PICICA: "Durante os anos 1980, houve uma reconfiguração de conteúdo e forma da
típica abordagem realista nas histórias contadas na tela pelo cinema
inglês. Do ponto de vista do conteúdo, o operário herói perde em
importância para novos atores sociais como gênero, etnia e orientação
sexual: mulheres operárias, homossexuais, negros e asiáticos – na
esteira do declínio do setor manufatureiro e da indústria mineira na
economia da Grã-Bretanha. Rotulados como filmes do “estado da nação”
(rótulo que remete a uma longa tradição de crítica social no cinema
inglês), buscasse melhor capturar aos vários conflitos socioculturais do
período – embora nos anos 80 já não se pudesse ligar essa tendência de
filmes ao realismo, havia uma insatisfação com este conceito e muitos
queriam simplesmente abandoná-lo. Do ponto de vista da forma, a intenção
de fazer justiça às complexidades da realidade social levou a uma ainda
maior problematização do conceito de realismo – especialmente
considerando a crescente hegemonia do conceito de pós-moderno. Para John
Hill, tudo isso redundou na produção de alguns filmes focados numa
“alegoria nacional” - leitura da narrativa de acordo com um padrão geral
de eventos políticos e “nacionais”. Hill cita Frederic Jameson, teórico
do pós-modernismo, ao remeter à capacidade da alegoria de cruzar as
fronteiras do publico e do privado. Durante a década de 1980,
abandonam-se as alegorias dos filmes realizados durante a segunda Guerra
(que celebravam o trabalho em conjunto para ganhar a guerra),
utilizando-as agora (com exceção de Carruagens de Fogo, Chariots
of Fire, 1981) para sugerir um mundo de crescentes diferenças sociais,
divisões e conflitos. Na opinião de Hill, a utilização da “alegoria
nacional” para representar o colapso social teve sua maior expressão com
Hospital dos Malucos (38)."
Lindsay Anderson e a Coisa Pública
“(...) Garotos cantando um salmo, [em seguida leitura do] Livro
de Deuteronômio – ‘para que vivais e entreis e possuais a terra
que o senhor Deus de vossos pais vos dá’ – uma das passagens
usadas pelos britânicos como justificativa do imperialismo (...)”
de Deuteronômio – ‘para que vivais e entreis e possuais a terra
que o senhor Deus de vossos pais vos dá’ – uma das passagens
usadas pelos britânicos como justificativa do imperialismo (...)”
Cena inicial da 4ª parte de se..., durante culto na igreja. Nota-se o tipo de ideologia “educacional” a que eram submetidos jovens e adolescentes de um país acostumado a acreditar que Deus lhe deu o direito de invadir as terras dos outros (1)
Era uma Vez uma Escola Pública...
Final da década de 1960 do século XX, estamos no início do ano letivo
num colégio público inglês, onde menina não entra. Antigos e novos
alunos chegam, logo sendo recebidos com humilhações e bullying –
bem mais velhos, os monitores, especialmente Rowntree e Denson, eles
próprios ex-alunos, são os primeiros a exercitar sua capacidade de
subjugar aqueles que não podem reagir. Com o silêncio que parece ser
parte de sua personalidade, Phillips retorna com seu material e recebe
uma “cantada hostil” de outros alunos antigos – a homossexualidade é
evidente na escola, mas a regra hipócrita-machista básica é seguida à
risca: punição aos que de algum modo assumem o risco. O colégio é cheio
de regras disciplinares e seu cotidiano está intimamente ligado às
forças armadas britânicas e a religião (uma igreja bem no meio do campus garante
o canto diário de hinos e a confissão dos pecados a um padre com olhar
libertino). Na sala de estudos, apelidada “sauna”, os garotos
confraternizam e são informados de mais regras: qual comida pode ser
guardada, onde colocar os livros, onde colocar a pornografia. Nas
paredes, cartazes com mulheres, o guerrilheiro cubano Che Guevara e o
índio apache Gerônimo, que lutaram contra o exército dos Estados Unidos.
Do currículo podemos ver aulas da racional matemática (curiosamente,
ministrada pelo padre), história, latim, jogos de guerra e esportes
(rúgbi, esgrima...), embora fique a impressão de que a disciplina mais
cobrada seja a construção de personalidades capazes de obedecer ao
superior hierárquico sem discutir. (imagem acima, Travis testando esta
forma de morrer; abaixo, Jute olha para o capelão quando este afirma
durante o sermão que os soldados que porventura desertarem serão
condenados por Deus)
“(...) Qualquer um que tenha estado numa
escola pública inglesa, irá sempre sentir-se
comparativamente em casa na prisão”
Evelyn Waugh, Declínio e Queda, 1928 (2)
Mick Travis, Wallace e Johnny Knightly voltam a se encontrar, velhos
conhecidos que irão virar a escola de pernas para o ar. Passeando na
cidade próxima, cujo acesso noturno lhes era proibido pelas regras,
quando deveriam estar assistindo a uma partida de rúgbi na escola,
Travis rouba uma motocicleta e dispara com Johnny. No caminho encontram
uma lanchonete e Travis tem uma estranha relação com a garota que
trabalha ali. Uma vez que se trata de uma escola pública do então
moribundo Império Britânico, os jogos de guerra têm como objetivo
explícito o treinamento militar e a doutrinação ideológico-religiosa que
justifica um suposto direito da Inglaterra invadir o mundo. Durante um
desses treinamentos, os três amigos são punidos porque estavam juntos
quando Travis desafiou a autoridade do padre e o atacou como um inimigo.
Eles encontram armamentos na faxina que foram obrigados a fazer, era o
que faltava para o trio por em prática as ideias de Travis a respeito da
guerra e da revolução. Um belo dia, o general Denson está enaltecendo a
tradição quando todos são expulsos do local por uma fumaça que vem do
palco. Lá fora, são recebidos com a artilharia do exército de Travis.
(imagem abaixo, inspeção da enfermeira em busca de problemas)
Os Cruzados e os Coloridos...
“(...) O outro aspecto que me atraiu, eu acho, foi o grau em que uma escola é um microcosmo – particularmente na Inglaterra, onde o sistema educacional é uma imagem tão exata do sistema social (...)”
Lindsay Anderson, 1968 (3)
Se...
(if....) estreou m 1968, e foi o segundo longa-metragem do cineasta
britânico Lindsay Anderson (1923-1994). Temperado pela alta dose de
arrogância dos monitores (ou, simplesmente, arrogância britânica?), o
cotidiano de humilhações e bullying enfrentado pelos alunos traça
um quadro desanimador das escolas públicas inglesas, já às portas da
década de 1970 do século passado. Embora não seja um documentário, se...
não é apenas um filme de ficção, tendo raízes na história de vida dos
roteiristas e do próprio Anderson. Os filmes de Ken Loach, outro
cineasta britânico contemporâneo de Anderson, farão eco a se..., especialmente Kes
(1970), onde um menino é submetido às mais variadas humilhações (seus
colegas de turma também), aplicadas inclusive pelo próprio diretor da
escola – a esse respeito, o comportamento do professor de educação
física poderia até parecer um exagero de filme de ficção, especialmente
para aqueles que não conhecem o sistema educacional inglês de então.
Anderson se aprofunda na questão da transmissão dos valores morais e
éticos (incluindo a hipocrisia), através do sistema de educação pública
britânico. Filmes assim tornam compreensíveis e verossímeis algumas
letras do disco The Wall (1979), lançado pela banda britânica Pink Floyd - especialmente a música título. Se...
chama atenção também pela quantidade de vezes que passamos da imagens
colorida para preto e branco, levando alguns a imaginarem que isso
separe a realidade e a fantasia de Travis (embora a cena do padre na
gaveta, que é colorida, pareça uma fantasia), outros sugeriram falta de
recursos financeiros do cineasta. O cineasta esclareceu na introdução do
roteiro publicado:
“Quando Shelagh Delaney e eu estávamos trabalhando no roteiro de The White Bus
[(1967)], que também era um filme poético, movendo-se livremente entre
naturalismo e fantasia, lembro-me de sugerir que seria legal ter tomadas
aqui e ali, ou sequências curtas, a cores (sendo um filme em preto e
branco). A ideia também agradou a Miroslav Ondricek [o diretor de
fotografia em se..., que Anderson trouxe do Cinema Novo Tcheco], e nós
fizemos isso. Quase ninguém viu The White Bus, mas eu gosto muito
do filme e acho que a ideia foi bem sucedida. Foi esse precedente que
me deu a confiança – quando Mirek disse que com nosso orçamento (para
lâmpadas) e nosso cronograma ele não poderia garantir consistência de
cor nas cenas no interior da capela em se... – para dizer, ‘Bem,
vamos filma-las em preto e branco’. Em outras palavras, não foi (é
claro) apenas uma maneira de poupar tempo e/ou dinheiro. O problema do
roteiro parecia ser chegar a uma conclusão poética a partir de um começo
naturalista. sentimos que variação na superfície do filme poderia
ajudar a criar a necessária atmosfera de licença poética, enquanto
preservava um estilo de filmagem direto e bem clássico, sem truques ou
recriminações. Eu também acho que, num filme dedicado à ‘compreensão’
[como denotado na citação no começo do filme], o empurrão à consciência
fornecido por tal mudança de cor bem poderia trabalhar um tipo de
saudável Verfremdungseffect [efeito de alienação], uma incitação
ao pensamento, que era parte de nosso objetivo. E finalmente: Por que
não? A cor não fica mais expressiva, mais notada se chamar atenção dessa
maneira? A coisa importante para compreender é que ali não existe
nenhum simbolismo envolvido na escolha das sequências filmadas em preto e
branco, nada expressionista ou esquemático. Apenas fatores tais como
intuição, padrão e conveniência” (4) (imagem abaixo, os monitores, com
Rowntree à frente)
“(...) Esta parece para mim uma das funções
do artista, talvez a mais importante, profetizar.
Assim como a função mais importante
de um crítico não é julgar, mas interpretar”
Lindsay Anderson, 1968 (5)
O desgosto do cineasta com o cinema que se fazia na Grã-Bretanha o levou
a descobrir o novo cinema que surgia na Europa continental e na Índia,
em meados da década de 60 do século passado. Numa de suas viagens à
Polônia, Anderson leva consigo o primeiro tratamento de um roteiro
intitulado Cruzados, que David Sherwin havia escrito em 1960 (aos
dezesseis anos de idade) com seu amigo de escola, John Howlett – ambos
estudaram em escola pública inglesa, Tonbridge; fundada em 1553, é uma
das poucas que até hoje só recebe alunos do sexo masculino. A dupla se
inspirou em seus dias de escola e, parcialmente, na admiração a um amigo
comum, Michael Mason. Encorajado por Anderson (que considerou o
primeiro tratamento imaturo, mal construído, romântico e adolescente),
Sherwin reescreveu o roteiro com a ajuda de sua namorada e Howlett – o
protagonista já se chamava Mick Travis. Ao retornar da Polônia, Anderson
mexeu no roteiro, sua contribuição foi encorajar Sherwin a romper com a
estrutura naturalista, reescrevendo o projeto nos termos de um épico -
não o hollywoodiano, mas o brechtiano. Contudo, a principal influência
de Sherwin nesse momento foram peças épicas de Georg Büchner
(1813-1837), Woyzeck e A Morte de Danton. Outra influência, desta vez pelo lado de Anderson, foi Zero em Comportamento
(Zéro de conduite: Jeunes diables au collège, 1933), o filme de Jean
Vigo sobre a vida num internato de meninos que termina num dia de
protesto (6).
“Eu vejo o filme como uma ilustração do que pode
acontecer quando as pessoas negam a realidade (...)”
acontecer quando as pessoas negam a realidade (...)”
Lindsay Anderson, 1968 (7)
Mas Anderson não pretendia simplesmente reproduzir o filme de Vigo,
apenas utilizar sua estrutura: sucessão de cenas poéticas,
frequentemente sem nenhuma conexão narrativa particular. Desde o começo
do trabalho com Sherwin, Anderson tinha a intenção de construir o
roteiro em termos épicos, ao invés do estilo narrativo, bem ao gosto da
tradição britânica. Anderson acredita que em geral as pessoas se
esquecem (ou não reparam) que se... não é um trabalho convencional, seja
em termos do conteúdo ou da estrutura do filme (a estrutura narrativa
vai se tornando mais forte apenas na segunda parte). Desde o primeiro
encontro entre Anderson, Sherwin e Howlett, já se concluía que o final
do filme deveria se transformar num cataclismo gigante. Inicialmente,
revelou o cineasta, ele pensou numa visão do colégio em ruínas
fumegantes – era uma ironia adicional que Brian Jones, fundador dos Rolling Stones, falecido em 1969, fosse natural de Cheltenham. seguramente, lembrou Anderson, o clímax de se... é muito mais violento do que Zero em Comportamento.
As cenas do passeio de motocicleta e com a garota na lanchonete não
possuem paralelo no filme de Vigo, muito menos a descoberta do feto
humano debaixo do palco. Enquanto Sherwin repensa o roteiro, Anderson
volta à Polônia e, em 1967 (com única estreia apenas em 1973, nos
Estados Unidos), realiza um pequeno filme de vinte minutos sobre uma
escola de teatro e música, The Singing Lesson. Cenas dos
estudantes cantando são intercaladas com imagens da vida cotidiana
polonesa – na opinião de Sutton, nesse caso a escola parece menos um
microcosmo da sociedade circundante do que um oásis. O filme termina com
o professor se juntando à dança e ao canto, quase como o próprio
Anderson, no final de Um Homem de Sorte (O Lucky Man!, 1973), filme que realizou após se...
“A primeira sequência da Sauna termina com uma tomada
do jovem Markland tirando pêssegos embrulhados de uma caixa,
cheirando-os deliciosamente, e colocando-os com muito cuidado em sua mesa. Cenas sensuais assim desempenham um papel fundamental na formação da atmosfera do filme. [Se...] não é
um filme ‘irado’ feito por um dissidente; é um filme maravilhoso
feito por um homem que apreciou seus tempos de escola” (8)
do jovem Markland tirando pêssegos embrulhados de uma caixa,
cheirando-os deliciosamente, e colocando-os com muito cuidado em sua mesa. Cenas sensuais assim desempenham um papel fundamental na formação da atmosfera do filme. [Se...] não é
um filme ‘irado’ feito por um dissidente; é um filme maravilhoso
feito por um homem que apreciou seus tempos de escola” (8)
Como Anderson sabia que o diretor de sua antiga escola, Cheltenham College, proibiria as filmagens ao ler o roteiro (com todo o bullying,
espancamentos selvagens, banhos frios, homossexualidade e massacre do
dia do discurso), pediu que Sherwin o reescreve-se com uma ficção só
para mostrar a ele – posteriormente, muitos se diriam traídos por
Anderson. No começo das filmagens, os alunos que trabalharam como extras
não estavam achando um bom negócio deixar o estudo em segundo plano me
perder dois fins de semana – o diretor teve de lembrar aos garotos das
obrigações do colégio com a produtora do filme! Tendo sido lançado em
dezembro de 1968, muitos já se perguntaram se Anderson foi influenciado
pelos acontecimentos de Maio de 68, em Paris. Paul Sutton acredita que
não, e inclusive questiona a veracidade do relato das memórias do
diretor, que afirmam que houve influência. Terminada a primeira exibição
do filme em Londres, Anderson subiu ao palco e se dirigiu à plateia: “O resto é com você!”. Se...
foi comercializado com imagens do filme dentro de uma granada de mão,
enquanto Mick Travis e seu amigo Johnny, de metralhadora em punho,
perguntavam: “de que lado você está?”. Sutton não nos deixa
esquecer que o roteiro inicial do filme havia sido escrito seis anos
antes de Maio de 68, e Anderson não tinha a intenção de fazer um filme
“a respeito” dos protestos estudantis. Mas pode-se dizer que o cineasta
conseguiu o que desejava há muito tempo: combinar um tema atual com um
quadro autêntico de características da vida na Inglaterra, tão
frequentemente mal interpretada nos filmes.
“(...) Em 1966, mais de 90 % do Gabinete conservador [do governo inglês]
veio das escolas públicas, assim como mais de 40 % do Gabinete do
Partido Trabalhista, que o sucedeu. Entre 1963 e 1967, alunos oriundos
da escola pública compunham quase a metade da classe administrativa do
serviço Civil, em mais ou menos 60 % para o serviço Diplomático”. Em
1967, ex-alunos da escola pública representavam 55% dos almirantes,
generais e marechais da Força Aérea, e mais de 65 % dos médicos e
cirurgiões do Conselho de Medicina. setenta por cento dos diretores de
firmas importantes, 75 % dos Bispos e 80% dos juízes [...] vieram de
‘cinco em cada duzentos cidadãos’ que foram para a escola pública” (9)
Tradição, Anarquia e Bullying...
“(...) Eu gosto muito de mostrar um mundo pequeno
ou limitado que tem implicações em relação ao mundo
maior, e em relação à vida e a existência em geral”
ou limitado que tem implicações em relação ao mundo
maior, e em relação à vida e a existência em geral”
Lindsay Anderson, 1968 (10)
Para Lindsay Anderson, se... é um filme a respeito de autoridade,
tradição, liberdade, abordadas com certo senso de humor. A primeira
coisa que o atraiu foi o sentimento nostálgico que ele achava que a
maioria das pessoas nutre em relação a seus tempos de escola. O filme
está dividido em oito partes, originalmente elas seriam indicadas, à
maneira de Brecht, através de cartões de título, mas isso foi retirado
na montagem final – Anderson admitiu posteriormente que elas teriam sido
bastante úteis. Outro fator que atraiu Anderson foi sua constatação de
que naquela época as hierarquias presentes no sistema educacional eram
como uma imagem reduzida da sociedade britânica. Em sua opinião, se...
ilustra o que pode acontecer quando as pessoas dão as costas à
realidade, quando a sociedade finge que fatos reais da vida não existem –
Sutton observa que o provérbio, antes dos créditos iniciais, ostenta as
cores da anarquia: letras brancas, fundo preto, e a passagem bíblica
indicada com letras vermelhas. Ainda de acordo com o cineasta, o filme
foi profético, no sentido de prever a forma como as coisas aconteceriam –
o conflito entre a tradição estabelecida e a liberdade da juventude, a
qual estava em ebulição naquela época por todo o mundo (11). (imagem
acima, o açoite em Travis, ouvido por todos os alunos; abaixo, o
Reverendo praticando seu bullying diário em sala de aula;
escutando muito atentamente as questões sexuais de Stephan durante
confissão; encolhido como um bebê, apesar do uniforme de homem, ao
perder toda a sua autoridade diante do ataque de Travis durante os jogos
de guerra)
“Os oficiais do exercito britânico também
gostavam de se divertir com o bullying”
Comentário de Paul Sutton, a partir dos relatos de Anderson a respeito de sua vida no exército durante a Segunda Guerra Mundial (12)
Na primeira cena de bullying, logo depois que a lata de feijões
cozidos é jogada de um lado a outro no chão (a primeira frase do filme é
um comentário raivoso do dono da lata), encontramos Jute pedindo ajuda
para encontrar seu nome no quadro de avisos. Stephans avisa que calouros
não falam com veteranos. Do outro lado de Jute, Biles (que é um aluno
mais novo, mas não é calouro) reclama que ele está atrapalhando. Logo
veremos que Stephans e Biles não são populares no colégio. Sutton
sugeriu que sendo rudes com Jute ambos trocam a oportunidade de fazer
amizade pela de “subir na vida”: é melhor aplicar o bullying do
que ser a vítima. Nessa psicologia, é melhor subir um degrau puxando
alguém para trás do que oferecer palavras gentis e uma ajuda. No
dormitório Keating, o valentão do grupo, pula sobre Fatso, chamando
atenção para a barriga dele aos berros – Fatso reage, em vão (abaixo,
lado superior, à esquerda). Os alunos têm na gravata (e no uniforme do
time) as cores do colégio, as mesmas da bandeira inglesa - Stephans,
líder do dormitório, usa um roupão de banho nas mesmas cores (vermelho,
branco e azul). Como a escola é um microcosmo da sociedade britânica, o
garoto escocês, Biles, é o alvo do bullying dos alunos ingleses. Em se... verificamos
que alunos-funcionários veteranos se utilizam impunemente alunos
(chamados “escória”) novos para realizar tarefas pessoais para eles. No
começo do filme, Rowntree ordena a Biles que leve seus tacos de golfe e
outros objetos para seu alojamento, inclusive ordenando que o garoto
“esquente a privada” para ele, que chegará logo. Além disso, também se
tornará visível o que poderia ser descrito por Paul Sutton como privilégio de surrar:
“No ano letivo de 1962-63, três em cada cinco internatos independentes
possuíam um sistema de ‘trabalho duro’: garotos mais jovens obrigados a
fazer tarefas e ‘serviços’ para os garotos mais velhos. Em noventa e uma
de novena e oito escolas como essas, outros mestres além do diretor e
seu vice tinham permissão de ‘chicotear’ os garotos. Em setenta e uma
delas, alunos também tinham o poder de chicotear outros garotos. Em onde
delas, esse ‘privilégio’ era restrito ao garoto líder. Em seis escolas,
mais de cinquenta garotos tinham o poder e o ‘privilégio’ de aplicar
punição corporal. Em doze internatos independentes, o numero de
açoitamentos pelos professores excedeu uma centena por ano. Em quatro
escolas, excedeu trezentos e cinquenta por ano. Numa escola, o número de
espancamentos por mestres e garotos atingiu a média demais de dois por
aluno por ano. Eu pessoalmente frequentei uma escola onde um professor
muito inadequado regularmente desfrutou o prazer e orgulho de açoitar
toda a turma se alguém não ouvisse seu comando para ‘fique quieto’” (13)
(imagens abaixo, bullying contra o gordo Fatso, o escocês Biles e
o pequeno Jute; a seguir, o professor parece bastante feliz em ganhar o
jogo contra um time de garotinhos)
“O bullying de Biles nas instalações sanitárias. Eu acredito
que, levando em conta o que o filme está dizendo, isso
provavelmente não seria visto como sadismo gratuito”
que, levando em conta o que o filme está dizendo, isso
provavelmente não seria visto como sadismo gratuito”
John Trevelyan, censor britânico, fazendo sugestões
de cortes e comentários em carta a Anderson (14)
Aliás, em pouco tempo veremos Biles ser carregado à força para o
banheiro e amarrado seminu com os pés para cima e a cabeça enfiada na
privada até que a descarga seja acionada. Um dos garotos que prendeu
Biles foi Keating, que solta um grito durante esse momento de “diversão”
que é o equivalente do “Grito de Ódio” que os alunos são incentivados a
urrar na hora dos ataques durante os jogos de guerra do treinamento
militar que faz parte do currículo, juntamente com os cantos corais na
igreja. Sutton chama atenção para o fato de que os cubículos onde ficam
as privadas não possuem portas: tudo parte do processo de desumanização
escolar. Biles será desamarrado por Wallace depois que os valentões
saíram do banheiro, ele estava sentado numa privada tocando violão –
primeiro incentivou o bullying, depois reclamou para que os
gritos da horda que pegou Biles parassem, provavelmente apenas porque
não conseguia mais ouvir seu instrumento. Wallace ajuda, mas não oferece
nenhuma palavra de simpatia ou conforto à Biles, novamente não há
interesse aqui em certos garotos fazerem amizades com determinados
“perdedores”. A sequência termina com a frase deprimente de Biles (com a
cabeça e os cabelos molhados com água de privada de colégio público)
para Wallace: “Com licença, por favor, você está em cima de minhas
roupas”. Mas antes disso já havíamos visto cena mais bizarra durante a
aula ministrada pelo padre (a mesma figura cujo olhar lascivo percebe-se
noutro momento enquanto ouve Stephans confessando seus pecados):
“(...) O capelão caminha entre os garotos quietos enquanto pomposamente
dita uma fórmula, estapeando um deles na parte de trás da cabeça, por
nenhuma outra razão senão que lhe agrada, e também por poder utilizar a
bofetada como pontuação de sua fala. Com a continuação de seu discurso
[...], ele se coloca por trás do novo aluno, Jute, enfia a mão por
dentro da camisa dele e torce o mamilo do menino. Para um aluno dos dias
atuais essas cenas parecem irreais, mas era lugar comum nas escolas em
1968. Tanto assim que esta cena sequer foi mencionada pelo diretor do Cheltenham College (ou por qualquer crítico contemporâneo) na lista das reclamações em relação ao filme terminado” (15)
No 3º capítulo, chamado “disciplina”, Rowntree coloca em prática sua
teoria de que a disciplina será mantida se aos alunos mais refratários à
autoridade for imposta uma “lição”. Após o jantar, todos os alunos
ouvem quando Travis, Wallace e Johnny são chamados e informados por
Rowntree que serão punidos por sua atitude: representam um perigo para a
moral de toda a casa. Questionados se tem algo a dizer, Travis desafia
Rowntree: “O que eu odeio em você, Rowntree, é a maneira como dá
Coca-Cola à sua escória [os alunos que os servem como escravos], e seu
melhor ursinho de pelúcia à Oxfam [entidade que surgiu em Oxford com o
objetivo de erradicar a pobreza e a injustiça], e espera que lamberemos
seus dedos frígidos pelo resto de sua vida frígida”. Rowntree manda que
sigam para o ginásio, Wallace e Johnny recebem quatro açoites, Travis
receberá dez. Enquanto isso, a câmera mostra os rostos assustados dos
alunos escutando o som das batidas – e sendo punidos num nível
psicológico. Os outros alunos são inocentes, mas Sutton chamou atenção
para o fato, naquela época, a punição de inocentes era estratégia
disciplinar aceita e encorajada nas escolas da Grã-Bretanha. A punição
de inocentes, concluiu Sutton, é um elemento fundamento do Imperialismo.
No final da surra, cada um deles deve cumprimentar Rowntree com um
aperto de mãos e agradecer, da mesma forma como quando foram punidos por
não respeitar a autoridade do padre durante os jogos de guerra. Ainda
na opinião de Sutton, essa atitude é parte da falsidade das “boas”
maneiras inglesas: a imagem de um sistema onde um “obrigado”, dito com
sinceridade, pode significar “eu te odeio”.
Império Inspirador...
“Não há tal coisa como uma guerra errada.
Violência e revolução são os únicos atos puros [...]
A guerra é o último ato criativo possível”
Mick Travis, em conversa com Wallace e Johnny
Paul Sutton encontrou referências a várias cenas de treinamento militar
em se... nos diários do cineasta inglês Lindsay Anderson, quando dividia
seu tempo entre estudar em Oxford e se preparar para servir ao país
durante a segunda Guerra Mundial – o carro de chá do exército, o tiro de
pólvora no líder do pelotão e o ataque ao superior hierárquico. Em
1944, conta o diário, Anderson foi deslocado para a Índia, e acabou
tendo uma discussão com o capitão do navio militar em relação aos
méritos do escritor inglês Rudyard Kipling (1865-1936), mas
especificamente seu poema Se... (escrito em 1895, publicado em
1910), que trata da construção do Homem do Império - começa com: “se és
capaz de manter tua calma quando /Todo mundo ao redor já a perdeu e te
culpa...”; termina com: “Tua é a Terra com tudo o que existe nela, e - o
que ainda é muito mais - será um Homem, meu filho!”- a primeira ideia
para o título foi o poema de Kipling, mais por sugestão da secretária do
primeiro produtor do filme, e não de Anderson (16). Anderson criticou o
nacionalismo e o imperialismo do poeta, acabou tendo de ouvir mais
linhas de Kipling recitadas pelo capitão – o futuro cineasta disse que
depois teve de tomar duas aspirinas. Terminada a guerra, Anderson
retornou aos estudos e pensou em filmar algo que combinasse um tema
atual com um retrato autêntico da vida inglesa. Parece que a inspiração
veio quando assistiu ao filme inglês Além das Nuvens (The Way to
the Stars; lançado nos Estados Unidos com o título Johnny in the Clouds,
direção, Anthony Asquith, 1945) sobre a vida num esquadrão da força
aérea britânica durante a guerra, onde todos eram muito decentes e
totalmente falsos (17). (imagem acima, sequência final de se...)
Debaixo do palco, Travis encontra a águia empalhada
(símbolo dos Estados Unidos), Johnny a coloca diante
do mapa invertido do império britânico. Dá tapinhas nela, talvez
sugerindo que não vai para a fogueira. A limpeza que
o diretor os obrigou a fazer simboliza o final do filme
(símbolo dos Estados Unidos), Johnny a coloca diante
do mapa invertido do império britânico. Dá tapinhas nela, talvez
sugerindo que não vai para a fogueira. A limpeza que
o diretor os obrigou a fazer simboliza o final do filme
Paul Sutton (18)
No comentário datado de 27 de novembro de 1943 em seu diário, quando
ainda servia no exército, Anderson descreve um quadro totalmente
diferente do comportamento militar. A desordem entre os oficiais era
habitual. A seguir, também critica a atmosfera na faculdade, repleta de
gente vulgar e de pouca inteligente. Falou da antipatia pela escola
pública para alunos mais velhos, onde imperava um cinismo rasteiro.
Poucos dias depois escreveu que oficiais do exército costumavam se
divertir aplicando bullying – no caso, o próprio cineasta
sentiu-se humilhado com os comentários em voz alta de um superior quanto
ao estado, de fato ruim, de seu uniforme. Os whips, monitores de turma em se...,
são parcialmente retirados da experiência de Anderson na escola publica
e na vida militar. Em 28 de abril de 1946, ele escreveu sobre Além das Nuvens,
condenando o que chamou de nauseante santificação presunçosa da
inibição inglesa e do preconceito de classe. Em 1947, fundaria em Oxford
uma revista de cinema, sequence – de acordo com Paul Sutton,
para premiar aqueles cineastas que mereçam e desprezar os filmes
ingleses elogiados além da conta. De saída ele criticou a realidade
romantizada xarope e predeterminada no cinema britânico de então. Durou
quatorze edições, assegurando a Anderson emprego em jornais como Observer, The Times, Sight and Sound e The New Statesman, do qual seria demitido em 1958 ao recusar juntar-se ao louvor midiático por A Ponte do Rio Kwai
(The Bridge on River Kwai, direção David Lean, 1957) (que apresenta
militares britânicos como seres puros), preferindo comentar a respeito
do polonês Geração (Pokolenie, 1955, direção Andrzej Wajda).
(imagens abaixo, sob o olhar de Wallace, Travis faz insinuações sexuais
durante conversa com a senhora Kemp na hora da refeição; em preto e
branco, o passeio da senhora Kemp nua pelos corredores da escola e pelo
alojamento dos alunos)
A 7ª parte de se... inicia com a imagem da capela e a leitura da
Bíblia, com uma frase bastante conveniente para o colonialismo inglês:
“O filho de Deus vai rumo à guerra, uma coroa real à ganhar”. Diante de
uma plateia composta pelos alunos com uniformes do exército, passamos à
imagem do Reverendo Woods, que segue com o sermão até sua conclusão,
afirmando que a pior coisa que um soldado pode fazer é desertar, a única
falha, crime e traição sem perdão: “Jesus Cristo é nosso comandante. se
o desertarmos não podemos esperar nenhuma piedade. E somos todos
desertores”. De qualquer forma, seguindo o dogma cristão de todos
nascemos culpados, o padre afirma que todos somos corruptos e todos
merecem punição (“todos somos carne a ser punida”). Esta era a
preparação para os jogos de guerra que se seguirão (é nessa hora que a
senhora Kemp passeia nua pelos corredores vazios). De repente, Travis
consegue acertar o Reverendo, que cai no chão implorando pateticamente
para não ser atingido pela baioneta do rapaz (devidamente acompanhada
pelo grito de ódio, que vem a ser o último som emitido por ele no
filme). Por conta dessa ação, Travis, Wallace e Johnny terão de se
desculpar (o padre sai de uma gaveta na sala do diretor) e receberão
como punição o “privilégio Protestante de trabalhar” – na faxina do
espaço por baixo do palco, acabam por descobrir o material bélico que
utilizarão no ataque final. Durante os jogos de guerra, Peanuts ensina
aos alunos mais jovens que, na hora do ataque, o mais importante é o
“grito de ódio” – Paul Sutton sugere que essa poderia muito bem ser uma
alusão aos “dois minutos de ódio” praticados periodicamente pelos
cidadãos de Oceania em 1984, o romance de George Orwell contra o
totalitarismo (19). (imagem abaixo, Peanuts lembra a seus colegas que o
grito de ódio não pode ser esquecido e deve ser bem feito, pois é parte
integrante do ataque do soldado britânico)
A seguir, no capítulo final de se..., temos o close da
bandeira inglesa no topo do colégio e a chegada do general Denson, pai
do monitor de mesmo sobrenome, a quem recebe com um cumprimento militar.
Já dentro da igreja, todos repetem com o diretor para o personagem em
roupas militares medievais: “obrigado, obrigado, Benfeitores”. Segue-se
um discurso em que o diretor ressalta a capacidade daquela Academia (que
já completou 500 anos de fundação) de ser capaz de mudar para
acompanhar os novos tempos. A seguir, curiosamente, em seu discurso o
general Denson exalta a qualidade de fazer exatamente o oposto e se
entrincheirar na tradição. No momento em que afirma que os britânicos
ainda precisam da tradição, a fumaça começa a subir pelo palco.
Inflamado com seu próprio discurso (“é seu dever dar direção ao mundo.
Essa é a tradição britânica que aprenderam aqui”), o general está tão
concentrado em falar do “hábito da obediência” que só percebe quando
todos já estão assustados e tossindo, sua sugestão para que saiam em
ordem apenas faz explodir o pânico. Do lado de fora, Travis, a garota da
lanchonete, Wallace, Johnny e Phillips, estão à espera no telhado e
começam a atirar em todos que conseguem sair do prédio. As vítimas
iniciam um contra-ataque, o diretor pede uma trégua, mas a garota da
lanchonete lhe manda um tiro fatal na testa. O fim do filme não é
anunciado, em seu lugar a palavra “se...” aparece no canto direito da
tela.
Sexo e Violência...
Na 3ª parte de se..., em meio a várias fotografias de mulheres
coladas pela parede, acompanhamos um diálogo entre Mick Travis, Wallace e
Johnny, o tema são justamente elas. Mas a conversa se inicia tendo a
guerra como tema. Nessa conversa sobre sexo e violência os três
demonstram falta de conhecimento em relação ao sexo oposto. Wallace diz:
“o que me deixa nervoso sobre as mulheres é, você nunca se sabe o que
estão pensando”. Johnny responde: não acredito que elas pensem”. As
figuras femininas em se... variam entre a enfermeira que lava as roupas
de cama e analise a genitália dos alunos, a esposa do diretor que
caminha pelada pelos corredores da escola enquanto os garotos estão em
atividades ao ar livre e a moça da lanchonete – a primeira imagem que
Anderson teve do filme foi o passeio de motocicleta de Travis e Johnny
com a garota de pé entre eles (imagem acima; abaixo, o primeiro encontro
entre eles na lanchonete). Uma das cenas cortadas da montagem final foi
o “sonho da matrona”. Deveria estar no momento em que vemos o diretor e
sua esposa (senhora Kemp) na cama, ele canta enquanto ela toca flauta. A
matrona sonha que está fazendo amor com um grupo de meninos, enquanto
outros garotos correm em sua direção e alguns se agarram a seus seios.
Na carta do censor Trevelyan havia recomendações para revisar as cenas
de nudez no chão da lanchonete entre Travis e a moça, assim como a
sugestão para remover a imagem frontal da nudez da senhora Kemp
caminhando nua pela escola – o censor acredita que com a imagem do corpo
nu dela de costas não haveria problemas. Esta cena fez com que, nos
Estados Unidos, a versão sem cortes só fosse apresentada em Nova York.
Na Austrália as cenas de nudez foram cortadas, na Itália o filme foi
banido (sendo liberado em função de vigorosos protestos na imprensa),
enquanto na África do Sul (ainda sob a vigência do Apartheid),
foi proibida para os negros (é importante ressaltar que parece ser um
negro a empunhar a metralhadora na fotografia que Travis gostava tanto) e
muito censurada para os brancos (a cena em que Wallace lambe a
fotografia da mulher nua na revista, todos os diálogos com referência à
sexo e as imagens de Phillips e Wallace juntos na cama). A cópia mais
completa de se... circulava na Alemanha Ocidental, onde era
regularmente transmitida pela televisão (20). (imagem abaixo,
impassível, Phillips desempenha tarefas esdrúxulas, típicas de sua
posição de "escória", a mando de Denson, que por sua vez se considera um
digno servidor de seu país)
O festival de misoginia apresentado por Travis, Wallace e Johnny, vem
logo após uma conversa entre os monitores, Rowntree, Denson, Barnes e
Fortinbras em relação à Phillips, por quem todos demonstram atração
sexual. Denson se arma com um pretenso discurso em favor da decência,
mas aceita quando Rowntree ordena que Phillips passe a fazer tarefas
para o colega. Nas cenas inicias do filme, quando os alunos estão
espalhados pelo corredor, assistimos à aplicação do bullying em
Phillips, descobrimos então tratar-se do aluno homossexual. Ele terá uma
relação consentida com Wallace, a tomada que mostra os dois na cama foi
inclusive objeto de preocupação do censor, embora tenha admitido que o
fato de os garotos estarem dormindo facilitava a aprovação da cena. Do
ponto de vista da crítica britânica em 1968, Patrick Gibbs do jornal Daily Telegraph
elogiou o filme, mas disse que se todos aqueles reacionários tivessem
sido colocados no cenário de uma universidade contemporânea, teria sido
ridículo e a sátira acertaria o alvo. Gibbs procurou desmistificar a
questão do homossexualismo, sugerindo que já havia sido feito antes.
Citou o retrato de Arnold do Rúgbi, escrito por Lytton Strachey
cinquenta anos antes, apesar do romance The Hill, de H. A.
Vachell, baseado em Ian Harrow, foi pioneiro na abordagem da
homossexualidade adolescente. Desde então, explica Sutton, o fogo tem
sido contínuo, porém minguante. Em 1962, David Benedictus apresentou o Eton College, em The Fourth of July, como local de bullying
violento, guerra entre alunos e sexualidade. Em 1967, Culbert Worsley
lança suas memórias de aluno e diretor. Em 1968, Alan Bennett dirige a
peça satírica Forty Years On?, também apresentando uma escola pública. Gibbs considerou que em se...
as alusões à homossexualidade são bem dosadas, talvez a única coisa
fina naquele mundo brutal. (imagem abaixo, os três Cruzados, Travis,
Wallace e Johnny, praticando esgrima, um esporte de elite)
Cinema Livre...
Se... foi um sucesso na Inglaterra, mas apenas porque a lei
das quotas (impondo a veiculação de certo número
de produções nacionais) viabilizou a divulgação do filme (21)
das quotas (impondo a veiculação de certo número
de produções nacionais) viabilizou a divulgação do filme (21)
seria de
se esperar que a reação contra Lindsay Anderson chegasse cedo ou tarde.
Entre 1948 e 1954 o cineasta até conseguiu realizar alguns documentários
de curta-metragem (dois deles premiados), mas seu trabalho não era
requisitado na Inglaterra. Então Anderson contratou o National Film Theatre
em Londres e, entre 1956 e 1958, projetou seus próprios filmes e os
primeiros trabalhos de “indivíduos comprometidos” (como Tony Richardson,
Karel Reisz, François Truffaut e Claude Chabrol). Chamou a isso de
Cinema Livre e publicou um manifesto: “Esses filmes não foram feitos
juntos, tampouco com a ideia de apresenta-los juntos. Contudo, quando
foram reunidos, sentimos que tinham uma atitude em comum. Implícita
nessa atitude está a crença na liberdade (...)” (22). Sob a liderança de
Anderson, afirmou Paul Sutton, os filmes se tornariam mais intimistas,
menos restritos, mais próximos da vida. Mas o cineasta descartou a
existência de um movimento ligado aos Angry Young Men (escritores
desiludidos com a sociedade britânica tradicional), explicando que
apenas houve um período daquilo que poderíamos chamar “ruptura radical”,
da qual o Cinema Livre era parte integrante. Em 1957, Anderson ingressa
na Companhia English Stage, de Richardson, no teatro Royal Court – ele ficou por lá até 1975 e todo o time que trabalhou em se... foi descoberto ali. Em 1959 leva ao palco serjeant Musgrave’s Dance,
peça de John Arden inspirada numa atrocidade britânica cometida na ilha
mediterrânea de Chipre. O dado relevante em relação a se... é que na
peça existia uma metralhadora, embora fosse um modelo ainda precursor (gatling gun)
da arma moderna – que inicialmente Anderson nem queria mostrar (23).
(imagem abaixo, Travis ataca o Reverendo durante os jogos de guerra)
“Stanley Kubrick assistiu se... quatro
vezes e escalou Malcolm McDowell como
protagonista em Laranja Mecânica” (24)
Lindsay Anderson reconheceria muitos traços do Cinema Livre nos filmes
do Cinema Novo da antiga Tchecoslováquia, que, apesar de estar situada
do outro lado da Cortina de Ferro, podiam-se encontrar filmes que em
nada lembravam o Realismo Socialista. De fato, Sutton insistiu que lendo
atualmente o artigo que Anderson escreveu em 1965 no The Times a
respeito do Novo Cinema tcheco, fica evidente que suas analises estavam
se referindo ao filme que ele próprio faria em seguida. The White Bus
era a parte que cabia a Anderson de um projeto coletivo com mais dois
cineastas, o filme se tornou um modelo para as sátiras épicas da
trilogia composta por se..., Um Homem de Sorte e Hospital dos Malucos (Britannia Hospital, 1982). Como futuramente em se..., The White Bus
já apresentava uma realidade mergulhada na fantasia e cenas que se
alternam entre o colorido e o preto e branco. Há uma cena em que o
prefeito (apresentado pelo mesmo ator que fará o papel de professor
supervisor em se...) lê o provérbio 4:7 impresso nas paredes da
cúpula central da biblioteca pública: “A sabedoria é a coisa principal;
adquire, pois, a sabedoria; sim, com tudo que possuis, adquire o
conhecimento”. O provérbio reaparecerá antes mesmo dos créditos iniciais
em se... (imagem abaixo, a Igreja e o exército juntos no
currículo da escola pública inglesa. Há quem diga, hoje em dia, que
mistura entre militares e religiosos é coisa de muçulmano fanático e
terrorista)
No Contexto da Guerra Fria...
“(...) O ataque muito celebrado de Anderson à vacuidade
sociopolítica de seus colegas cineastas foi indiscutivelmente
mais justificada em relação à Guerra Fria do que quanto
a quaisquer outros ‘problemas’ que ele identificou (...)”
sociopolítica de seus colegas cineastas foi indiscutivelmente
mais justificada em relação à Guerra Fria do que quanto
a quaisquer outros ‘problemas’ que ele identificou (...)”
Referência de Tony Shaw ao artigo escrito por Lindsay Anderson, Get Out and Push! (25)
Parcialmente filmado na escola frequentada por Anderson durante a juventude (Cheltenham College), se...
ataca diretamente os desmandos do sistema educacional público
britânico, e onde a rebelião daquele pequeno grupo de alunos no final
do filme é uma metáfora da própria sociedade daquele país. Em outras
palavras, se... foi pensado como ferramenta auxiliar na
compreensão do conflito resultante daquela forma de vida na
Grã-Bretanha. Enquanto isso, por um golpe do destino, do outro lado do
Canal da Mancha os protestos que culminaram no Maio de 68 haviam
ocorrido em Paris (o filme foi lançado em setembro na Inglaterra e março
e maio do ano seguinte, respectivamente, nos Estados Unidos e na
França). Um Homem de Sorte, onde Travis viaja pelo país sempre reencontrando a corrupção, e, Hospital dos Malucos,
onde a situação precária do Sistema Nacional de Saúde será a metáfora
do declínio britânico, formam uma espécie de trilogia com se....
Embora não constituam uma sequência, vários atores e atrizes reaparecem
nos três filmes, especialmente Malcolm McDowell, sempre como o genioso
Mick Travis. Só para lembrar, A Chinesa (La Chinoise), do francês
Jean-Luc Godard, apareceu em 1967 com uma mensagem bem menos metafórica
a respeito do tema da rebelião – embora muitos o considerem um
precursor de Maio de 68, Godard mostra o fiasco de certa militância
estudantil (26). (imagem abaixo, Johnny cola na parede a fotografia, que
agradou muito a Travis, do soldado segurando uma metralhadora, do lado
direito, O Grito [1893], do pintor norueguês Edvard Munch)
Apesar do o anticonformismo e do interesse pela esquerda,
o cinema de Anderson, com exceção de um documentário como
March to Aldermaston (1959), era estranhamente mais focado
em filmes do estilo “cozinha e pia” do que na Guerra Fria
o cinema de Anderson, com exceção de um documentário como
March to Aldermaston (1959), era estranhamente mais focado
em filmes do estilo “cozinha e pia” do que na Guerra Fria
Opinião de Tony Shaw, fazendo referência ao termo associado ao realismo social do final dos anos 50 e começo dos 60 do século passado, cujo foco era o cotidiano da classe operária (27)
Desencantado com os métodos do cinema comercial britânico, Lindsay
Anderson foi buscar inspiração no cinema polonês, alemão, checoslovaco e
indiano. Nos seis anos decorridos entre seu primeiro longa-metragem, O Pranto de um Ídolo (This Sporting Life, 1963), e se...,
o cineasta viajou muito e procurou livrar-se dos preconceitos e
inibições de seu país. Só então foi capaz de realizar um filme a
respeito da Inglaterra. É um erro classificar Anderson como um adepto do
realismo social (sua meta eram os filmes socialmente relevantes) ou
inspirado no movimento dos anos 50, Angry Young Men, embora compartilhasse os objetivos dos esquerdistas no Royal Court Theatre
(onde foi cunhado o termo) que pretendiam romper com a camisa de força
da nostalgia (especialmente em relação à antiga grandeza e vigor do
Império Britânico anterior à segunda Guerra Mundial) e dos preconceitos
de classe média impostos ao teatro londrino. Em 1958, Anderson
participará da ala de desobediência civil da Campanha para o
Desarmamento Nuclear na Inglaterra, e, no ano anterior, em seu artigo Get Out and Push!,
já havia repreendido o cinema britânico por sua incapacidade de abordar
questões sociopolíticas controversas (28). Em 1967, Anderson realizou The White Bus, uma espécie de modelo para se...,
breve retrato de uma morbidez britânica. Em linhas gerais, esta é a
breve definição de Paul Sutton em relação à obra de Lindsay Anderson.
Sutton disse também que se... é um filme sobre a necessidade de
abandonar a creche ou, pelo menos uma sugestão para o que os ingleses
deveriam fazer. Sutton remete aqui às palavras do próprio Anderson em Get Out and Push!,
o cineasta afirmou que deixar a Europa continental e voltar para a
Grã-Bretanha (em 1957) é como voltar para a creche (no sentido negativo
da palavra). (imagem abaixo, na parede da sala de estudos, conhecida
como “sauna”, as imagens de dois revolucionários, Che Guevara e
Gerônimo, ambos lutaram contra os Estados Unidos)
Tony Shaw mostrou como, pelo menos até certo ponto, o cinema inglês
desafiou a ortodoxia oficial da Guerra Fria de diversas formas entre
1945 e 1965. Os filmes expressavam a incerteza em relação à sanidade da
intimidação nuclear entre os países, questionavam a ideia de uma nova
Grã-Bretanha sem classes e insinuaram que elementos no interior da
Agência de Inteligência (a CIA dos ingleses) operavam quase como um
Estado dentro do Estado. Contudo, era bem mais difícil encontrar nas
telas da Grã-Bretanha uma oposição direta à Guerra Fria. De acordo com
Shaw, mesmo antes da revolução bolchevique de 1917, a indústria
britânica do cinema sempre marginalizou o debate e reforçou o status quo,
depois da revolução a coisa apenas piorou, e os grupos de esquerda
passam a ser considerados uma força contra o bem estar nacional, sendo
excluídos da tela e apresentados como extremistas. Com a derrota dos
nazistas alemães em 1945, que, na prática, foram a única barreira para
contra a disseminação do Comunismo na Europa, a indústria
cinematográfica britânica aprofunda seu antiesquerdismo. Apesar de todas
as restrições e inibições impostas ao cinema inglês na década de 1950
do século passado, assunto bastante esmiuçado por Anderson em seu
artigo, Shaw afirma que havia bastante espaço para a divergência na
indústria cinematográfica britânica, se comparada ao que ocorria nos
Estados Unidos e na União Soviética. (29). Em Get Out and Push! Anderson
listou uma série de questões ignoradas pelo cinema inglês, deixando
evidente sua preocupação com aqueles que controlavam essa mídia:
“Em 1945, costuma-se dizer, tivemos nossa revolução... Entretanto, de
acordo com o cinema inglês, nada aconteceu. A nacionalização das minas
de carvão; o Sistema de Saúde Pública; ferrovias nacionalizadas;
educação secundária compulsória – acontecimentos como esses, que clamam
por serem interpretados em termos humanos, não produziram nenhum filme.
Nem tampouco muitos dos problemas que nos preocuparam nos últimos dez
anos: greves; Teddy Boys [homens ligados ao rock’n’roll e
vestidos com roupas em estilo elisabetano]; testes nucleares; as
lealdades dos cientistas; a insolência da burocracia... A presença de
tropas americanas entre nós passou praticamente despercebida; assim como
os mineiros da Itália e os refugiados da Hungria... Devemos questionar a
expressividade, e a honestidade, da forma de utilização, desse meio
poderoso e essencialmente democrático, que satisfaz àqueles que nos
controlam política e financeiramente” (30) (imagem abaixo, a sala de
estudos, na parede uma imagem colorida de Che Guevara)
Orwell e a Falta de Educação...
George Orwell foi educado no Eton College,
segundo ele mesmo a mais cara e esnobe dentre
as escolas públicas. Mas isso só foi possível
porque ganhou uma bolsa de estudos (31)
A este respeito, é interessante notar o contexto em que o escritor
inglês George Orwell, uma espécie de “sustentáculo literário” da Guerra
Fria, se referiu à necessidade de um sistema educacional democrático,
segundo ele ainda inexistente na Inglaterra. A revolução e a
nacionalização de que fala Anderson foram muito desejadas por Orwell,
que escreveu a respeito em The Lion and the Unicorn: Socialism and the English Genius
em 1941 (portanto, em plena segunda Guerra Mundial), elencando
sugestões para acelerar uma revolução socialista na Grã-Bretanha. Depois
de criticar a miopia socialista através dos tempos, Orwell encontrou na
segunda Guerra a oportunidade para levar adiante essa mudança
estrutural. Era crucial que Hitler fosse vencido, mas admitiu que a
derrota imposta pelos nazistas aos ingleses em Dunkerque logo no início
do conflito foi um passo importante na direção da revolução (32). Orwell
explicou que a revolução já estava em marcha há vários anos, mas que
tudo naquele país acontece muito devagar (33). Sugeriu também um
programa de seis pontos, que incluía a nacionalização de bancos, minas e
indústria (a que se referiu Anderson); limitação dos rendimentos (a
distância entre o mais pobre e o mais rico não deveria exceder dez para
um); aliança com os países vítimas do Fascismo; elevação da Índia ao status
de Domínio com poder para se tornar independente da Inglaterra depois
da guerra; formação de um Conselho que representasse os “povos de cor”
no Império (este item, assim como o anterior, está em rota de colisão
com as palavras do general Denson, um representante da tradição). O item
que toca mais de perto o filme de Anderson é a necessidade de uma
reforma democrática do sistema educacional inglês:
“Em tempo de guerra, a reforma educacional deve ser mais promessa do que
desempenho. No momento, não estamos em posição de elevar a idade para
deixar a escola ou aumentar o corpo docente das escolas elementares. Mas
existem certas medidas imediatas que podemos tomar na direção de um
sistema educacional democrático. Poderíamos começar abolindo a autonomia
das escolas públicas e das antigas Universidades, inundando-as com
alunos patrocinados pelo Estado, escolhidos simplesmente com base na
habilidade. No presente, a educação da escola pública é parcialmente uma
espécie de imposto que a classe média paga às classes superiores em
troca do direito de ser aceita em certas profissões. É verdade que essa
situação está mudando. As classes médias começaram a se rebelar contra o
elevado custo da educação, e a guerra levará à falência a maioria das
escolas públicas caso continue por mais um ou dois anos. A evacuação
também está produzindo algumas mudanças menores. Mas existe o perigo de
que algumas das velhas escolas, com capacidade para aguentar a
tempestade financeira por mais tempo, sobreviverão, de uma forma ou de
outra, como centros purulentos de esnobismo. Quanto às dez mil escolas
‘privadas’ que a Inglaterra possui, a grande maioria delas merece ser
extinta. São apenas empreendimentos comerciais, em muitos casos seu
nível educacional é inferior ao das escolas elementares. Elas existem
apenas devido à ideia muito difundida de que há algo de vergonhoso em
ser educado pelas autoridades públicas. O Estado pode acabar com essa
ideia declarando-se responsável por toda a educação, ainda que no
início não seja mais do que um gesto. Necessitamos de gestos, assim
como de ações. Está demasiado óbvio que nossa conversa de ‘defender a
democracia’ é uma bobagem enquanto for um mero acidente de nascimento o
que decide se uma criança superdotada irá ou não receber a educação que
merece” (34)
“(...) Educação na Inglaterra é como uma
Cinderela núbil [em idade de casar], parcamente
vestida e muito atrapalhada com isso (..)”
Comentário do diretor do colégio, se..., 2ª parte
Comentando a respeito de sua origem, Orwell esclareceu que era oriundo
de uma família de classe média padrão: com muitos soldados, padres,
funcionários do governo, professores, advogados, doutores. O escritor
recebeu uma bolsa de estudos, o que permitiu que fosse educado no Eton College,
que ele definiu como uma escola cara e esnobe. Não se trata exatamente
de uma escola pública no sentido amplo ou nacional do termo, Orwell
explicou que se tratava de uma escola secundária exclusivista,
dispendiosa e residencial. Até recentemente, disse ele em 1947, eram
admitidos apenas os filhos das famílias aristocratas ricas. Orwell
contou ainda que era o sonho dos novos ricos do setor bancário no século
XIX colocar seus filhos numa escola pública – muita pressão era
colocada nos esportes, que constituem, por assim dizer, uma perspectiva
senhorial, embora cavalheiresca. Eton estava entre elas. Comentam,
insistiu Orwell, que Wellington teria dito que a vitória sobre Napoleão
em Waterloo foi decidida nos campos esportivos de Eton. Não faz muito
tempo, concluiu o escritor, que a maioria absoluta de pessoas que de uma
maneira ou de outra governaram a Inglaterra veio das escolas públicas. É
importante ressaltar que naquele ano Orwell não considerava a
Inglaterra um país completamente democrático, já que seu capitalismo
comportava grande número de privilégios de classe - mesmo depois de um
conflito como a Segunda Guerra Mundial, que tende a nivelar todo mundo
(35).
Após Um Homem de Sorte, Anderson realizou The Old Crowd
para a televisão britânica em 1979. Filmado em três dias, somos levados
festa de um casal burguês que comemora com uma festa sua nova casa em
estilo eduardiano com rachaduras no teto. A produção foi recebida com
tantos protestos que foi programado um pedido de desculpas (que não
aconteceu). Na época, Anderson estava fora do país e ficou satisfeito
com o escândalo nacional: “(...) É realmente extraordinário como a
burguesia inglesa perde seu discreto charme num piscar de olhos, no
instante em que são ridicularizados ou colocados em situação
desconfortável. E a ingenuidade artística do inglês é realmente
entediante: qualquer distanciamento do naturalismo será imediatamente
rotulado ‘obscuro’, pretensioso’, ‘estudantil’ ou ‘desnecessário’. É
como tentar ler T. S. Eliot para uma plateia numa lanchonete de peixe
com batatas fritas” (36). Depois disso Anderson começa a trabalhar em Hospital dos Malucos, mais um filme sobre e Grã-Bretanha e os britânicos, fechando a trilogia aberta com se... (imagem
abaixo, a cena surrealista do pedido de desculpas de Travis, Wallace e
Johnny ao Reverendo, devido ao fato de o primeiro ter questionado a
autoridade do padre ao atacá-lo durante os jogos de guerra, deixando
evidente, e ainda por cima publicamente, o tipo de atitude que o
religioso-militar teria na hora da morte no campo de batalha: boçal e
covarde. A seguir, o diretor lhes dá uma punição: trabalhar)
Hospital Público...
Lindsay Anderson e Sherwin estavam trabalhando
numa segunda parte para se... quando o cineasta
faleceu em 1994. Um roteiro chegou a ficar pronto (37)
Durante os anos 1980, houve uma reconfiguração de conteúdo e forma da
típica abordagem realista nas histórias contadas na tela pelo cinema
inglês. Do ponto de vista do conteúdo, o operário herói perde em
importância para novos atores sociais como gênero, etnia e orientação
sexual: mulheres operárias, homossexuais, negros e asiáticos – na
esteira do declínio do setor manufatureiro e da indústria mineira na
economia da Grã-Bretanha. Rotulados como filmes do “estado da nação”
(rótulo que remete a uma longa tradição de crítica social no cinema
inglês), buscasse melhor capturar aos vários conflitos socioculturais do
período – embora nos anos 80 já não se pudesse ligar essa tendência de
filmes ao realismo, havia uma insatisfação com este conceito e muitos
queriam simplesmente abandoná-lo. Do ponto de vista da forma, a intenção
de fazer justiça às complexidades da realidade social levou a uma ainda
maior problematização do conceito de realismo – especialmente
considerando a crescente hegemonia do conceito de pós-moderno. Para John
Hill, tudo isso redundou na produção de alguns filmes focados numa
“alegoria nacional” - leitura da narrativa de acordo com um padrão geral
de eventos políticos e “nacionais”. Hill cita Frederic Jameson, teórico
do pós-modernismo, ao remeter à capacidade da alegoria de cruzar as
fronteiras do publico e do privado. Durante a década de 1980,
abandonam-se as alegorias dos filmes realizados durante a segunda Guerra
(que celebravam o trabalho em conjunto para ganhar a guerra),
utilizando-as agora (com exceção de Carruagens de Fogo, Chariots
of Fire, 1981) para sugerir um mundo de crescentes diferenças sociais,
divisões e conflitos. Na opinião de Hill, a utilização da “alegoria
nacional” para representar o colapso social teve sua maior expressão com
Hospital dos Malucos (38). (imagem abaixo, de pé, Phillips ouve a
reclamação de Rowntree sobre a comida que foi servida. Enquanto isso,
Denson olha com muito interesse para o aluno-escravo - Rowntree “cederá”
Phillips para ele. Bullying, escravidão e serviços sexuais obrigatórios, belo sistema educacional)
“(...) A lição do diretor conclui com: ‘A Grã-Bretanha hoje
é uma fonte de influência, de ideias, de experimentos, imaginação. Em tudo, desde a música pop até a criação do porco, da energia atômica às minissaias. E esse é o desafio que devemos enfrentar’. Anderson e Sherwin ainda não sabiam, mas o diretor acabara de esboçar os elementos chave do próximo filme: Um Homem de Sorte!” (39)
é uma fonte de influência, de ideias, de experimentos, imaginação. Em tudo, desde a música pop até a criação do porco, da energia atômica às minissaias. E esse é o desafio que devemos enfrentar’. Anderson e Sherwin ainda não sabiam, mas o diretor acabara de esboçar os elementos chave do próximo filme: Um Homem de Sorte!” (39)
O filme oferece um conjunto de representações que claramente devem ser
interpretadas como metáforas do estado da Grã-Bretanha. Como na
sequência em que se comemoram os 500 anos do hospital, e o Primeiro
Ministro declama uma versão abreviada do discurso de John Gaunt, do Ricardo II
de William Shakespeare: “essa ilha com o cetro Real... esse outro Éden,
semiparaíso... essa pedra preciosa no mar prateado... esse enredo
abençoado... esse reino, essa Inglaterra” - então ele cai morto e a
enfermeira declara que “ele se foi”. Trata-se de um trecho
tradicionalmente utilizado como expressão resumida do orgulho nacional -
John Hill também sugeriu títulos baseados nela para pelo menos quatro
filmes britânicos (três deles lançados durante a segunda Guerra): This England (direção David MacDonald, 1941), O Coração não Tem Fronteiras (The Demi-Paradise, direção Anthony Asquith, 1943), Este Povo Alegre (This Happy Breed, direção David Lean, 1944) e This Other Eden (direção Muriel Box, 1959). Esta citação de Ricardo II situa Hospital dos Malucos ao
mesmo tempo na tradição da representação do britanismo e aponta os
temas da desintegração da comunidade nacional e a “morte” das virtudes
tradicionais inglesas. Em Hospital dos Malucos, o sentido de
valores uma comunidade compartilhada seria substituído pelo egoísmo,
ineficiência e conflito. A certa altura do filme, o administrador do
hospital faz um discurso na cantina agradecendo aos trabalhadores por
“mostrarem uma vez mais que o trabalhador... e trabalhadora... sempre
irá colocar a unidade antes da anarquia, lealdade antes do indivíduo,
bom senso antes da greve perturbadora”. Contudo, o que o filme mostra é
precisamente o contrário, ao mapear o virtual colapso da ordem social.
McDowell não sabia como construir Alex, o protagonista de Laranja
Mecânica. Pediu ajuda a Anderson, que chamou atenção para
seu leve sorriso ao entrar no ginásio para ser açoitado em se... (40)
Desde as cenas iniciais, Hospital dos Malucos evidencia todo tipo
de desordem social e também a participação do desdém dos próprios
funcionários e dos sindicatos com a tarefa de preservação da vida
humana. Eventualmente, o filme desloca o foco das mazelas da sociedade
britânica, apontando para um elemento universal. Trata-se do projeto do
doutor Millar de criar um novo começo para a humanidade. Como o doutor
Frankenstein, ele pretende transplantar partes de corpos e produzir um
novo ser humano. Mas almeja também salvar a humanidade criando um
cérebro separado do corpo – não é preciso dizer que a experiência não
funciona. Nessa hora, Hospital dos Malucos mistura sátira social
com o “cientista maluco” dos filmes de horror. Segundo Hill, o declínio
da confiança no poder da ciência está interligado ao crescimento do
pessimismo, característico do pós-modernismo, em relação à possibilidade
de progresso humano ou aprimoramento social. O ano de lançamento do
filme não poderia ser pior, o que poderia explicar também o baixo numero
de espectadores. É preciso lembrar que, naquele mesmo ano, a guerra das
Malvinas/Falklands ainda estava em curso. Um crítico reclamou que no
ápice de uma unidade renovada entre os ingleses, Hospital dos Malucos
zombava do país. Curiosamente, George Orwell, conhecido por sua luta
contra os totalitarismos, ao ressentir-se da censura de que foi alvo ao
criticava a União Soviética durante a segunda Guerra Mundial (quando
isso não era interessante para a Inglaterra, já que “estava” aliada de
Stalin), lembrou que mesmo naquela época era possível criticar o governo
inglês publicamente, sem sofrer censura (41). (imagem abaixo, a
educação religiosa convive com aulas teóricas, esportes, jogos de guerra
e bullying)
Hill afirma que, enquanto isso indica até que ponto o filme estava em
desacordo com o ressurgimento do nacionalismo de direita no país, é
justo assinalar o quanto sua mensagem possui em comum com a agenda
política conservadora. Segundo Michael Ryan e Douglas Kellner, esse tipo
de filmes seria, de certo modo, cúmplice do crescimento da Nova
Direita. Não apenas o diagnóstico apresentado, apontando deficiências
das instituições e dos detentores do poder, tem muito em comum com
críticas da direita, mas, em virtude do sentimento de perda, pessimismo e
desespero evocados, também contribuem para a criação de um vácuo
ideológico, onde valores e ideais conservadores encontram campo fértil –
a ênfase do filme na teimosia dos sindicatos e nas perturbações da
indústria evoca o “inverno dos descontentes” de 1978/9, dando crédito às
demandas conservadoras contra os sindicatos. De acordo com Hill, o
negativismo do filme evoca as críticas conservadoras à social democracia
nos anos 1970 e carrega o potencial para alimentar “remédios”, de
esquerda ou de direita – retratar a fraqueza da administração frente às
demandas do sindicato pode ser interpretado como reforço da critica a
“gestão consensual”. Para Michael Woods, ao tratar a todos com cinismo, o
filme expressa um populismo conservador e descontente – as demandas
absurdas dos funcionários da cantina por igualdade se encaixam na
pressão anti-igualitária do pensamento econômico da Nova Direita,
enquanto a quebra da lei e da ordem reforça demandas conservadoras por
um Estado forte. Embora retrate um universo social mais próximo dos anos
1970, ao mesmo tempo o filme dá voz àqueles cada vez mais abertos às
propostas da Primeira Ministra Margareth Thatcher. (imagem abaixo,
Travis chega para mais um ano numa escola pública do império britânico.
Aparentemente, ele esconde o bigode, que raspará logo em seguida,
enquanto elogia a fotografia de um homem empunhando uma metralhadora.
Por que não desejaria se parecer com um adulto? Complexo de Peter Pan? O
exemplo dos adultos que conhece na escola o fariam desejar crescer?)
Repartindo a Guerra Fria em duas metades, poderíamos dizer que se... pertence à primeira fase, enquanto Hospital dos Malucos
à segunda, realizado durante a vigência do governo conservador da
Primeira Ministra Margareth Thatcher – conhecida como a “dama de ferro”,
seu mandato se estendeu de 1979 a 1990. Paul Sutton viu em se...
uma série de elementos que propõem uma saída para dos dilemas de uma
Grã-Bretanha que se apega nostálgica à tradição e ao tempo em que
efetivamente possuía um Império – a contradição entre o discurso do
diretor da Academia e o discurso do general Denson no final do filme é
bastante instrutiva quanto a isso. Por outro lado, John Hill não parece
ver em Hospital dos Malucos mais do que uma tentativa frustrada
de superação do discurso conservador. Embora as palavras belicistas do
general Denson demonstrem como para os conservadores a atitude de
questionar o passado (no caso, a hegemonia da Grã-Bretanha no mundo) só
pode ser fonte de discórdia e caos, com se... Lindsay Anderson insistia
em lutar contra a obediência cega a tradição. Em 1993, um ano antes de
falecer, Lindsay Anderson deu uma palestra no Festival de Cinema de
Edimburgo, na Escócia:
“Quando fui convidado para fazer esse discurso fiquei bastante
lisonjeado, depois bastante intimidado, depois achei que deveria
aceitar. Então percebi que o tempo foi um pouco curto – obviamente,
alguém caiu fora. Quem, eu me perguntei, poderia ser? Disseram-me,
Martin Scorsese. Ah sim, eu disse, é claro. Porque Martin Scorsese, além
de ser um dos mais famosos, assim como um dos diretores de maior
sucesso no mundo atualmente, também é um [norte-]americano. E eu entendi
que se algum cineasta fosse ser convidado para fazer um discurso num
festival de cinema britânico hoje, ele deveria ser [norte-]americano.
Porque os [norte-]americanos – como qualquer um que tente realizar um
filme britânico atualmente logo irá descobrir – certamente venceram:
artisticamente, financeiramente e em seu domínio sem esforço da mídia...
Então, quando soube que estaria substituindo Martin Scorsese em
Edimburgo, eu sabia que deveria me desculpar – por não ser
[norte-]americano... Me desculpe eu não tenho tempo para lamentar o
atual triunfo da mídia – e a rendição da mídia aos valores de Hollywood:
os Oscars; os rostos [norte-]americanos na capa da Radio Times; a
vital importância dos nomes [norte-]americanos. Deixe-me lembrá-lo de
que nem um único desses filmes da renascença britânica [feitos por Tony
Richardson, Karel Reisz e eu mesmo] apresentava um [norte-]americano.
Hoje, Tom Jones seria apresentado por Tom Cruise. Eu queria terminar
este discurso com a última sequência de se... e perguntar a vocês com quem se identificam. Mas não existe nenhuma cópia de se... no Arquivo Nacional de Cinema. Preciso dizer mais?” (42)
Notas:
1. SUTTON, Paul. IF…. London/New York: I. B. Tauris, 2005. P. 62.
2. Idem, p. 53.
3. Ibidem, p. 44.
4. Ibidem, pp. 53-4.
5. Ibidem, p. 45.
6. Ibidem, pp. 25-43, 85.
7. Ibidem, p. 45.
8. Ibidem, p. 50.
9. Ibidem, p. 88.
10. Ibidem, p. 44.
11. Ibidem, pp. 44-9, 51, 52, 59, 70-1.
12. Ibidem, p. 8.
13. Ibidem, pp. 88-9.
14. Ibidem, p. 83.
15. Ibidem, p. 56.
16. Ibidem, p. 32.
17. Ibidem, pp. 6-9.
18. Ibidem, p. 77.
19. Ibidem, pp. 74-7.
20. Ibidem, pp. 51, 61, 67, 80-1, 83, 94.
21. Ibidem, p. 85.
22. Ibidem, p. 11.
23. Ibidem, pp. 10-25.
24. Ibidem, p. 69.
25. SHAW, Tony. British Cinema and the Cold War. The State, Propaganda and Consensus. London/New York: I. B. Tauris, 2001. P. 191.
26. SUTTON, Paul. op. cit., pp. 3-4, 74, 92.
27. SHAW, Tony. op. cit., pp. 191, 192.
28. Idem, p. 122.
29. Ibidem, p. 170-1.
30. Ibidem, p. 170.
31. ORWELL, George. Orwell’s Preface to the Ukrainian Edition of Animal Farm. DAVISON, Peter (org.). Orwell and Politics. London: Penguin Books, 2001. P. 316.
32. _______. The Lion and the Unicorn: Socialism and the English Genius. In: DAVISON, Peter (org.). op. cit., p. 120.
33. Idem, p. 116.
34. Ibidem, pp. 124-5.
35. ORWELL, George. Orwell’s Preface to the Ukrainian Edition of Animal Farm. DAVISON, Peter (org.). op. cit., pp. 316, 318.
36. SUTTON, Paul. op. cit., p. 104.
37. Idem, p. 97.
38. HILL, John. British Cinema in the 1980’s. Oxford/New York: Oxford University Press, 1999. Pp. 134-41.
39. SUTTON, Paul. op. cit., p. 57.
40. Idem, p. 70.
41. ORWELL, George. Freedom of the Press. In: DAVISON, Peter (org.). op. cit., p. 308.
42. SUTTON, Paul. op. cit., p 103.
Fonte: Cinema Europeu
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