PICICA: "Logo no começo, Serra Pelada é reportada à mitologia. Vivencia-se o
princípio dos tempos, nos conta Sebastião Salgado, o protagonista
biografado do filme. Formigueiros de escravos modernos se espremem num
empreendimento de escalas bíblicas. Diferentemente do velho testamento,
eles não são movidos pelo chicote do faraó, mas pela cobiça do próprio
coração. Eis aí o tom moral que servirá de fio condutor da narrativa.
Expressão de seu tempo, a trajetória de Salgado é a trajetória de uma
geração de esquerda que viveu os anos 1960, para quem o aperto de mão
entre Prestes e Getúlio formou o exemplo magno do sacrifício da vida
privada, dos pequenos interesses em nome das grandes causas. Na
narrativa, o fotógrafo militante deixará em segundo plano mulher, filhos
e propósitos menores para assumir riscos imponderáveis, para dedicar-se
integralmente ao altíssimo propósito moral de seus projetos."
O achatamento redentor
Resenha de “O sal da terra” (Wim Wenders / Juliano Ribeiro Salgado; 2014)—
Foto: Sebastião Salgado, a preferida de Wim Wenders
—Logo no começo, Serra Pelada é reportada à mitologia. Vivencia-se o princípio dos tempos, nos conta Sebastião Salgado, o protagonista biografado do filme. Formigueiros de escravos modernos se espremem num empreendimento de escalas bíblicas.
Diferentemente do velho testamento, eles não são movidos pelo chicote do faraó, mas pela cobiça do próprio coração. Eis aí o tom moral que servirá de fio condutor da narrativa. Expressão de seu tempo, a trajetória de Salgado é a trajetória de uma geração de esquerda que viveu os anos 1960, para quem o aperto de mão entre Prestes e Getúlio formou o exemplo magno do sacrifício da vida privada, dos pequenos interesses em nome das grandes causas. Na narrativa, o fotógrafo militante deixará em segundo plano mulher, filhos e propósitos menores para assumir riscos imponderáveis, para dedicar-se integralmente ao altíssimo propósito moral de seus projetos.
Para isso, Salgado vai tirar água de poços sagrados da consciência social de sua época: fotos contundentes da América Latina profunda, mortalidade infantil no Nordeste, fome na África, guerras civis, genocídios. Mas em vez de exprimir o teatro de forças em que se agitam tais catástrofes e que confere sentido político aos embates, contradições e complexidades; Salgado prefere adotar a linha do universal drama humano. Nenhum efeito de distanciamento que pudesse instigar a perscrutar as razões por trás da desrazão, a ordem perversa no âmago da desordem, a participação silenciosa de cada um nas engrenagens sinistras. A história é elevada ao plano do apodítico, enquanto ao artista cabe tão somente arrastar o público pelos cabelos.
A estética se guia assim pelo impacto imediato, pela máxima sensação comprimida entre céus conflagrados, dores inabarcáveis e corpos in extremis. Em meio ao que passeia o fotógrafo-cristo, nossos gestos são reduzidos à insignificância ao mesmo tempo que somos condenados à comoção diante de um sofrimento absoluto que demanda igualmente um compadecimento absoluto. Não é preciso pensar, não é possível pensar: tudo está dado diante dos olhos.
Se Serra Pelada simboliza o começo dos tempos, Ruanda será o apocalipse. Quando o fotógrafo atinge o grau zero da humanidade, depois do que “ninguém mais merece viver”. Desiludido, questionando o próprio papel como fotógrafo de causas sociais, é o signo da decepção de sua geração. A trama se resolve, no novo século, com Salgado trocando o social pelo ambiental, porém aqui mistificado como natureza pura em que bons selvagens, baleias e florestas consistem na última reserva de redenção. Não é acaso que seu último trabalho se chame, precisamente, Gênesis.
Categórico e sem fazer problema, à beira do tautológico, o filme de Wenders e Juliano Ribeiro Salgado (filho do protagonista) só encontra um único momento de verdade, no breve interlúdio com um urso branco, durante uma expedição do pai ao Ártico. O resto se esfuma nas brumas a-históricas que acompanham os créditos finais.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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