tipo de pegadas,  quando a caça passou, enfim, uma sofisticada leitura de sinais, do tempo; trata-se de uma outra cultura, para os leitores um outro mundo. Esse capítulo por suposto é especial nesse sentido,  mas o livro todo trás à tona uma aprendizagem densa e extremamente sensível  da floresta e dos índios Maku. O livro ¨Vocês, brancos, não têm alma¨  não tem citações e muito poucas alusões teóricas; o que é visado é a experiência empírica do antropólogo na sua relação com o outro: como o antropólogo pensa quando seu objeto é o ¨outro¨.  E, todavia, não resisto em fazer uma apreciação teórica a respeito de uma única questão: a transformação do antropólogo em contato com uma outra cultura.   Merleau Ponty afirma referindo-se à antropologia:…¨ Método singular: trata-se de aprender a ver o que é nosso como se fossemos estrangeiros, e como se fosse nosso o que é estrangeiro¨[2]. E ainda uma questão que nos interessa sobremaneira: …¨Basta que tenha, algumas vezes e bem longamente, aprendido a deixar-se ensinar por uma outra cultura, pois, doravante, possui um novo órgão de conhecimento, voltou a se apoderar da região selvagem de si mesmo, que não é investida por sua própria cultura e por onde se comunica com as outras[3]¨… O antropólogo vive então uma experiência no campo etnográfico, e é exatamente essa experiência traduzida como afetação que lhe permite um sem número de des-alojamentos psíquicos, emocionais, mentais e com isso o antropólogo se transforma na relação com o outro. Doravante é como se possuísse um ¨novo órgão de conhecimento¨ [4] – na feliz expressão de Merleau-Ponty. É incrível como podemos ler isso em cada uma das páginas do livrinho de Jorge Pozzobon.

III. Festival de peidos ou flatulências coletivas

Jorge encontrou cartas das autoridades religiosas e não religiosas desde o século XVIII relatando os fatos muito graves que se passavam no Arraial Nossa Senhora do Nhé-Nhé: ao redor desse arraial viviam dezenas de nações selvagens – expressão da época –  e eram catequizados e tudo ia bem até que chegaram os Uacuenes – os Maku – e passaram a promover arruaças e brigas com os outros índios e o que é pior e agora passo a palavra para  Manoel M. F. Pinto: ¨… o gentio dos Uacuenes usa da flatulência para dar noção do que lhe vai n´ alma e que além de mostrar menoscabo ou malquerença por meio das indiscretas ventosidades, também se alegra com elas em seus bárbaros torneios, em que cada um se esforça por vencer seus pares na pestilência dos execráveis gases, na eloquência do ruído, em sua duração, assim como em sua bizarria¨[…] O Reverendo Padre Joaquim Maria Bulhão Pato contou-me entristecido que jamais logrou inspirar o temor de Deus no espírito destes bárbaros, pois que durante a Santa Missa, os mesmos sempre se dão a emitir os diabólicos ruídos e gases, rindo à solta, sobretudo no momento da Consagração,  em que se exige todo o silêncio e respeito de que é capaz a humana criatura, sendo este o motivo que levou o dito Padre a aplicar-lhes repetidos e justíssimos castigos corpóreos, pois que os demais índios se influíram com os usos dos Uacuenes e agora se entregaram por completo à abominável prática da flatulência coletiva¨[5]…Na medida que não é possível discipliná-los e submetê-los à autoridade que emana d´El Rei ¨vão continuando cada vez mais para o centro do mato, vivendo como amocambados e na doutrina de brutos, como antigamente eram¨[6]…E vamos tendo notícias desses ¨brutos¨ em outras cartas. Uma última de 1995, em Cuiabá, vale à pena contar. A  carta é do coronel Odenir de Oliveira para Jorge Pozzobon na qualidade de Presidente Substituto da Funai e de novo se passa na cidade Nossa Senhora do Nhé Nhé relatando o que aconteceu durante uma partida de futebol entre os integrantes do clube da cidade e os índios Uacuenes. Os últimos estavam perdendo e não hesitaram em espancar os primeiros. Voltaram para o seu acampamento não sem antes roubarem o troféu de primeiro lugar, sanduiches, refrigerantes e armas. No acampamento embriagaram-se e passaram a dar tiros. Recusavam-se a devolver para as autoridades o troféu e as armas pois, segundo eles, eram troféus de guerra. E começaram de fato a prepararem-se para a guerra. Convocados às negociações, enviaram para as autoridades ¨uma fita de gravador contendo a resposta dos índios, cuja fita contém apenas uma barulhenta soltura de gases intestinais e muita gargalhada¨[7].

IV . O contato com Beré e a amizade com Nyaam Hi.

Beré é um indiozinho Tukano que se ¨perdeu¨ de sua tribo e foi parar nas mãos de um comerciante inescrupuloso. Jorge o encontrou praticamente escravizado e constrangido  teve que ¨comprá-lo¨ ( pagar para o comerciante as supostas dívidas de Beré). Beré  teve uma destinação interrompida pois deveria na sua tribo ter sido pajé e para isso seu avô  o iniciava. Seu avô fora um yai ( pessoa-onça, pajé importante) e Beré como era o neto mais velho herdou o nome do avô; o velho o estava treinando para ser também um yai, mas morreu antes de o treinamento terminar e, com isso a vida mudou o curso e a destinação do indiozinho Beré.

Jorge, no auge dos seus vinte e seis anos e de sua onipotência precisava de um guia que o levasse até a cabeceira inexplorada do Marié onde esperava encontrar o Povo da Zarabatana, um grupo Maku que vivia em total isolamento e sem contatos não só com os brancos, mas também com os outros índios e Beré agora o acompanha nessa aventura. Estamos em julho de 1982. No percurso, famintos, Jorge atira com seu rifle em um macaco, mas não o mata, só o fere mortalmente e isso não é bem visto pelos índios por causa de Boraró, uma entidade sobrenatural da floresta que protege a caça e a multiplica; para que isto se dê Boraró exige um procedimento especial: os restos da caça – quer sejam as penas, quer  os pelos,  quer os ossos  – devem ser a ele entregues para que ele, Boraró, possa fazer um novo animal com os restos mortais do outro. Ora, Jorge só feriu mortalmente o macaco e ele morrerá em vão e Boraró  não gosta disso. Para os Tukanos, Boraró, quando isso acontece, quer que lhe ofertem almas humanas e se nada lhe é dado em troca pela caça ferida, Boraró – como uma metáfora da própria fúria da natureza – passa a aterrorizar os homens e joga dardos invisíveis mortíferos. O fato é que apesar de Beré rezar muito para afastar e apaziguar Boraró, Jorge adoece, adoece mortalmente, e numa canoa mantêm-se febril, vomitando muito e cheio de alucinações. Beré só faz rezar. Jorge está morrendo e não há reza de Beré que o tire das garras da morte e é, nesse momento crucial, que Jorge tem um sonho: vai até a maloca ( a casa grande dos Tukanos onde habitam muitas famílias e cuja tradição é manter seus mortos enterrados sob a própria maloca) e lá encontra o avô de Beré e no lugar das tumbas Jorge encontra tanques cheios de água onde nadam botos e então o avô de Beré lhe oferta uma alma, porque os brancos não têm alma, já sabemos.

Jorge conta esse sonho para Berê e o indiozinho afirma:…¨Sonho verdadeiro. Porque o boto é símbolo do meu clã[…] Você descobriu isso sozinho no sonho, porque você está morrendo. Por isso você foi até a casa do meu avô procurar uma alma, procurar uma vida. Vocês brancos não têm alma. Quando morrem vocês vão para o nada enquanto a gente vai pra casa do nosso avô, a casa do nosso clã. Você foi até lá pra achar uma alma, uma vida, porque sua vida tá se apagando. Agora eu vou te curar em nome do meu avô, que também é o meu próprio nome. O teu nome agora não é mais Jorge. O teu nome é… ( não posso revelar). Agora você pertence ao meu povo. Agora, sim, eu sei qual é a reza que eu tenho que soprar para livrar você do veneno do Boraró¨[8]  Jorge se restabelece e Beré por sua vez encontra seu destino que fora interrompido:  pelas ¨mãos¨ de Jorge torna-se pajé, pois seu processo de iniciação, com o sonho de Jorge é retomado.

Em 1982 Jorge também conheceu Nyaam Hi – um Maku do grupo Hupdu, de 45 anos, risonho, brincalhão e muito mas muito polido, uma figura dersuzalática[9] e fez dele seu grande amigo. Com ele aprendeu  a andar no mato,  não no sentido de orientação, ou nos lugares de caça, mas ¨do melhor estado de espírito para se andar no mato¨ [10]. Cito Jorge:…¨ A gente tem que estar alerta, mas é preciso também uma certa nonchalence, uma espécie de alegre e desprendido foda-se. Foda-se o cansaço, a bolha no pé direito, o equipamento ensopado, foda-se o caderno de campo. Para andar no mato você tem que estar alerta de uma forma especial. Você não está vendo uns pés de umbaúba logo à frente: você é aqueles pés de umbaúba. Você é a floresta, seus bichos, suas entranhas. Mas ao mesmo tempo, você não se importa. Você se deixa levar ao sabor dos acontecimentos. É uma forma de consciência meio animal. Isso que Nyaam Hi me ensinou¨[11]

Nyaam Hi nunca virou chefe de aldeia, mas virou pajé, sempre errante entre os grupos Maku e outros índios da região, oferecendo seus préstimos. No alto Rio Negro, os índios consomem um alucinógeno chamado Kahpi, no Acre Ayuasca, e fazem um uso específico disso: para a pajelança e para consultar os ancestrais a respeito do nome que devem dar a um recém-nascido e os Maku fazem dessa droga um uso adicional: quando o caçador está envelhecendo toma a droga e se transforma em onça e sai por aí caçando e por isso é muito grave matar uma onça porque, se ela morre, o corpo do velho também morre. Prática conhecida de Nyaam Hi. Eis o motivo pelo qual Nyaam Hi não temia as onças e as considerava ¨seus parentes¨. Certa vez duas onças ameaçavam Jorge e Nyaam Hi. Jorge apontou o rifle, Nyaam Hi gritou para as onças: ¨Velho Onça Deitada é o meu nome¨. As onças deram meia volta e foram embora.

Em 1997, na companhia do amigo, atravessou o divisor de águas entre o Tiquié e o Papuri, para visitar aldeias Hupdu, andarilhando o chavascal e levando às costas mapas com os limites da demarcação de terras indígenas, reconhecidas finalmente pelo governo federal brasileiro. O chavascal, um dos tipos de floresta amazônica, descrito por Jorge no capítulo ¨Branco estúpido¨, é  simplesmente aterrorizante. Gigantescas poças d´água  cheias de sapos venenosos, sucuris, caranguejeiras, escorpiões, no cimo dos altiplanos entre os rios. Andando um chavascal nem os índios falam e ficam mais alertas do que nunca. Índio fica humilde, pisa mansinho, pois o chavascal é quieto, lúgubre, úmido e sombrio e não se deve pronunciar seu nome.

Em 2001 se deu o último encontro entre Nyaam Hi e Jorge. Nyaam Hi havia se afastado de sua aldeia, muito doente, esperando a morte. Jorge foi ao seu encontro despedir-se do amigo e ele mesmo Jorge estava também doente e alguns meses depois também morreria.

 V. Maku na cidade

   Penso que tem muita ¨alma maku¨ nas cidades!  Eles nunca serão eliminados da face da terra porque eles estão sempre a renascer: os que não se enquadram, não se deixam dominar, não se deixam catequizar e mantêm um certo desprezo pelos prêmios civilizatórios.  Claro que isto sou eu quem pensa e não o querido Jorge/Yossi Pozzobon.
      

[1] POZZOBON. Jorge. ¨Vocês, brancos, não tem alma¨. op. cit. p.27.

[2]MERLEAU – PONTY, Maurice . De Mauss  a Claude – Lévi – Strauss. In: Textos Selecionados (Os Pensadores). São Paulo, Abril S.A, 1984. – grifos nossos.

[3] Idem. Ibidem. p. 200. – grifos nossos.

[4] Essas duas questões são comuns ao antropólogo e ao psicanalista: ambos se transformam no contato com o outro e ambos desenvolvem esse novo ¨órgão do conhecimento¨. No psicanalista esse ¨órgão do conhecimento¨ é esvaziado, lugar vazio e meditativo que permite a escuta e então o nascimento de ¨pensamentos não pensados¨- como quer W. R. Bion.

[5] POZZOBON. Jorge. Voces, brancos, não tem alma. op. cit. p. 75. A carta é de 18/3/1798.

[6] Idem. Ibidem.

[7] Idem. Ibidem. p. 79.

[8] Idem. Ibidem. p. 55.

[9] CARRERO, Beto. Yossi Deh Naw. In: POZZOBON. Jorge. Vocês, brancos, não tem alma. p. 5.

[10] POZZOBON. Jorge. Vocês, brancos, não tem alma. op. cit. p. 133.

[11] Idem. Ibidem. p. 133.

Fonte: Ponto de Vista

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