PICICA: "Uma miríade de emoções. É
dessa forma que posso descrever a experiência sensorial ao assistir
Dogville, peça cinematográfica do diretor que dispensa apresentações,
Lars Von Trier. A proposta diferenciada é explícita e presente na
composição de toda a obra, seja no cenário, diálogos, vestimenta ou
trilha sonora.
Obedecendo a personalidade intrincada do diretor, Dogville possui traços do manifesto denominado Dogma 95 (aqui),
proposto por Lars e Thomas Vinterberg 8 anos antes. Vê-se, portanto,
que as técnicas utilizadas fogem do tradicional cinema hollywoodiano e
apresentam uma obra ímpar.
Apresentando o filme em 10 partes –
incluindo o prólogo –, Lars nomeia e resume os capítulos de forma a nos
revelar, antes mesmo que os vejamos, o desfecho de cada um deles. No
entanto, essa “precipitação” não arruína de forma alguma o desenrolar
das ações e diálogos, todos perfeitamente colocados com o objetivo de
justificar as conclusões."
Dogville Lars Von Trier Legendado
Dogville | uma obra-prima contemporânea de Lars Von Trier que merece ser vista!
Lucas Lucena Sonda -
27/11/2013
Uma
miríade de emoções. É dessa forma que posso descrever a experiência
sensorial ao assistir Dogville, peça cinematográfica do diretor que
dispensa apresentações, Lars Von Trier. A proposta diferenciada é
explícita e presente na composição de toda a obra, seja no cenário,
diálogos, vestimenta ou trilha sonora
Obedecendo a personalidade intrincada do diretor, Dogville possui traços do manifesto denominado Dogma 95 (aqui),
proposto por Lars e Thomas Vinterberg 8 anos antes. Vê-se, portanto,
que as técnicas utilizadas fogem do tradicional cinema hollywoodiano e
apresentam uma obra ímpar.
Apresentando o filme em 10 partes –
incluindo o prólogo –, Lars nomeia e resume os capítulos de forma a nos
revelar, antes mesmo que os vejamos, o desfecho de cada um deles. No
entanto, essa “precipitação” não arruína de forma alguma o desenrolar
das ações e diálogos, todos perfeitamente colocados com o objetivo de
justificar as conclusões
Inicia-se finalmente a trama. De
imediato, a voz do narrador acolhe-nos com um tom fraternal e parece nos
transportar para dentro de outro mundo. Sem poder evitar, lembrei-me
dos programas infantis que assistia nos primeiros anos de vida, em que
contadores de histórias nos apresentavam possibilidades novas e
inexploradas. Um verdadeiro convite ao telespectador.
Conforme desnuda-se a primeira cena, um
susto comum: o cenário, praticamente inexistente, resume-se a marcações
num palco teatral, delimitando as ruas e construções do vilarejo,
enriquecidos, somente, por acessórios relevantes à trama: um sino,
sofás, estantes e camas. Ademais, todo o resto se dá na imaginação de
quem está do lado de cá da tela, forçando-nos a mergulhar no clima de
Dogville para que possamos apreciá-lo verdadeiramente. Admito, a
ausência de cenário traz uma sensação inicial de distanciamento,
contudo, outros elementos tratam de fincar nossas raízes nas terras “dogvilleanas”. Como exemplo, posso utilizar as tomadas sem assistência mecânica para as câmeras e os closes
que revelam, intimamente, as expressões faciais que ilustram cada uma
das falas; sem contar as ações pantomímicas que, executadas de modo
natural, reforçam a ideia de que ali, mesmo ausentes no cenário em sua
forma física, encontram-se portas, animais e outros objetos. Desse modo,
o distanciamento passa a dar lugar para a empatia. Uma crescente
identificação catártica.
Provinciano, o vilarejo que alcunha a
obra conta, numa primeira avaliação, com habitantes simples, mas que
manifestam um rol de interpretações e visões da natureza humana.
Desanuviados um a um, os elementos intrínsecos ao homem impactam
diretamente nossa protagonista Grace (Nicole Kidman) e, por
consequência, as vidas dos demais habitantes igualmente.
Grace, por sua vez, chega a Dogville
destoando por completo dos demais residentes: traja roupas e utensílios
caros; mantém os cabelos alinhados e a pele limpa. O contraste com as
crianças que correm daqui acolá, completamente sujas e de roupas puídas,
é evidente, visto que seus pais e vizinhos também conservam aparência
miserável e/ou desleixada.
Grace. Um ente divino. De olhos claros e fios loiros, angelical. Trazendo simbolicamente em meio à entropia… a graça!
Tom (Paul Bettany), o co-protagonista,
comove-se com a situação desesperada de Grace, a qual, ao chegar, parece
fugir de algo extremamente vil, e se propõe a ajudá-la de todas as
formas que dispuser. Ele, que se considera um filósofo em formação e
futuro escritor, acredita que a vinda de uma estranha ao ninho possa
reavivar sentimentos de compaixão, respeito e companheirismo nos
habitantes do vilarejo que, segundo sua visão crítica, parecem
excessivamente absortos nos afazeres e problemas diários para se
deixarem evoluir como seres humanos. É posto em prática, portanto, um
estudo social de campo, analisado quadro a quadro pelo aspirante a
escritor.
A permanência de Grace, detalhadamente, é
condicionada a duas semanas de labuta – mesmo que alguns cidadãos
tenham relutado de início. Nesse meio tempo, ela precisaria provar seu
valor auxiliando a todos, em quaisquer que fossem suas necessidades. A
princípio nos parece justo, ajuda recíproca, quid pro quo, não é? Mas, se analisarmos a proposta de Lars em criticar o american way of life
(Dogville pertence a uma trilogia de filmes com o intuito de expôr as
incongruências políticas, econômicas, culturais e sociais dos EUA),
então fica claro o juízo do diretor, reprovando a interpretação de que
favores devem ser essencialmente pagos. Dogville faz o bem desde que
receba o bem, nada de amor incondicional ao próximo ou doação
voluntária, uma deturpação ocidental do que é de fato o altruísmo. Essa
interpretação só se assevera quando percebemos que a ajuda de Grace é
visivelmente irrelevante para muitos. Ou seja, o raciocínio predominante
é: “não devemos nada à moça, só ela a nós. Deixemos que pague com
trabalho, mesmo que de nada precisemos com urgência. Tomemos seu tempo
com mesquinharias, afinal, nada nesse mundo é de graça.”.
Grace então se desdobra para atender
todas as tarefas a ela confiadas. Não habituada ao trabalho braçal,
ainda assim realiza-o com gosto e simpatia, tentando aproximar-se dos
seus salvadores num nível emotivo e não só de convivência tolerada.
Quando menos percebemos, estamos sentados no sofá torcendo por ela,
esperando que conquiste a confiança merecida e encontre um lugar
realmente acolhedor. É, é isso que acontece: Grace encanta um a um.
Ao passo que auxilia em trabalhos
domésticos diversos, também cuida dos menores, auxilia os estudos dos
jovens, ensaia música com a organicista e faz companhia aos anciões do
vilarejo. Ela, que antes era vista com desconfiança e até desagrado,
passou a receber calorosos cumprimentos e elogios, satisfazendo Tom, que
outrora se encontrava preocupado com a capacidade de Dogville de
acolher, e que agora passava a admirar Grace e nutrir por ela algo mais
íntimo. Por unanimidade, é permitido que a estranha resida ali, desde
que continuasse desempenhando o trabalho até agora realizado.
Grace, infelizmente, achou que havia
conquistado a passagem para o céu, somente depois percebeu que
mergulhara nas entranhas do inferno.
Com a chegada do feriado da
independência americana, reuniram-se à mesma mesa todos os residentes do
vilarejo para uma celebração. Um deles, inclusive, faz referência à
Grace num discurso improvisado que a elevava o espírito, uma prova de
que era, em essência, bem quista por Dogville. Contudo, os latidos de
Moisés – cão-guardião do lugarejo – haviam anunciado a chegada de homens
da lei. Esses últimos, sem notar a presença de Grace – que rapidamente
se escondera -, fixaram um cartaz de desaparecida com seu rosto
estampado.
O ocorrido gerou inquietação entre os
residentes, algo que só foi agravado com uma nova visita dos policiais e
a troca do cartaz de “Desaparecida” para “Procurada”. De súbito, é como
se Grace tivesse extrapolado sua dívida para com Dogville e precisasse
pagar ainda mais pela proteção que estavam lhe concedendo, uma vez que
galgara o status de fora-da-lei. É aí que as maçãs amadurecem e os abusos tomam partido na narrativa.
Ao passo que o pomar de maçãs
(referência de Lars para o fruto proibido) encontrou-se pronto para a
colheita, também estava Grace – aos olhos dos demais – pronta para ser
consumida. Gradualmente, abusos verbais deram tom cinzento aos dias que
antes eram recheados por simpatia recíproca, até que, dando voz aos seus
desejos carnais, Chuck, um dos moradores de Dogville, pratica o
impensável e estupra Grace numa cena chocante.
Com o primeiro estupro, Grace e Tom
bolam um plano audacioso para que ela possa deixar a vila e o colocam em
prática pegando emprestado do pai dele a quantia de 10 dólares. Com
esse dinheiro compram um espaço para Grace em meio ao caminhão de Ben,
usado para o transporte das maçãs àquela época do ano. Novamente o favor
deve ser pago. Novamente a condição humana tende ao benefício próprio,
pois Ben, tendo consciência da situação de Grace, também a estupra em
sua caçamba e a entrega de volta à Dogville, onde é acusada de
ingratidão e roubo, uma vez que Tom furtara de seu pai os 10 dólares
para a fuga.
Covarde, Tom não admite sua participação na manobra e deixa com que Grace receba sozinha as penitências impostas pelo coletivo.
Cativa da vila que escolhera para fugir
de outro cativeiro, Grace passou a ser vista como uma qualquer, uma
escrava sexual, alguém que não poderia revidar em virtude de sua
condição fugitiva. Logo, boa parte dos homens da vila acostumaram-se a
fazer visitas regulares a seus aposentos, tomando-a para si.
Lars claramente expõe ao telespectador
uma faceta desprezível da natureza humana: a injúria ao indefeso, o
aproveitamento desmedido da subserviência da alguém. Em Dogville, “a
oportunidade fez vários ladrões” e uma só vítima.
Como o travesso personagem de Mark
Twain, Tom Sawyer, o Tom de Dogville escapara sucessivamente de ser
visto como cúmplice das ações de Grace, convencendo-a, também, que
fizera tudo visando um desfecho feliz. Sabia Tom que Grace era
violentada dia após dia e, na sua reserva, suplicava para que aflorassem
o desejo mútuo que mantinham e consumassem aquele amor às escondidas.
Grace, porém, queria gozar do afeto de Tom fora do vilarejo, em
liberdade, para que ele não se tornasse apenas mais um aproveitando-se
de sua fragilidade. A recusa e as verdades expostas por Grace fizeram
Tom perceber em seu imo que, na verdade, a amada lhe trazia dúvidas e
ameaçava seu futuro nos moldes que vislumbrava. Contra todas as
expectativas, denunciou secretamente a estadia de Grace e esperou a
vinda de novos captores para retirarem-na de lá.
Para surpresa geral, Grace era procurada
pelo pai, um gângster temível que reprovou veementemente o tratamento
reservado a ela. Em vez de recompensado pela entrega da “prisioneira”,
Tom acabou condenando o vilarejo todo à vontade, vejamos que ironia!, da
própria Grace.
O diálogo entre ela o pai revela-nos
muito da intenção do diretor no que condiz à análise da vontade humana.
Sentença atrás de sentença, Grace se convence que o esforço genuíno
dispendido por ela foi recompensado somente com a dor. Evidencia-se
então o corrompimento da graça. Fazendo uso do poder paterno, Grace
autoriza que os capangas queimem as casas e matem os habitantes de
Dogville, poupando ninguém com exceção de Moisés, o cão.
No mais simplório “aqui se faz, aqui se
paga”, a vingança de Grace se consuma sob o mote de que o mundo seria um
lugar melhor sem aquelas pessoas. Esse paradoxo de que uma atitude
considerada imoral, como o assassinato, pode ser justificada pelo alvo
do crime, gera-nos uma profunda reflexão acerca das relações que
constituem a sociedade. Condenar à morte não seria passível também de
julgamento severo? Apenas uma das várias ponderações que somos forçados a
abstrair.
Curiosamente, enquanto novelas
caracterizam-se pela inclusão de personagens com nomes incomuns, numa
tentativa de individualizar hábitos e personalidades, em Dogville os
nomes são ora simbólicos, ora universais; representam toda a humanidade e
sua condição sofrível. Dogville é o mundo e Grace sua antítese. Afinal,
da cena desoladora que é a morte de todos e a destruição da vila, resta
apenas o cão Moisés, guardião daquele inferno – o Cérbero de Lars Von
Trier.
Referência
SOBRE O AUTOR
Lucas Lucena Sonda
Possui junto à família um Instituto de
Pesquisas de Opinião & Consultoria Política. Depois de ter
percorrido um caminho tortuoso dentro do curso de História, pleiteou
Filosofia, Ciências Econômicas e agora se encontra seduzido por outras
opções. Grande apreciador da economia política, crônicas, contos,
quadrinhos e literatura brasileira.
Fonte: LITERA TORTURA
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