Carlos Ocké Reis*

Texto publicado na Plataforma Política Social e no site Brasil Debate.

Introdução

Para alterar a correlação de força, duas táticas combinadas são necessárias na atual conjuntura.

De um lado, Dilma precisa compreender que o tamanho do aperto monetário e do ajuste fiscal fragiliza a estratégia contraofensiva do bloco progressista, minando sua governabilidade popular e sua margem de manobra para criar um novo ciclo de desenvolvimento. De outro, diante da crise internacional, apesar do recuo social-liberal na política econômica, esse bloco precisa debater os erros e os acertos do desenvolvimentismo petista, bem como discutir a necessidade de negação e de superação do tripé macroeconômico (sistema de meta de inflação, superávit primário e câmbio flutuante).

Nada será como antes para a esquerda brasileira. É preciso discutir sua divisão, seu pragmatismo, seu romantismo, na crítica dialética do seu ‘horizonte de expectativa’. Saudada em toda América Latina, a vitória de Dilma foi uma vitória contra o retrocesso. Mas, se quisermos avançar, unidade é a palavra de ordem para superar a tática defensiva no Estado (economia) e para avançar na estratégia contraofensiva na sociedade (política, ideológica e organizativa), fortalecendo o governo federal em sua promessa de mudar para melhor a qualidade de vida dos brasileiros.

Conjuntura

Apesar dos erros de seu primeiro governo e dos atropelos da sua heroica campanha eleitoral, pesa sobre Dilma a condensação de crises que se arrastam historicamente na sociedade brasileira e que não foram resolvidas nem encaminhadas durante os governos Lula.

Os desafios serão gigantescos para sedimentar o caminho das reformas estruturais, mas é imperioso acumular força para reverter os baixos índices de popularidade e para melhorar as expectativas da economia diante da nossa base social. A temperatura dos protestos vai determinar a possibilidade de reconstrução da base aliada no Congresso e nos ministérios, mas o fim do financiamento empresarial de campanha no Supremo Tribunal Federal, a operação lava-jato e as CPIs da Petrobrás e do HSBC podem favorecer uma recomposição em direção as aspirações do bloco progressista.


A mobilização popular organizada pela CUT, MST e UNE deu o tom da resistência na atual conjuntura, superando a ênfase institucional, conciliatória e despolitizada do ‘reformismo fraco’ do lulismo. Para enfrentar a estagnação econômica e a corrupção, o bloco progressista tem o desafio de construir um programa mínimo para sustentar o governo contra a direita e para pressioná-lo à esquerda no parlamento, nas ruas e na internet.

Ajuste Fiscal

A aplicação do ajuste fiscal e do aperto monetário reduzirá a inflação e diminuirá a taxa de juros no médio prazo, mas deveria igualmente atacar e alongar o estoque da dívida pública. O próprio FHC, em entrevista concedida à revista Primeira Leitura, em julho 2004, defendia que o Brasil precisava lidar com a dívida interna de outra maneira.

Como ensinou Kalecki, sozinhos, dificilmente os capitalistas garantirão o pleno emprego. Hoje, a retomada do crescimento depende da ampliação do investimento privado, sendo secundária a participação do padrão de financiamento estatal, dos bancos públicos e dos fundos de pensão institucionais. Essa fragilidade é compensada pela calibragem do câmbio, que reposiciona o setor exportador nas cadeias globais do mercado externo, aliviando o déficit na balança de pagamentos.

Sem perder de vista o descompasso entre as reservas internacionais, o abuso do swap cambial, a taxa de juros dos Estados Unidos e os compromissos imediatos da dívida externa, Dilma precisa mediar o tamanho desse remédio social-liberal, pois a superação do tripé macroeconômico terá desdobramentos significativos para criação de um novo ciclo de desenvolvimento assentado na Petrobrás e no pré-sal, na indústria de transformação, no dinamismo do mercado interno e externo, na agricultura familiar, na universalização das políticas sociais e na sustentabilidade ambiental.

Uma opção seria atualizar e adaptar o modelo sueco de pleno emprego, considerado um paradigma para os críticos da experiência soviética (estalinista) e estadunidense (liberal); outra opção seria olhar para a própria experiência da esquerda latino-americana reformista e revolucionária em linha com a associação estratégica entre Mercosul, a União Euroasiática e o próprio BRICS, mecanismos decisivos na defesa da soberania nacional e do próprio governo Dilma.

Políticas Sociais

No campo socialista, somos críticos ao estalinismo e ao social-liberalismo – esse último apoiado na macroeconomia do ‘socialismo neoliberal’ dos anos 80/90.

As ações do governo federal não podem desmobilizar os setores progressistas. Confiança na economia se conquista protegendo a estabilidade da moeda e da balança de pagamentos, mas também se alcança combatendo a recessão. O governo deve – em caráter de urgência – rever os cortes orçamentários na educação, saúde e moradia, extinguir o fator previdenciário no cálculo para aposentadoria (sem elevação da idade mínima), garantir o aumento sustentável do salário mínimo, negociar a redução do ICMS da cesta básica com os estados, repactuar a Medida Provisória do auxílio-doença, do seguro-desemprego e do abono salarial, subsidiar o diesel e a tarifa da energia elétrica para a baixa-renda, regular os juros do crédito direto ao consumidor, criar o imposto sobre heranças, lucros e dividendos, e aumentar a alíquota da Cofins que incide sobre o setor financeiro.

Para sedimentar o caminho da universalização das políticas sociais, o ajuste precisa preservar os avanços sociais dos últimos 12 anos, levando em conta a redução do estoque da dívida interna e o alongamento dos encargos financeiros (sua auditoria não pode ser descartada pelo governo). A universalização das políticas sociais tem um potencial transformador civilizatório nos países da periferia capitalista, permitindo a construção de uma ética pública e solidária na sociedade; desprivatizando o Estado e democratizando o acesso ao fundo público; atacando a pobreza, a desigualdade, os baixos níveis educacionais e culturais e a violência social nas metrópoles; produzindo renda, produto, emprego e inovação tecnológica; aumentando a produtividade da força de trabalho e reduzindo o índice de inflação do setor de serviços.

Seja no modelo keynesiano, seja no modelo de capitalismo de Estado, uma vez fortalecido o padrão de financiamento público e a formação bruta de capital fixo, a ‘âncora salarial’ (carteira assinada, renda e crédito no mercado interno) e os direitos sociais serão pedras fundamentais para a arquitetura do novo ciclo de desenvolvimento.

Política de Saúde

A Constituição Federal de 1988 definiu a saúde como ‘dever do Estado’ e ‘direito do cidadão’. Pela letra da lei, todo cidadão pode utilizar o Sistema Único de Saúde (SUS), entretanto, como a saúde é também livre a iniciativa privada, os planos de saúde contaram com pesados incentivos governamentais, cujos subsídios favorecem a passos largos o consumo de bens e serviços privados.

O sistema de saúde brasileiro se transformou, assim, em um mix paralelo e duplicado, onde o setor privado estabelece uma relação parasitária com o SUS e com o padrão de financiamento público. Pior: sem força para sustentar um projeto que resista ao alargamento da hegemonia neoliberal, uma visão fiscalista, que prega o fomento do mercado de planos de saúde como solução pragmática para desonerar as contas públicas, é sustentada por setores economicistas dentro do Estado.

Não é de hoje que está em curso um processo de americanização do sistema de saúde brasileiro. O gasto público é baixo e boa parte dos problemas de gestão decorre exatamente dessa restrição orçamentária, de modo que a renúncia de arrecadação fiscal merece atenção das autoridades governamentais, caso se queira, a um só tempo, consolidar o SUS e reduzir o gasto das famílias e dos empregadores com bens e serviços privados de saúde. Afinal não é recomendável naturalizar essa renúncia: ela pode gerar situação tão regressiva da ótica das finanças públicas, ao favorecer os estratos superiores de renda e o mercado de planos de saúde, que alguns países impuseram tetos ou desenharam políticas para reduzir ou focalizar sua incidência.

Pressionado pelo bloco progressista, caso o governo queira radicalizar os pressupostos constitucionais em defesa da universalidade e da integralidade, outras premissas devem ser levadas em conta: (i) o gasto tributário foi e é peça-chave para a reprodução do setor privado; (ii) esse subsídio não influencia a calibragem da política de reajustes de preços dos planos individuais praticada pela ANS (por exemplo, a Anvisa monitora a redução do preço dos medicamentos, a partir da desoneração fiscal patrocinada pelo governo voltada à indústria farmacêutica); (iii) o montante da renúncia associado ao Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e ao Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) não é controlado pelo Ministério da Saúde (MS), tampouco pelo Ministério da Fazenda – condicionada pela renda, este depende, exclusivamente, do nível de gastos com saúde dos contribuintes e dos empregadores.

Em breve, em pelo ajuste fiscal, podemos assistir a uma situação dramática e contraditória: em termos relativos, de um lado, a redução dos gastos diretos que financiam o SUS, e de outro, a elevação dos gastos indiretos que favorecem o mercado, pasmem.

Considerações finais

O MS não pode desistir do seu papel de regular o gasto tributário em saúde, cujo desenho dependerá do projeto institucional do governo para o SUS, bem como seu poder de barganha para administrar os conflitos distributivos no setor e para resistir à captura do mercado.

Existe um conjunto de evidências que indicam que o laissez-faire regulatório da ANS – patrocinado pela renúncia de arrecadação fiscal – acaba incentivando o mercado de planos em detrimento do fortalecimento do SUS, reproduzindo um tipo de injustiça distributiva que favorece estratos superiores de renda e certas atividades lucrativas, cada vez mais concentradas, concentradas e internacionalizadas.

Diante da estagnação econômica e do próprio ajuste fiscal, uma medida efetiva para fortalecer o SUS e reorientar seu modelo de atenção seria convencer o governo e a sociedade acerca das externalidades positivas da eliminação, redução ou focalização dos subsídios – o gasto tributário associado aos planos de saúde alcançou aproximadamente R$ 9 bilhões em 2012 – aplicando tais recursos na atenção primária (Programa Saúde da Família – PSF, promoção e prevenção à saúde etc.) e na média complexidade (unidades de pronto atendimento, prática clínica com profissionais especializados e recursos tecnológicos de apoios diagnóstico e terapêutico etc.).

No quadro da globalização, se a capacidade de pressão do bloco progressista for insuficiente para alterar a correlação de força na sociedade e no governo, o cenário mais plausível será de expansão do mercado de serviços de saúde e dos subsídios, em linha com o Obama Care e a proposta da cobertura universal em saúde dos organismos internacionais. Esse quadro torna-se alarmante com o desmonte do National Health System inglês, as recentes alterações nas regras de financiamento do SUS e a criação de bases institucionais para internacionalização do mercado, que tendem a consolidar o subfinanciamento público e a ampliar as desigualdades no sistema de saúde e na própria sociedade brasileira.

* – Carlos Ocké Reis é economista e membro do conselho consultivo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).

Fonte: Cebes