PICICA: "Dizer que Tudo por amor ao cinema,
de Aurelio Michiles, é um documentário sobre um preservador de filmes
pode dar a ideia de que se trata de uma obra aborrecida e de interesse
restrito. Nada mais falso. Mais que uma justa homenagem a uma figura
central de nossa cultura cinematográfica, o que vemos na tela é uma ode
ao próprio cinema como instrumento de preservação da memória e de
cultivo da fantasia."
Cosme e a memória cinematográfica do mundo
POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 31.07.2015
Dizer que Tudo por amor ao cinema,
de Aurelio Michiles, é um documentário sobre um preservador de filmes
pode dar a ideia de que se trata de uma obra aborrecida e de interesse
restrito. Nada mais falso. Mais que uma justa homenagem a uma figura
central de nossa cultura cinematográfica, o que vemos na tela é uma ode
ao próprio cinema como instrumento de preservação da memória e de
cultivo da fantasia.
Cosme Alves Netto (1937-96), o retratado, foi durante décadas o responsável pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Sua importância no setor só pode ser comparada à do crítico Paulo Emilio Salles Gomes, fundador da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Mas se Paulo Emilio era um intelectual refinado, um mestre das letras, Cosme, embora também muito culto e articulado, era sobretudo um homem de ação. Seu fascinante percurso pessoal se confunde com boa parte da história cultural e política brasileira da segunda metade do século 20.
Contra a censura e a destruição
Nascido em Manaus, filho de um político e grande empresário, Cosme passou a adolescência no Rio, mas teve de voltar ao Amazonas para ajudar a tocar os negócios do pai. Só o que fez foi desviar recursos das empresas paternas para a formação de um cineclube, aluguel de filmes, impressão de folhetos etc. Trocou a fortuna material da família pela fortuna imaginária e afetiva do cinema. Voltou ao Rio, envolveu-se com a esquerda católica, foi preso e torturado pela ditadura e desenvolveu no MAM uma arriscada estratégia dupla para salvar filmes da censura e da destruição.
A trajetória fascinante dessa generosa figura humana é evocada vividamente no documentário por meio de um rico material de arquivo e de depoimentos de gente que conviveu com o biografado. Mais que isso: são os próprios filmes – brasileiros, russos, franceses, americanos – que dão vida à história de Cosme.
Alguns exemplos ao acaso. Um entrevistado (o cineasta Geraldo Moraes) conta que Cosme estava prestes a embarcar num ônibus para fugir do Rio, na época da ditadura, quando apalpou o bolso e viu que estava com uma inconveniente agenda de contatos. O que vemos na tela é o protagonista de Pickpocket, de Robert Bresson, fazendo um gesto idêntico. Quando alguém diz que Cantando na chuva era o filme favorito do retratado, o que se vê, ao som de uma bela versão acústica do célebre tema do musical, é uma cena de Aviso aos navegantes, de Watson Macedo, em que um dançarino executa graciosos passos de frevo com um guarda-chuva na mão. Cenas de Encouraçado Potemkin ilustram uma evocação da revolta de marinheiros brasileiros às vésperas do golpe de 64.
O mundo como um filme
A par dessa sua porosidade à memória cinematográfica do mundo, dessa reconstrução de nosso imaginário a partir dos filmes, o documentário também potencializa e multiplica os sentidos de cada momento narrado. A escolha inspirada das imagens, bem como sua organização na montagem e sua articulação com a trilha sonora, criam efeitos de suspense, drama, épico ou comédia, como se o mundo só pudesse ser decifrado e reconstituído por meio do cinema, desse fabuloso alfabeto que aprendemos a amar.
Mas não há redundância ou previsibilidade nessa operação, como nos documentários (ou “reportagens” televisivas) em que o drama de uma pessoa é intensificado pela música melosa, pelo close na lágrima etc. Longe disso. Muitas vezes o que se produz aqui é um contraste inesperado, um atrito criativo. Quando a viúva de Cosme, Gloria Barbosa, relembra que ele, já perto da morte, lhe falou do sonho de estar no grande relógio de uma igreja, segurando o ponteiro para o tempo parar, o que vemos é Harold Lloyd pendurado comicamente nos ponteiros de um relógio no alto de um arranha-céu, numa comédia muda. O cinema não apenas retrata as dores do mundo, mas às vezes as atenua, sublima, consola. Enaltecer Cosme Alves Netto é enaltecer o cinema, e vice-versa.
Cosme Alves Netto (1937-96), o retratado, foi durante décadas o responsável pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Sua importância no setor só pode ser comparada à do crítico Paulo Emilio Salles Gomes, fundador da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Mas se Paulo Emilio era um intelectual refinado, um mestre das letras, Cosme, embora também muito culto e articulado, era sobretudo um homem de ação. Seu fascinante percurso pessoal se confunde com boa parte da história cultural e política brasileira da segunda metade do século 20.
Contra a censura e a destruição
Nascido em Manaus, filho de um político e grande empresário, Cosme passou a adolescência no Rio, mas teve de voltar ao Amazonas para ajudar a tocar os negócios do pai. Só o que fez foi desviar recursos das empresas paternas para a formação de um cineclube, aluguel de filmes, impressão de folhetos etc. Trocou a fortuna material da família pela fortuna imaginária e afetiva do cinema. Voltou ao Rio, envolveu-se com a esquerda católica, foi preso e torturado pela ditadura e desenvolveu no MAM uma arriscada estratégia dupla para salvar filmes da censura e da destruição.
Cena do documentário
Por um lado, Cosme guardava sob nomes falsos os rolos de filmes visados pelo regime. As latas de Cabra marcado para morrer, por exemplo, receberam o rótulo insuspeito de Rosas do campo. Por outro lado, percorria as distribuidoras cinematográficas para ficar clandestinamente com uma cópia de cada um dos filmes condenados à destruição depois de vencida a validade do certificado de censura. Salvou assim grandes clássicos da cinematografia mundial.A trajetória fascinante dessa generosa figura humana é evocada vividamente no documentário por meio de um rico material de arquivo e de depoimentos de gente que conviveu com o biografado. Mais que isso: são os próprios filmes – brasileiros, russos, franceses, americanos – que dão vida à história de Cosme.
Alguns exemplos ao acaso. Um entrevistado (o cineasta Geraldo Moraes) conta que Cosme estava prestes a embarcar num ônibus para fugir do Rio, na época da ditadura, quando apalpou o bolso e viu que estava com uma inconveniente agenda de contatos. O que vemos na tela é o protagonista de Pickpocket, de Robert Bresson, fazendo um gesto idêntico. Quando alguém diz que Cantando na chuva era o filme favorito do retratado, o que se vê, ao som de uma bela versão acústica do célebre tema do musical, é uma cena de Aviso aos navegantes, de Watson Macedo, em que um dançarino executa graciosos passos de frevo com um guarda-chuva na mão. Cenas de Encouraçado Potemkin ilustram uma evocação da revolta de marinheiros brasileiros às vésperas do golpe de 64.
O mundo como um filme
A par dessa sua porosidade à memória cinematográfica do mundo, dessa reconstrução de nosso imaginário a partir dos filmes, o documentário também potencializa e multiplica os sentidos de cada momento narrado. A escolha inspirada das imagens, bem como sua organização na montagem e sua articulação com a trilha sonora, criam efeitos de suspense, drama, épico ou comédia, como se o mundo só pudesse ser decifrado e reconstituído por meio do cinema, desse fabuloso alfabeto que aprendemos a amar.
Mas não há redundância ou previsibilidade nessa operação, como nos documentários (ou “reportagens” televisivas) em que o drama de uma pessoa é intensificado pela música melosa, pelo close na lágrima etc. Longe disso. Muitas vezes o que se produz aqui é um contraste inesperado, um atrito criativo. Quando a viúva de Cosme, Gloria Barbosa, relembra que ele, já perto da morte, lhe falou do sonho de estar no grande relógio de uma igreja, segurando o ponteiro para o tempo parar, o que vemos é Harold Lloyd pendurado comicamente nos ponteiros de um relógio no alto de um arranha-céu, numa comédia muda. O cinema não apenas retrata as dores do mundo, mas às vezes as atenua, sublima, consola. Enaltecer Cosme Alves Netto é enaltecer o cinema, e vice-versa.
José Geraldo Couto
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.
Fonte: Blog do IMS
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